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O BEIJA-FLOR DAS ALAGOAS: Emanuel Galvão entre o social e o sexual na poesia caeté

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O BEIJA-FLOR DAS ALAGOAS:

EMANUEL GALVÃO ENTRE O SOCIAL E O SEXUAL NA POESIA CAETÉ

 

Ricardo Maia

 

           O livro de Emanuel Galvão engaja-se radicalmente, e já desde o título (“Flor Atrevida” [Quadrioffice, 2007. 110p.]), no esquema representacional naturalista do imaginário nominalista da Alagoas-artistica. (MAIA, 2010)

           A ilusração da capa, reforçando visualmente a adesão do autor a tal esquema naturalizador da cultura, acaba por configurá-lo como um beija-flor heterossexual e pansexista. Por isso mesmo, perfeitamente integrado à rebelião emplumada do vivartismo na poesia alagoana. Ou melhor, “caeté”.

           Pois é explícita em Emanuel Galvão – sobretudo quando ele fala à sua “Flor Atrevida” como se protagonizasse o Pequeno Príncipe em versão asiática –, a tendência à antropofagia dilemática (“tupy or not tupy?”) do modernismo brasileiro de Oswald de Andrade. Ou seja, aquele modernismo dos que “escrevem [sobre ‘O amor’] / Em pele com as pontas dos dedos, / Cravam os dentes para assinar / Usam saliva como tinta / E lábios como mata-borrão.

           Esta antropofagia dilemática em Emanuel Galvão está, portanto, estruturada por aquela espécie de “metáfora viva” de que fala Paul Ricouer. Pois no poeta palmarino, esta representa de modo lingüístico uma subjetividade profundamente dividida. Uma subjetividade que, por isso mesmo, constitui nele o sujeito freudiano (Inconsciente/Consciente). Isto é, um eu-dividido entre os bastidores e a cena do teatro social da História: “Metáforas são sempre melhor / Que mentiras”, escreve Galvão avaliando uma escolha “poética” na terra dos Marechais. Mas também dos “poetas loucos” e necessariamente heterossexuais: “Um mulher tem que ser amada [...] Tem que ser querida por inteiro”, escreve ainda Galvão em seu livro de estréia – cumprindo a promessa feita à própria mãe, quando ainda era menino, de seguir os passos de Jorge de Lima como ideal de ego-poético.

           Mas a subjetividade de Emanuel nunca conseguiu ser única. Ele era e é sempre múltipla.  Nele, por isso, o poeta (enquanto “sujeito redator unificado” [HUTCHEON, 1991, p. 209]) encontrava-se sempre descentralizado, radicalmente dividido e dividindo tudo, podendo ser “Pedagogo ou artista”... inclusive masculino ou feminino – gerando assim, na aparência (mas só na aparência!), um sujeito em crise crônica por ser portador a vida toda de um eu-de-então.

           Este fato subjetivo o levaria, tempos depois, a converter a “Invenção” do Orfeu de Jorge de Lima em “Inversão” sublimada através da própria poesia órfica. Exatamente como fizera pós-modernamente já nos idos de 1970, Beto Leão, outro poeta alagoano de muitos talentos, parodiando o Mestre Palmarino com alegria festiva e alternativa. Daí porque o beija-flor das Alagoas, vivenciando também o princípio do “prazer da alegria”, escreveria: “O meu sorriso para ele / Nunca são lábios entreabertos / No prazer da alegria / É sempre uma alegoria / Algo sublime na natureza / Algo pra depois ele poder / Beijar, desejar, morder...

           Esta “inversão” poético-canibalística é tão hipersublimada que transmuda a FALA em potente FALO verbalizado e verbalizador. Um falo feito “verbo” que adentra Emanuel Galvão alcançando-o em regiões desejantes do eu-poético. Desejantes porque inconscientes ou jamais exploradas, por outros, em um tipo diferente e misterioso de expedição. Uma expedição cartográfica onde se aprende artisticamente, com o outro, “O desvendar da nossa geografia” – uma geografia do desejo. Pois viver, para o poeta-Emanuel, é tão necessário quanto navegar: “As palavras me penetram / E vão a lugares que ninguém / Nunca visitou”. [...] Eu de mar / Tu de terra / E um oceano de idéias / Conceitos, ideais / Sei lá o que mais / A nos separar”...

           Toda essa aventura por esse “oceano” interior (uma possível alusão implícita à “talassa” psicanalítica de Ferenczi) é vivenciada, na certa, para acolmatar em Galvão “A falta” de um poeta “louco” – mas, inclusive e sobretudo, heterossexual: “Sabe lá, / O que é ter uma musa maravilhosa / E faltar-lhe o verbo / A rima precisa, a palavra donosa. / Saber que seus olhos são lindos / E não ter a metáfora, o termo inusitado / O ritmo cadenciado, para os versos findos.

            É inclusive essa ausência da “palavra donosa” que faz também o poeta perambular, à toa, como se fosse o fleneur baudeleriano ou o Pequeno Príncipe, de Exuperie, em suas respectivas versões asiáticas. Mas pleno daquele “ócio criativo” de que fala De Masi: “Andei por aí / à cata de palavras / como quem anda a procura de um amigo / para preencher o vazio / da solidão.

           Mas nem sempre a fala poética consegue preencher tal “falta”. É quando o poeta sentindo-se vazio, ou esvaziado pela modernidade líquida (e liquidificadora) de Baumen, se dá “conta do perigo / desse despertar tardio / dessa sonâmbula solução” que é a palavra escrita, poetizada, e que já o obceca levando-o outra vez a poemar. Desta vez, no entanto, buscando “A Palavra Pessoa”: “Precisa-se de um amigo / em pessoa / – ‘a palavra pessoa hoje não soa bem, / pouco me importa’”.

           Se para Emanuel Galvão a penetração do “verbo” poético é análoga ou correlata a penetração sexual-genital, esta representa em sua poesia uma aventura interior na qual ele põe em prática a fórmula, do poeta Charles Juliet (1934-      ), de “romper o ego” para superar a si mesmo e se auto-atualizar. Daí a expressão “palavra pessoa” criada por ele-Emanuel nos versos citados acima. Uma expressão, por isso mesmo, tão inquietante quanto a primeira noite de uma mulher com alma hegemonicamente cartesiana: “Como se eu fosse virgem / Não, na carne / Mas, na alma / Tudo o que me diz / Tira-me: O sossego, o tino, a calma / Mas, não é ruim não!” Pois como este poeta ainda acrescenta, já conhecendo pela experiência poética a curta distância entre o social e o sexual: “Quando um homem começa / A lhe tocar com palavras / Não está longe de lhe tocar / Com as mãos.

            Daí a possibilidade também da poesia se configurar, humanamente, como uma “amante” que se aproxima de seu criador como uma perturbadora femme fatale a seduzi-lo na alcova. Mas também a explorá-lo em “fatigante lavra” que, contudo, o torna capaz de “perceber: o prazer, a solidão e a dor / Que é ter na cama por amante a palavra.

            É neste exato ponto de sua poética pós-modernista que Emanuel Galvão expõe suas noções culturais de feminilidade e nos revela a sua incorporação, através destas, daquele “olhar que idealiza e fetichiza a mulher”; qual seja: o “olhar masculino voyeurista da sociedade patriarcal”. Um olhar que representa “a mulher como espetáculo” resultante das inscrições de sua subjetividade realizadas, não por ela mesma, mas por outro alguém que é um homem. Um homem que, embora sendo um poeta de subjetividade múltipla, não deixa de recebê-la sem as típicas reações defensivas da maioria de seus pares e/ou iguais. Fato que complica ainda mais a questão feminina (e feminista) quando inserida, assim, em um texto masculino onde o autor, de tão imerso nas “estruturas de trama de uma cultura patriarcal”, quer constantemente transformar a “história” das mulheres na própria “estória” pessoal (enquanto as elimina da história). (HUTCHEON, 1991)

            Por tudo isso, tal transformação talvez seja mesmo “a mais preocupante violação da subjetividade feminina” segundo Linda Hutcheon (1991, p. 224), uma estudiosa da poética do pós-modernismo.

            Mas é assim que Emanuel Galvão, o beija-flor das Alagoas (um Estado onde são reincidentes as evidências cotidianas de misogenia, machismo e homofobia), exerce sobre a “flor Atrevida” – símbolo para o poeta e seus leitores de uma subjetividade contínua-instável de mulher moderna e liberada – o “poder da história (conforme o constituímos)”; a saber: o poder patriarcal sobre a mulher. Um poder que, de acordo ainda com Hutcheon (1991, p. 225), “pode ser anônimo, mas não pode ser tão inocente, em relação aos sexos, como tradicionalmente se imagina.” Principalmente em certos casos na literatura, como ela mesma demonstra, em que “ele parece vitimar as mulheres mais do que os homens”.

            Deste “paradoxo [ou senão mesmo contradição] do pós-modernismo”, criticado por Hutcheon (1991, p. 225), Emanuel Galvão parece, contudo, está totalmente ciente. Sobretudo quando ele constrói, atrevidamente, sua “flor” já sabendo que ela é sua própria poesia. Ou seja, é ele próprio...

 

 

REFERÊNCIAS

DE MASI, Domenico. O ócio criativo. Bahia: Sextante, 2000.

GALVÃO, Emanoel. Flor atrevida. Maceió: Quadrioffice, 2007.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

JULIET, Charles. Literaturas: entrevistas do Le Monde. São Paulo: Ática, 1990. Entrevista concedida a Fernande Schulmann em 22 de agosto de 1982.

MAIA, Ricardo. O imaginário nominalista da Alagoas-artística. Gazeta de Alagoas. Maceió, 4 jun. 2011. Caderno Saber, p. A4.

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000. 

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Ricardo Maia ESCRITO POR Ricardo Maia Escritor
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