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A comédia da vovó Tragédia

Em um ambiente de trabalho compartilhado, não somente se labora. O viver coletivamente é como estar num laboratório de individualidades em permanente interação. Fala-se, inclusive, de política, de futebol, de economia, de festas, de moda, de novela, de cinema, de música, de poesia, dos livros lidos, das questões sociais circundantes, de experiências pessoais e mundanas. Uns costumam comparecer com notícias auspiciosas; outros trazem a piada do dia a fim de espancar a monotonia, minorar as vicissitudes, a face exaustiva do dia-a-dia. Todavia, há sempre alguém que, seja por coincidência ou por peculiar escolha dos óculos que o faculta enxergar a vida, são contumazes entregadores de seus maus presságios, ou narradores das intercorrências drásticas do mundo, do seu habitat.

 
No setor de atendimento de uma Secretaria Municipal, há a Senhora Rafa. Uma Vovó precocemente fabricada pelos tropeços inconseqüentes dos filhos - tão que jovem que, por ironia, a chamam de Vovó. Vários netos sob sua tutela. Trata-se de uma jovem senhora austera no lidar com os compromissos de que a vida lhe incumbira; sempre em alerta e a postos para socorrer, auxiliar a quem a solicita, com o melhor de seus préstimos, movida pela prodigalidade de seu coração. Quando ri, esbanja o ar dos pulmões, promovendo uma catarse nas agruras que teimam em lhe mitigar a alegria. Mas ela é um inveterada perseguidora da felicidade. Passa o expediente a perguntar “pois não, senhor? Pois não, senhora?”, com o resoluto escopo de cumprir o nobilitante mister de funcionária pública. Se ela tira férias ou licença, o público logo pergunta pela Senhora Rafa, da data designada para seu retorno.
 
O ritual da Senhora Rafa, após adentrar na grande sala da Secretaria, é sentar-se ao balcão do atendimento, ligar o computador, dar um suspiro meio agônico, e contar do homem que morrera eletrocutado na rua em que mora, em Pilar; do medo de que as chuvas torrenciais provoquem o transbordamento do rio, em Pilar; dos acidentes de trânsito na estrada de Pilar; dos assaltos a ônibus nas cercanias de Pilar; da explosão do botijão de gás numa casa vizinha à sua amiga, em Pilar; de um crime passional, em Pilar... Os fatos que chegam ao seu conhecimento, e são recontados por si, têm sempre um quê de tragédia. Ganhara, portanto, o codinome de Vovó Tragédia e, com isso, lida de modo bem-humorado - somente vez por outra verbaliza alguns impropérios, sobremodo, quando o céu amanhece púmbleo.
 
No último período de suas férias anuais, fora substituída por uma colega. Esta, ao ligar o computador, menciona, fortuitamente, uma catástrofe veiculada na internet. “Mas, como é que é? Basta sentar no local da Vovó Tragédia para reproduzir seus dizeres?” Interveio o amigo que desviara a atenção dos processos de cobrança fiscal para salpicar sua pitada de irreverência. As gargalhadas ecoaram uníssonas a inaugurar a sessão de irreverências daquele expediente.
Noutra situação, aquele mesmo interventor comentara das ações repressivas do Poder Público no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Vovó Tragédia, que, nessa ocasião, fazia um atendimento e, portanto, estaria alheia aos comentários, inocentemente, perguntara onde havia ocorrido o fato narrado. A resposta foi rápida e precisa: isso foi no Pilar – você não ouviu falar? Vovó Tragédia perdera a compostura e mandou o amigo “se catar”. Novas gargalhadas espocaram...
 

Simone Moura e Mendes
 
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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
Maceió - AL

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