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A LENDA ALABUCANA Ou: Eliana Cavalcanti, a senhora da dança e da memória escrita

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Ricardo Maia

 

          Em suas “memórias”, recentemente organizadas e publicadas num primoroso livro de 410 páginas, bastante recheado de reproduções fotográficas em preto-e-branco, a bailarina Eliana Cavalcanti se auto-representa, de modo curioso, como “alabucana”. Isto é, uma artista brasileira que, ao longo de meio século de existência, foi se constituindo hibridamente numa cultura-alma a um só tempo alagoana-e-pernambucana.

                Nessa trajetória cultural hibridista, percebe-se em Eliana um profundo sentido daquele missionarismo cultural de que nos fala o sociólogo italiano Domenico De Masi (2003), quando este trata dos indivíduos e grupos “criativos” na Europa dos séculos XIX e XX. Prova definitiva disso é seu livro memorialista com o qual a artista nos presenteia, de modo exemplar, e no qual, aliás, há um capítulo intitulado: “Minha missão em Maceió” (p. 103). Missão essa que Eliana Cavalcanti cumpre, heroicamente, com muita competência, fé e rigor historiográfico.

                O grande mérito de Eliana Cavalcanti, em seu livro de memórias, é não ter medo da história artística que ela própria produz. É não se sujeitar, por isso, à amnésia social. É lembrar e explicar o que aconteceu com a arte da dança, em Alagoas, colocando a sua experiência social numa espécie de divã civilizador do nosso tempo e lugar. É sua luta pelo conhecimento e reconhecimento das coisas ditas e feitas, por sua arte, em Maceió e noutras localidades. Daí sua “preocupação em registrar tudo, e consciente do valor da história contada o mais fielmente possível” (p. 142). Proeza mental que ela não agradece à sua “humilde biblioteca” (p. 24), mas à disciplina obtida no ballet – na certa por conceber essa arte da dança clássica como conhecimento.

                Contudo, no processo de recordar e produzir uma escrita de si – que é também da História –, a memorialista está plenamente ciente da função primordial da linguagem naquela espécie de segundo nascimento nosso por palavras e atos (penso aqui com Hannah Arendt). Além, é claro, de alguns preceitos fundamentais como, por exemplo, o pressuposto psicanalítico de que o real é aquilo que sempre nos escapa e, por isso, o que obtemos ex post factum nunca é (ou pode ser) exatamente aquilo que se viveu. Isto fica bastante claro no seguinte trecho do livro: “E aqui dou de presente uma frase do grande escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez: ‘A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda e como recorda para contá-la’” (p. 93-94).

                Trabalhando assim o passado da arte do movimento belo, principalmente o passado da dança na capital alagoana, recordando-o para elaborá-lo com ciência, habilidade mnemônica e boa escrita – Eliana Cavalcanti promove em seu livro, sobretudo para os artistas locais, uma reflexão revisora e decerto também necessária a uma reflexão sobre suas identidades, práticas e histórias que parecem congeladas na memória da Maceió artística. “Por não ter uma memória muito boa”, escreve ela observando a si mesma, “foi preciso me embrenhar nos diários, cartas, crônicas e arquivos de papai; nos meus arquivos com recortes de jornais, bilhetes ou cartas de amigos, além das minhas agendas anuais.” (p. 405).

                Pelo resultado excelente desse ardiloso esquema para descongelar Mnemosine, a deusa grega da memória, vale citar aqui, de passagem, o que diz a psicóloga social Sandra Jovchelovitch – só para termos uma idéia do alcance do livro de Eliana: “O contar histórias é um dos meios fundamentais pelo qual comunidades compreendem o passado e o presente e projetam seus objetivos futuros.” (2008, p. 145). E acrescenta: “As narrativas nos ensinam as histórias e metáforas pelas quais vivemos e ao mesmo tempo nos oferecem os meios para refletir, questionar e criticar nossa herança histórica.” (JOVCHELOVITCH, p. 145)

                 No livro de Eliana, essa herança se reflete e é questionada através de representações tão críticas quanto duais e ambivalentes, que acabam por configurar Maceió, por exemplo, como uma “cidade pequena”, um esconderijo, um espaço isolante e da falta onde a artista, para sobreviver, precisa fazer-se “no palco” – social, inclusive! – “uma guerreira” (p. 148). E continua: “Toda essa minha luta para criar uma companhia estatal, municipal, particular ou do jeito que fosse melhor para a dança em nossa cidade,” ela desabafa, “Alagoas ficou me devendo. É a minha única frustração e arrependimento por ter ficado morando em Maceió.” (p. 159-160). E acrescenta etnografando assim a socialidade na capital alagoana: “Maceió é a terra da boca miúda, do falar sibilando entre os dentes, pois todo mundo se conhece, todo mundo é parente, amigo, ex-colega, e por aí vai. Daí que tudo se sabe, só não se denuncia.” (p. 161).

                 Entretanto, é a estruturação particularista dessa mesma rede social/relacional, repleta de proxemia e familiaridades, que se oferece a Eliana como paradigma metodológico ideal a ser reproduzido e incorporado por ela no desenvolvimento do seu trabalho de pesquisa para a confecção de suas memórias escritas. O resultado é a produção de um saber excessivamente auto-referencial que, por isso mesmo, quase nunca vai além dos limites da própria pele da autora. Fato esse que, a nosso ver, estaria evidenciado na última foto do livro e reconhecido pela memorialista “alabucana” no seguinte trecho de sua autobiografia: “Lembro como vivi fatos e participei de mudanças que para muitos hoje são história e, para mim, apenas memória.” (p. 79).

                Por isso que, contraditoriamente, a capital alagoana se configura também, no livro de Eliana, como um lugar realmente edênico, onde quem é família como ela, garante a realização e o equilíbrio – sempre instável – entre o princípio do prazer e o da realidade. Ou melhor, de uma realidade socialmente construída bem ao gosto e estilo do tradicional espírito de alagoanidade: “[...] ficando em Maceió [de férias]: cinema, leitura, manga-espada, siriguelas, sucos, picolés de frutas tropicais e curtir o marido e os filhos. Alimento para o corpo e para o espírito.” (p. 139).

                O mesmo espírito de classe que, embora por pouco tempo, a levaria também em 1991 a vivenciar a cultura inclusive em seu sentido original ou primevo. Um sentido que sempre prevalece sobre o processo histórico da arte em Alagoas e, há séculos, é vivenciado atavicamente com prioridade sociocultural por boa parte dos pais e avós do corpo discente e cliente de sua escola e grupo de dança: “Plantei muitas árvores, curti a família, uma horta e o jardim da casa. Era para lá que íamos todos os fins de semana, durante quatro anos. Em 92, ele passou a se chamar fazenda São Francisco. Era uma fazendola com direito a cavalos e bois.” (p. 211).

                É nesse universo telúrico ou terra-máter, onde a procriação prevalece e subsume a criação artística (pois a “Vida” nele se quer sempre mais histérica que histórica, isto é, inteiramente natural, despojada, ascética e sobretudo branca (penso aqui no massacre do Quilombo dos Palmares e, 1912, no quebra de Xangô) – como inclusive sugere o figurino para um dos solos mais belos dançados por Eliana), que, em 1987, “nascia Max. Fofinho e loiríssimo. Era tão branquinho que nós o chamávamos de Gasparzinho” (p. 157), recorda Eliana Cavalcanti como mãezona. Max, vale notar aqui de passagem, compõe hoje o trio filial da memorialista juntamente com Marlos e Ilana; porém só esta última segue os passos de balé da legendária matriarca. Acaso ou preconcepção?

               Sobre essa delicada questão, que é a questão dos rapazes e garotos que dançam ballet, enfrentando e contrariando muitas vezes a própria família, a memorialista esquece e silencia... Fala apenas da sua grande dificuldade de encontrá-los para incorporá-los à sua escola ou corpo de baile, constatando assim, de modo implícito e para além do livro, o óbvio: “O dia-a-dia de um bailarino lhe fica não só impregnado nos músculos e articulações, como na alma, essencialmente na alma.” (Cf. catálogo do espetáculo “Aplausos” de 2008).

               Essa constatação, feita desse jeito, só nos mostra que seu “desnudamento” no livro não é frontal ou 100% radical, mas artístico e apenas para um mui respeitável público. Um público decerto mais interessado no enorme “desfile de notoriedades” (Cf. catálogo “Aplausos”) que, inclusive por puro senso de positividade (ou marketing), Eliana promoveu na passarela de suas memórias. “O respeito ao público”, escreve ela, “sempre foi, para mim, uma condição indispensável, acima de qualquer descuido.” (p. 111).

               O que nesse e noutros pontos de sua trajetória Eliana não percebe, ao mergulhar de cabeça em certas práticas discursivas, é a arte lhe exigindo transgressão. Pois todo artista, como diria sobre seu caso Michel Maffesoli (1987), tem de se armar de uma boa dose de relativismo, ainda que seja apenas para se tornar receptivo a um novo estado de coisas: “[...] o fato é que a dança veio suavizar as linhas de um temperamento rebelde e contestador” (p. 18), se justifica a artista. Daí ter sido, na certa, a reprodução desses valores primordiais, nos quais sempre se apóia a realidade socialmente construída pela velha Alagoas, que motivou Eliana a produzir uma representação equivocada de seu grupo Íris de Alagoas, reapresentado este em seu livro como “ainda verde”, quando na verdade o referido grupo já contava, constatadamente, com um bom tempo de existência e uma experiência técnica e de palco já bastante amadurecida ou “sem ranço”.

                Portanto, a autora parece não saber, ou não querer saber, é que o problema colocado aí por ela, valendo-se dessa metáfora naturalista (e naturalizadora da cultura), pode ser falso e, por conseguinte, outro. A nosso ver, provavelmente, é. O que não a impede, no entanto, de tomar consciência dos seus efeitos nocivos à sua criatividade artística. Efeitos esses decorrentes, na certa, da sua relação ingênua com o poder estatal alagoano. Um poder também e sobretudo simbólico que, conhecendo bem a necessidade imperiosa de “aplausos” dos artistas locais, engabela-os com cargos públicos e salários ‘razoáveis’, pagos por suas instituições decorativas, para transformá-los em burocratas frustrados a seu serviço – e não da arte.

                No trecho a seguir, percebe-se claramente esse fato na relação “muito inocente” que Eliana Cavalcanti (2008) estabelece com o aparelho estatal alagoano quando, em 1989, a artista exerce um cargo administrativo no Governo do Estado: "Voltando à Fundação [Teatro Deodoro]. Com o passar do tempo, o meu corpo de bailenão saía. As coisas eram muito difíceis. Por exemplo, para a vinda do grande violonista Turíbio Santos, eu mesma enchi o tanque do meu carro e mandei o motorista da Funted buscar o artista no aeroporto. Quando a Marion Verhallen precisou ir até a TV Gazeta para dar uma entrevista, fui eu que lhe paguei o táxi. Fui então ao Palácio dos Martírios falar com um assessor do governador. Quando lhe perguntei pelo meu projeto, se ele sabia por onde andava, ele me respondeu: ‘Está por ali, numa daquelas gavetas’. Eu, muito inocente, não havia protocolado o projeto. E, naquele momento, me senti desanimada. O Governador Fernando Collor havia saído em campanha para Presidente da República com uma estratégia de marketing muito forte, e toda a sua assessoria só estava preocupada com a sua eleição, que findou vitoriosa."

                Consciente de que o meu trabalho na Fundação já começava afetar um pouco a escola e vendo que, devido às mudanças de plano do governo, eu não tinha mais chances com meu corpo de baile, pedi exoneração do cargo de diretora artístico-cultural. Abdiquei de um salário razoável e fui cuidar daquilo que era tão-somente meu, pois a escola crescia e eu já não conhecia os alunos novatos. Cargo público, nunca mais. (p. 180).

                 Por essas e outras, o livro de Eliana é sem dúvida um “lenitivo” a sua pessoa criativa (“[...] sempre precisei de lenitivos para sobreviver e continuar achando que vale a pena trabalhar com arte e cultura na minha cidade” [p. 217], confessa a artista). Mas seu livro é também uma boa resposta de quem de fato leva “a sério” a própria vida, objetivando nesta, corajosamente, “resgatar uma história que não é só minha”. (p. 406). Além, é claro, de “deixar um legado” para as gerações seguintes e “contribuir para futuras pesquisas”. (p. 406).

                 Objetivos, aliás, que a fazem ciente de que o saber é, ele próprio, uma construção que exige o Outro e o seu reconhecimento. E de fato disto a autora se mostra plenamente consciente quando escreve e diz, com a autoridade dos detentores de saber, produzindo e dando sentido à história: “[...] tenho consciência de que muitas pessoas caminham à minha frente, conduzindo-me; muitas outras, ao meu lado, fazendo parte direta dessa trajetória; e outras, à distância, mas contribuindo para o meu crescimento.” (p. 406).

                  No livro da vida de Eliana Cavalcanti, são essa consciência e esses outros significativos que tornam possível localizar sua posição e historicidade na Maceió artística. E agora, nas comemorações dos seus “50 anos de plié” (e de violenta capitalização sociocultural na área do ballet!), fazem dela, em solo alagoano, a nossa senhora da dança e da memória escrita.

 

REFERÊNCIAS

CAVALCANTI, Eliana. 50 anos de plié: memórias de uma alabucana. Maceió: Catavento, 2008.

CAVALCANTI, Eliana. Aplausos [programa de espetáculo]. Maceió: Grafpel, 2008.

DE MASI, Domenico. Criatividade e grupos criativos. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.

JOVCHELOVITCH, Sandra. Os contextos do saber: representações, comunidade e cultura. Petrópolis-RJ: Vozes, 2008.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

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Ricardo Maia ESCRITO POR Ricardo Maia Escritor
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