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DAVI DA VIDA DIVIDIDA EM DAVID - Tchello d'Barros

DAVI DA VIDA DIVIDIDA EM DAVID

Tchello d’Barros

 

 

Personagens: Cupido, Pintor, Musa, Davi, Puta, Médico e David

Prólogo
Cupido: Sem Horas e sem Ouros, obrigado por trazerem a este recinto os vossos corações, esses cravos de carbono escarlate, que carregais em vossos peitos carnais! Pois haveis exatamente hoje de conhecer a sucinta história de Davi Celestino, cuja página final ainda não consta no grande alfarrábio da vida. E vosso nome, vosso nome acaso constará?

 

CENA I - O Atelier de Pintura

Pintor: Se retrato nesta tela as linhas do teu corpo, não é para eternizar tua beleza, mas para esquecer de tudo que perece, de tudo que padece, esmorece e fenece.

Musa: Pois se te dou o desenho deste corpo, que retratas em tua arte, não o faço pelo olhos de Narciso ou Baco, mas por saberes que um belo vaso deve ter seu vazio interno preenchido pelo volátil néctar de Vênus.

Pintor: Ora, amada, se duplico teu semblante neste espelho de tintas, não o faço para mostrar ao mundo tua sublime silhueta, mas sim, para ocultar para sempre o rosto sutil de todo desamor, toda paixão não vivida e toda ausência de afeto.

Musa: Ocultas a noite, mas em luz revelas o relevo deste corpo. Isto é amar ou possuir?

Pintor: Possuir é efêmero, amar é eterno. É ter no coração um momento eterno e terno. E reproduzo tua imagem neste clone pictórico, para jamais acordar deste sonho.

Musa: Teu clone de tintas transcendeu-me. Mas vou te mostrar agora, meu amor, o que é reproduzir de verdade. O pincel penetra no pote de tintas.

Cupido: Bem, esse é meu ofício. Sou o Cupido, culpado por estar ocupado. Uma seta penetra um peito, o fruto se chamará Davi.

 

CENA II - A Vida de Davi

Cupido: E assim nasceu Davi, que cresceu perplexo diante do mundo caótico. Nunca souberam ao certo se era filósofo ou apenas louco. Mas viram que belo jovem era este que caminhava entre as gentes. Então, certa vez no teatro, no palco, olhou para a platéia e disse o rapaz:

Davi: Eu sou Davi. Filho de um sonho, má temática de acasos. Meu signo é a esfinge cujos olhos são vendados. Se sou cometa, sou fugaz, mas posso ser visto na lágrima do Centauro, posso ser ouvido na flauta de um Fauno ou sentido no hálito das Ninfas. Eu sou o que guarda na mão direita o nome secreto de Baco, e na esquerda, o lado escuro da lua. Sou a chave dos grilhões de Prometeu, meus arautos são irmãos das Valkírias, minhas divas celebram núpcias de Ondinas. Sou aquele cujos olhos de ágatas se fecham para poder ver, meu olhar é a aurora no Éden. Minha voz é espada e é lume, de meu peito jorra uma cascata púrpura e anil. Meu sangue é vinho tinto, magma de lava rubra. Não rezo nem choro, não calo nem sonho, não amo nem morro, não queimo nem canto. Deslindar as linhas do horizonte é um dos meus ofícios...

 

CENA III - A Vida de Davi

Cupido: Mas Davi também é feito de carne e desejaram os deuses ou não que ele se envolvesse com uma dessas putinhas que fazem ponto nas ruas da periferia. Mal sabia Davi que a tela da sua vida também tinha nuances rubras e escarlates... Com licensa, tenho que gastar mais uma seta de minha aljava...

Davi: Moça, sai dessa vida, estou indo para uma exposição de pinturas. Venha comigo, você pode conhecer um mundo diferente!

Puta: Da vida espero pouco, por que não fica comigo? Eu posso te mostrar um mundo diferente!

Davi: ...

Puta: Amemos, a menos que o amor de Vênus seja menos sem camisa-de-vênus.

Cupido: Mas por que pra uns Deus dá mais? E por que para uns Deus dá Aids?

 

CENA IV : Geneticamente esculpido e desculpado.

Cupido: Antes de tudo era o verso, então depois que Davi morreu de Aids surge David, o clone de Davi. Consciência com ciência.

Médico: Não se preocupem, desta célula do cabelo de Davi faremos David, um clone, um sósia, um irmão gêmeo, sabem como é, como a réplica de uma pintura. O duplo de uma escultura. Será a imagem e semelhança de Davi. Ele será David, misto de escultor de acasos com fabulista de ocasos. O caos será seu batismo.

Pintor: Não se duplica uma obra nem a vida imita a arte. Que os céus lhe cubram os olhos de lume e solstícios e de sua placenta jorre um mar de efemérides.

Musa: Que em seu coração arda um fogo de cristal, de seus olhos, jorrem cometas.


CENA V : David trouxe a dúvida.

Cupido: Antes de tudo era o avesso, travesso veio ao mundo David, sombra de Davi, sem sombra de dívida. Era assim, acredite, Eros e Afrodite viram que belo jovem era este que caminhava entre as gentes. Então noutra certa vez no teatro, no palco, fitando a platéia, disse o rapaz:

Davi: Pois eu sou David Sky, filho do fogo e da Fênix. Sou o ontem vestido de hoje. Sou uma fagulha volátil de olho-fátuo. Posso ser visto nos anéis de Saturno e no interior de uma crisálida. Minha mão esquerda guarda mercúrio e enxofre e na direita escondo um labirinto de acácias. Meus arautos são cometas e satélites. Meus olhos são a cegueira de um sonho, o sono da Medusa. São também a pedra filosofal e duas teclas digitais. Meu coração é só uma flor de silício. Minha voz é um solo de cítara, violino virtual. Não rezo nem choro, não calo nem sonho, não amo nem morro, não queimo nem canto. O meu ofício é difícil... Desamarrar as linhas do horizonte...

 

 

 

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