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A GRANDE “NOITE DE VIVARTE”

 

Ricardo Maia[1]

 

            A noção de uma “dispersada e solitária vanguarda-caetés” é minha. Eu a criei, micro-historicamente, quando escrevi a apresentação para o catálogo amarelo da “1ª. JORNADA” da “CRUZADA PLÁSTICA”, intitulada “‘A NOVA E A NOVÍSSIMA PINTURA ALAGOANA’”. Tal catálogo foi elaborado e lançado por mim, em parceria com Paulo Caldas, na noite de 28 de julho de 1987, sob o “patrocínio” da Fundação Teatro Deodoro; entidade, na época, presidida pelo teatrólogo Pedro Onofre e dirigida, artisticamente, por Jasiel Ivo. Este, um sobrinho do poeta Ledo Ivo, e, naquele momento, um jovem e aplicado estudante de Direito.

            Os artistas catalogados ― cada um com sua respectiva obra, assinatura, foto, e texto ― eram: Álvaro Brandão, Dalton Costa, Edgar Bastos, J. Martins, Lael Correa, Lula Nogueira, Maria Amélia Vieira, Paulo Caldas, Ricardo Maia, Ricardo Santana, Roberto Athaíde, Silvano Almeida e Valéria Sampaio. Mas nem todos os textos que acompanhavam as reproduções das obras no catálogo eram do próprio artista. Por exemplo: Fernando Lopes (1935-2011) produziu os textos de Maria Amélia e Dalton; Jorge Barbosa o de Álvaro Brandão; Manoel Viana o de J. Martins; Cláudio M. o de Roberto Athaíde (1962-1995); Lucy Brandão (1961-2000) o de Lula Nogueira; e Marcos de Farias Costa o de Edgar Bastos (1935-2002).

            Explicando a ausência de alguns nomes no catálogo, Marcos de Farias Costa (1987, p. 4), num artigo intitulado A pintura alagoana em questão, escrito especialmente para a sua coluna Literatura, na Gazeta de Alagoas de 26/07/1987, inclusive diz: “Uns, não citados, deverão aguardar uma nova onomástica técnica enquanto permanecem trancafiados no simbólico, à espera da motivação móbile. Mas inexiste política de excludência; apenas uma seleção por temperamento estético e práxis teórica.”

            As singulares assinaturas dos artistas catalogados compunham a capa do catálogo. Já as fotos destes, todas estas em preto-e-branco, ocupavam as duas páginas centrais do mesmo, entremeadas por cinco peças diferentes do belicoso jogo de xadrez que foram recriadas, a bico-de-pena, por Paulo Caldas. No catálogo em lançamento, Paulo e eu, como “organizadores” do evento, procuramos então justificar assim a sua lógica da conflitualidade:

A todo instante várias batalhas são travadas no mundo inteiro (ver “cruzada plástica”), desde a luta mais cotidiana pela sobrevivência do indivíduo até os conflitos entre as Nações. Em meio a esses vários conflitos como em meio às várias propostas para se resistir e sobreviver à todas essas guerras... entendemos que o artista também se encontra em fogo cruzado, isto é: entre o sim e o não; entre isto e aquilo, entre o real e imaginário; entre a loucura e o juízo; entre a vida e a morte, enfim. E nessa sucessão de instantes, – tempos e situações se confundem! gerando, em última instância, novas perspectivas empíricas, formas mais livres de expressão.

            A data de 28 de julho de 1987 marcou, sem dúvida, uma significativa noite. Uma “noite de vivarte” (MAIA & VIEIRA, 1984-85) que algum(a) historiador(a) ainda verá nela não apenas, e simplesmente, “uma outra exposição rápida com os quadros da primeira jornada [acima referida] e um recital de piano.” (CAMPOS, 1993, p. 171; 2000, p. 96 ). Verá nela sim ― pela balbúrdia (leia-se, também, valburga!) geral estruturada de modo estratégico e tático ― um construto típico-ideal (ou uma idealização) da “Noite de Valburga” (cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/valburga). Ou seja, uma Walburgernacht-caeté... onde nesta, o demônio fáustico do vivartismo redivivo se fazia notar em plena ação cultural radical na Maceió-artística; induzindo a sociedade alagoana, como um todo, a dizer “SIM” definitivamente à modernidade estética. Um “SIM” que, na cena cultural local, tomou então a forma simbólica de um enterro. Enterro esse ao qual a posteridade alagoana foi convidada (ou senão mesmo convocada, já que se tratava de uma “Cruzada Plástica”) a dar, vestida de preto, o beijo no rosto morto. Isto é, na fase morta da pintura alagoana...

            Toda essa montagem micro-política de uma face/fase morta da pintura alagoana foi realizada ao som das músicas Mefisto, A Benção de Deus na Solidão (da solitária e dispersada vanguarda-caeté, é claro) e Os Funerais — todas de Franz Liszt (1811-1886) — executadas ao negro piano de calda, da marca Yamaha, pelo pianista Alex Vilaça (  ?  -  ?  ). Raízes de sândalo, sempre-vivas ressecadas e grossas “velas de sete dias” acesas, decoravam os consoles do salão nobre do Teatro Deodoro, que o odor agradável e rústico do sândalo impregnava. Garrafas de náufrago, com poemas e frases de efeito, também encontravam-se espalhadas pelos quatros cantos do referido salão, decorando-o surrealmente.

            A certa altura deste hapenning vivartista-cruzadista, num rompante de consciência socialista-ecológica, Alex (de pés descalços, como costumava tocar piano) surpreendeu a todos, interrompendo de súbito a performance teatral ― há três ou quatro dias ensaiada por ele, o poeta Paulo Déo e por mim ― para discursar “revoltado” contra o capitalismo selvagem: principal responsável, segundo ele, pelos desmatamentos e poluições muitas vezes letais à vida viva no planeta Terra.

            Este demorado e imprevisto discurso de Alex Vilaça, que em alguns momentos tomou analogicamente característica dada-surrealista, capitalizou aplausos, vaias, pilhérias e assobios da diversificada platéia que, pouco antes excitada e em polvorosa, pela chegada barulhenta e tumultuada do “mestre sem cabeça” ― personagem de um pequeno texto de Eugene Ionesco (1912-1994) encenado, na ocasião, por Mauro Braga e seus alunos, para aludir a Pierre Chalita (1930-2010) ―, se comprimia lotando o salão “nobre” do Teatro Deodoro da Fonseca: um sólido prédio, construído no início daquele século XX, situado bem no centro da “cidade sorriso” (Maceió).

            A encenação dirigida por Mauro Braga abriu o evento contando também com experientes atores locais como Chico de Assis e Paulo Poeta. Este último, anunciando e/ou reportando exaltado, em um auto-falante, a chegada dO Mestre ionescano que entrava na cena social do evento pela lateral do Deodoro passando pela frente do teatro de Arena Sérgio Cardoso. Ali, uma enorme trupe de saltimbancos, composta e interpretada pelos alunos de um curso de teatro que acabara de ser ministrado na FUNTED, delirava com a célebre presença do personagem central de Ionesco, que, por sua vez, e também vestindo fraque preto, subia as escadas para o salão nobre do Deodoro, seguido pelos convidados do evento.

            Já noutra performance teatral, realizada em seguida neste salão, Paulo Déo e eu contracenávamos recitando poemas de Augusto dos Anjos (1884-1914). Poemas estes que foram adaptados por mim para constituírem um diálogo, intercalado por execuções das músicas de Liszt já referenciadas. Um diálogo dramatúrgico que envolvia dois personagens: Mefistófeles, interpretado por mim, e o artista alagoano configurando em cena um individuo ébrio e fracassado, representado por Déo. Artista esse que, após um grande porre, voltando para casa vociferante e solitário, cruza-se no maio da noite com o diabo fáustico, que se dirige a ele recitando, dramaticamente, os “Versos Íntimos” do grande poeta paraibano: “Vês?! Ninguém assistiu ao formidável / Entêrro da tua última quimera. / Somente a ingratidão — esta pantera — / Foi tua companheira inseparável! / Acostuma-te a lama que te espera! / O Homem, que, nesta terra miserável / Mora, entre feras, sente irresistível / Necessidade de também ser fera.

            O evento findou com a distribuição gratuita do catálogo amarelo, já referido mais a cima: “[...] o amarelo revisitado (para Goethe o amarelo é o hino da luz)”, escreveria neste o poeta Marcos de Farias Costa (1987). O coquetel oferecido foi, em pouquíssimo tempo, devorado pelos estudantes, penetras e/ou moradores de rua do centro da cidade. Pois estes ― graças ao caráter anárquico daquela “noite de vivarte” e das grandes portas abertas, sem seguranças, do Teatro Deodoro ― acabaram participando ativamente ao lado dos convidados ilustres, oriundos das elites sociais e culturais alagoanas.

            Vale lembrar aqui que dentre os convidados ilustres, presentes àquela “noite de vivarte”, estavam: o produtor cultural Gustavo Leite (1963-2002), a multiartista Anilda Leão, o crítico de arte Romeu Loureiro, o teatrólogo Homero Cavalcante, os pintores Fernando Lopes, Delson Uchoa e Rogério Gomes (acompanhado da esposa Nira), a pianista Selma Brito, a professora de língua francesa Diva Maria Moreira (prima de Carlos e Fernando Fiúza), o jornalista Manoel Miranda Jr., o intelectual Beroaldo Maia Gomes (pai de Lula Nogueira), a assistencialista social Ana Vieira Soares (mãe de Maria Amélia Vieira), o médico e professor José Cândido Vieira (primo do ator Sadi Cabral) e a pesquisadora paulistana Célia Campos. Esta última, que dois anos antes havia também marcado presença no Grupo Vivarte, já se preparava para o doutorado que faria na Universidade de São Paulo (USP) elegendo a pintura alagoana como tema.

            Por todo o rico e aparatoso estratagema político-cultural que estruturou a ação conjunta e altamente comunicativa dos vivartistas-cruzadistas ― e inclusive de seus aliados do campo do teatro e da literatura ― naquela “noite de vivarte” em 28/07/1987, no Teatro Deodoro, haveremos hoje de concluir que o tratamento historiográfico reducionista que Célia Campos (1993; 2000) deu, em sua tese, a toda aquela agitação circundante ― sem mencionar, nem de longe, as suas dimensões político-culturais simbolicamente violentas, subversivas, perturbadoras e conflitantes ― retroalimentou o silêncio reacionário que, logo em seguida, foi produzido em torno do evento. Principalmente da parte dos cronistas sócio-culturais conservadores, únicos a dominar e predominar então na imprensa local. Pois só algum tempo depois, e assim mesmo a contragosto, estes resolveram comentar o acontecimento através de pequenos textos. Textos esses muito mais fecundos enquanto documentos de barbárie que enquanto documentos de cultura.

            Mas sobrepondo-se simbolicamente a todos eles, alguns anos depois, o texto acadêmico de Célia Campos (1993, p. 186; 2000, p. 105), elaborado de modo científico em nível de doutorado, documentaria assim seu testemunho da efervescência cultural do Grupo Vivarte (1984-85) e da Cruzada Plástica (1987-88): “[...] dois importantes fenômenos culturais relativos às artes plásticas em Alagoas, tanto pela reunião prolongada de artistas jovens, e não jovens, interessados em novas linguagens plásticas, quanto pelas conseqüências acarretadas por essas duas ocorrências”.

            Dando continuidade a esse processo de produção de (re-)conhecimento da arte em Alagoas, em nível também científico, o psicólogo e psicanalista Lincoln Villas Boas (1994, p.especial; 2006, p. 68) ― que, aliás, é irmão do poeta Paulo Renault (1958-2003), um dos intelectuais que colaboraram na organização do evento ― em seus Testemunhos do Vivartismo assim escreveria de modo conclusivo:

O vivartismo conseguiu afinal os seus intentos com a Cruzada Plástica, cuja Primeira Jornada teve lançamento nas dependências do Teatro Deodoro. A ação dos vivartistas não é mais contemplativa. Era o 28 de julho de 1987. Sua divisa era, então: Écrasez l’infâme! O infame comodismo, o infame marasmo, o infame provincianismo.

 

 

REFERÊNCIAS

ANJOS, Augusto dos. Eu: poesias completas. 29ª ed. comemorativa do cinqüentenário do seu aparecimento 1912-1962. Rio de Janeiro: São José, 1962.

CAMPOS, Célia L. R. T. P. Alagoas: a pintura como produção social – trajetória e crítica (1892-1992). São Paulo: 1993. 273 p. Tese (Doutorado em História da Arte) – USP/ECA.

CAMPOS, Célia. Uma visualidade: trajetória e crítica da pintura em Alagoas. São Paulo: Escritoras, 2000. Cap. 6, p. 89-116: 3º período, 1980-1992: forma/fundo: a dinâmica se estabelece.

COSTA, Marcos de Farias. A pintura alagoana em questão. Gazeta de Alagoas. Maceió, 26 jul. 1987. Caderno B, ano LIII, n. 125, p. 4.

MAIA, Ricardo; VIEIRA, Maria Amélia. Noitário de uma revolta. Maceió. 1984-1985. 67 f. Digitado. Trata-se do manuscrito, ainda inédito, do Grupo Vivarte.

MOSTRA ALTERNATIVA “CRUZADA PLÁSTICA” – 1ª jornada: “A nova e a novíssima pintura alagoana”. Catálogo de exposição em arte visual.  Maceió: Galeria Miguel Torres da Fundação Teatro Deodoro (FUNTED). Sergasa, 1987.

VILLAS BOAS, Lincoln. Le vivartisme, der vivartismus, o vivartismo. Jornal de Hoje. Maceió, 12 jun. 1994. Caderno B. n. 122, p. Especial.

VILLAS BOAS, Lincoln. Testemunhos do vivartismo: escritos de intervenção cultural na Maceió-artística da pintura (1992-2004). Maceió: Catavento, 2006. Cap. 4, p. 51-68: O vivartismo.



[1]É alagoano de Maceió, mestre em psicologia social pela PUC-SP e faz pesquisas no IHGAL sobre o campo artístico alagoano.

 

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Ricardo Maia ESCRITO POR Ricardo Maia Escritor
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