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Se Entupa!

Para quem acha que essa expressão caiu em desuso, levando consigo toda a violência de suas implicações a tiracolo, permita-me dizer que a figura da democracia, tal como a “fulozinha” dos contos de nossa infância, enganou-te direitinho. Por um tempo acreditei piamente nos relatos sobre aquela criatura que descontava raivosamente nos caçadores e desmatadores todo o mal feito à natureza. Minha imaginação era alimentada diariamente pela voz macia das pessoas mais velhas do arruado, as quais contavam os casos como quem derrama mel num copo de farinha. Com o passar do tempo, porém, aquilo já não fazia sentido para mim. Há na vida um momento em que a gente passa a desconfiar de tudo, e eu comecei muito cedo. Nunca tinha visto aquele ser dourado pelo fogo de seu ódio contra caçadores e desmatadores, nem tampouco sentido seu açoite em minhas costas; como, então, acreditar em sua existência? A democracia, tal como nos é passada pelas instituições, as quais dizem protegê-la com a mesma seriedade de um guarda suíço ou dinamarquês, tem uns ares de semelhança com a “fulozinha”. Todos ouvimos falar a respeito, e até fazemos questão de empinar o peito galinaciamente e dizer “vivemos numa democracia!” quando nosso direito à roda democrática fareja um perigo.
A verdade é que a democracia é uma construção, e nem Deus sabe quando ela estará consolidada. Isso que o Estado, a Igreja e outras instituições nos passam como algo pronto, boneco inflável que não precisa mais de nenhum sopro, é na verdade um belo de um sonífero. Isso mesmo! Pois deixa as pessoas entregues a um sono ventilado por sonhos em que a democracia é uma matrona bondosa e já vivida, e não uma jovem ainda cambaleante que necessita de conselhos para tornar-se melhor. Crendo na democracia como algo pronto e empacotado, as pessoas tomam um professor que critica os desmandos de uma política educacional medíocre como arruaceiro e mal intencionado. Até um perigo para o sistema democrático vigente, já que não se entope e não fica contente em apenas usar seu direito ao voto nos anos de caça ao bicho-eleitor.
 
Aquele que bate não quer ouvir o choro de revolta do que foi agredido, e por isso completa seu ato de violência com um sonoro “se entupa!” Da mesma forma, nossas instituições dizem “se entupa!” a todos aqueles que não digerem a democracia como elas a servem, que vê nos tipos “arruaceiro”, “malandro” e “revoltado” apenas mecanismos para manter as ovelhas nos limites da propriedade. A “demonização” da esquerda, a psicologização do protesto, dentre outras coisas, são formas bem contemporâneas de dizer ao cidadão que se entupa. Cabe à gente, tal como os meninos sambudos o fazem, gritar o mais alto que o conjunto das pregas vocais agüentam diante de quem nos ofende. É uma forma de chegar o mais próximo possível daquela democracia que todos almejamos.

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Charles ESCRITO POR Charles Escritor
Maceió - AL

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