Conto para um dia de chuva
O lugar onde a mulher se encontrava não era grande nem pequeno. Era uma sala retangular, aconchegante, mas, naquele exato momento, ambos, o lugar e a mulher, se mostravam sombrios. Do lado direito da porta de entrada, hirsuta, cheia de livros e cd's, deixava-se entrever, uma estante de madeira. 'Madeira de primeira', como teria dito o seu pai, se fosse vivo e se ali estivesse. Diria com uma voz de sentença, de última palavra, palavra de quem manda em tudo. Ninguém se atreveria a dizer o contrário: madeira de primeira! Por alguns instantes, a lembrança viva daquela voz de autoridade, causou-lhe um mal-estar medonho.
Ainda do mesmo lado, dentro da sala, havia um amplo birô, com tampo de vidro, e sobre ele, um calendário, papéis espalhados, uma luminária e o retrato do dono da casa. 'A casa também é minha', pensou Isaura, ainda que duvidasse das próprias palavras, enquanto percorria o olhar sobre os objetos. Resolveu então mover-se e caminhou temerosa até o fundo da sala, onde uma grande janela abria a visão de um reduzido mundinho, também sombrio e cercado de muros. Deu uma espiada no tempo. Uma chuva fininha caía sobre a grama verde, sobre a antena parabólica da casa vizinha, sobre os telhados, e dentro dela. Chovia dentro de Isaura. E aquela água, inundava - por mais que parecesse incrível -, a sala inteira, o sofá estampado com diáfanas flores verde-água, a preguiçosa, os livros e o cofre. Por fora, era um aguaceiro enxuto, se é que se pode imaginar uma coisa dessas. Mas para dentro, embora não se notasse, Isaura chovia.
Por alguns instantes pareceu perdida. Sentiu-se estranha dentro da sala, entranha em seus próprios pensamentos, ausente, como quem viaja de si. 'A casa também é minha' Repetiu dessa vez, com malcriação e com dureza, num timbre de voz que soava bem alto, apenas dentro da sua cabeça. Precisava conferir-se, assegurar-se de que também era a dona da casa. Por alguns instantes sentiu-se vitoriosa. Esboçou um sorrisinho de desdém, desafiando a tristeza dos pensamentos. Ajeitou os cabelos, fez projetos, arquitetou planos disso e daquilo. Isaura contemplava tudo ao seu redor com ares de superioridade. Procurou ignorar o tempo lá fora, a sala sombria, as lembranças amargas. Distanciou-se de si o mais que pode. Inventou-se outra. Olhou para a sala, para os móveis, como se estivesse acima de tudo, sobrevoando a vida. Chegou até a criar o modelo de mulher que seria.
Pegou lápis e papel e escreveu: Isso assim, isso assado. Para quando disserem aquilo de novo, digo isso. Para tal atitude, me calo. Vai ser assim e assim. Escreveu tudo. Traçou mapas que serviriam como guias, para endireitarem o curso das emoções. Previu achaques, represálias, e revidou-os todos, na imaginação, com frases e atitudes certeiras e calculadas. Investira-se de poder. Quase completamente satisfeita e ainda com o sorrisinho desdenhoso, Isaura voltou-se para a janela e viu a chuva intermitente. Um sobressalto apoderou-se dela. De repente, todos os solilóquios despencaram. A mulher tornara a chover. Isaura chovia grossos pingos por dentro. Chovia às imprecauções do poder, e inundava-se, vagarosamente, pela inexistência do amor, que o próprio poder destituía.
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados ao autor.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar,
criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra
sem a devida permissão do autor.
0
1 mil visualizações •
Denuncie conteúdo abusivo
1 mil visualizações •
Comentários
Belo texto. Chuva simbolizando solidão, amarguras, decepções, desesperanças. Flashes de sã consciência engolidos logo depois pelo peso de um materialismo que inibia o sentimentalismo. Gostei, parabéns!