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OS MOINHOS DA HISTÓRIA: Ou, Milton Rosendo no Mundo da Vida em Preto-e-Branco

• Atualizado

 

 

Ricardo Maia[1]

 

 

            Em Os Moinhos (EDUFAL, 2009, 123p. [Prêmio Lego - 2007]), livro de estréia do poeta alagoano Milton Rosendo (1974-      ), há uma dramaturgia que divide e subdivide o eu-poético, ou profundo, numa espécie de partenogênese metapsicológica: “Digo duas mulheres e poderiam ser bem mais que / dez, que vinte / ou até nenhuma.”. E isso, ao longo de páginas espetaculares de uma obra que já se apresenta controvertida a partir da capa.

A capa, uma criação do pintor miguelense Eduardo Xavier, destaca de um fundo totalmente branco, a figura de um jovem ciclista semi-nu, aureolado por um acrílico azul celeste, a pedalar em nossa direção. A pergunta que somos obrigados a fazer, de súbito, para não sermos atropelados por ele, na contramão da racionalidade moderna, é: o que sua figura de pele alva tem a ver com Rosendo e/ou seu entorno sócio-histórico? Ou ainda, e principalmente, com o título de seu livro?

            Para além do livro, e também na contramão da modernidade, Rosendo nos assegura, em seu pleno direito à licença poética, que o rapaz, de fato subjetivo, “nada” representaria... Mas as “rodas” em movimento de sua bicicleta veloz, sim, “Os Moinhos”... É quando então, sutil e radicalmente, somos provocados pelo poeta a interpretar esta – e outras – analogia(s) poética(s) de seus “moinhos” mentais. Pois, como ele próprio escreve, respondendo enfim e poeticamente às questões colocadas acima: “A poesia não se quer intacta escrevo somente para / esquecer-me sob as rodas sobre o sangue sob o céu / estilhaços de palavras detrito de poesia o que / quer que signifique isto: eu.

            Aqui, parafraseando a pergunta de Frantz Fanon, “interrogando a identidade” em meio “a prerrogativa pós-colonial” (BHABHA, 1998, p. 70), poderíamos formular mais outra questão: O que deseja Milton Rosendo, um poeta de pele acentuadamente morena e que é partidário do arco-íris?

            A resposta mais correta a esta questão crucial, ao que tudo indica no livro de Rosendo desde a capa, é que ele pretende finalizar a idéia de indivíduo nos revelando, tragicamente, aquele “caráter extremo” da “alienação colonial da pessoa” (BHABHA, 1998, p. 71). Uma “alienação” que, por outro lado, também produz o eu-poético através de uma “urgência inquieta” (“Pra lá pra cá pra lá pra cá pra lá pra cá”) que é motivada pela busca de uma forma poética mais apropriada para “o antagonismo social da relação colonial.” (BHABHA, 1998, p. 71). Essa inquietação alienada (“Nem sei se é de mim que ainda me lembro...!”), como ainda podemos perceber com Bhabha (1998, 1998, p. 71), é o que fende o “corpo” de sua vida-obra “entre uma dialética hegeliano-marxista” que, por sua vez, implica em “uma afirmação fenomenológica do Eu e do Outro e a ambivalência psicanalítica do Inconsciente.”

            Entretanto, a busca de Rosendo por libertar-se até de si mesmo, através da poesia (“escrevo somente para / esquecer-me”), é também existencialista e, portanto, auto-referente, ao passo que instiga o(a) leitor(a) a restaurar seu corpo poético – exatamente como fez Ísis com o corpo divino de Osíris – a partir dos “estilhaços de palavras” ou “detritos de poesia” que constituem e recompõem a pessoa do poeta. Pois só assim ele explora, ao invés de ser explorado, aquelas três “fronteiras deslizantes” assinaladas por Bhabha (1998, p. 71): “[...] a loucura do racismo, o prazer da dor, a fantasia agonística do poder político”. Todas estas revisitadas pelo poeta alagoano, não ao estilo beatífico do “On the road” mas, sinistramente, “sob as rodas sobre o sangue sob o céu”. Um “céu”, como aliás assinala o próprio poeta em seu “Cortejo” erótico, “que só sabe ser breu (como fel)”; pois também “sob” este “céu” baudelaireano: “Flores Lisérgicas [...] Flores do esquecimento de tudo que é ou era [...] abençoam com as unhas do frio” a sua escura “pele” preparando-lhe, então, “uma negra primavera...!

            Neste cenário (que evoca a idéia do “umbral” kardecista), como ainda nos conta dramaticamente o poeta (lunático?), sua “sombra tateia o outro lado da lua” tentando, já que excluída da face da Terra, reterritorializar-se como subjetividade-cidadã através de sua própria cartografia subpolítica, ou melhor, poética: “O meu país sou eu mesmo, um mapa negro do caos”. Mas tudo isso, na especificação de Bhabha (1998, p. 70), para produzir um “alinhamento familiar de sujeitos coloniais – Negro/Branco, Eu/Outro”.

            Neste ponto, então, é interessante perguntar: como a imaginação poética de Milton Rosendo configura esses sujeitos coloniais, ao alinhá-los desse modo “familiar”? Uma breve análise conteudística de seus “Moinhos”, logo ajudaria a responder esta questão, pois através desta é possível verificar nele, como nos contos de fada, alguns animais humanizados que são verdadeiras metáforas vivas para ilustrar a idéia de natureza humana. É quando, daí, é possível pressupor que tais sujeitos históricos (“Negro/Branco, Eu/Outro”) se encontram configurados, e confrontados, como “cão” e “gato”.

             Aliás, como um “gato persa” e um “cão” que, não por acaso, como indica o título do próximo livro de Rosendo ainda em elaboração, é da raça alemã “rottweiler”. Mas entre estes, como possível mediação, o poeta criando o “poema-jantar-de-prosódias”. E isto porque, como ainda nos explica Bhabha (1989, p. 74) lendo criticamente a obra de Frantz Fanon [“Pele Negra, Máscaras Brancas”]: “O estado civil é a expressão última da tendência inata ética e racional da mente humana”. Em outras palavras: “[...] o instinto social é o destino progressivo da natureza humana, a transição necessária da Natureza à Cultura.” (BHABHA, 1989, p. 74). Daí porque se dirigindo a um outro significativo, paradoxalmente, Rosendo diz: “[...] há verdade nenhuma, só a minha e a tua, / roçando a carne do abismo: sem lei e sem Deus...

            Ora: o que Rosendo encena, sinistramente, não é só a ‘moagem’ destroçante do corpo do homem negro pelas “rodas” da bicicleta do homem branco que nunca o vê (“Oh! O olhar dele. Sim. [...] O Olhar. [...] O Olhar. O olhar. [...]”, “[...] castanho olhar, jóia mais cara: / Senhor outro o humano peito jamais queira...”). Ele encena também uma situação emergencial que, por força de sua trágica eventualidade, obriga o jovem ciclista veloz, com seu típico “olhar pétreo e petrificante”, a também cair, “como a Medusa”, sobre o poeta moreno, sua vítima (BHABHA, 1998, p. 92): “Contrário à rosa / e ao que em mim / soe discernimento / me pus / de mim / para mim / como em distância / e de mim / em mim / aos poucos / fui me ausentando / e me colando / à tua impossível substância / amor / não sendo mais senhor / de mim / inteiro / e então me trituraste / nos idos / de um já envelhecido / janeiro / e para longe / de ti / e de mim / por fim / lançaste / o meu paradeiro.

            Pois, como “um Gato Persa” (ROSENDO, p. 96), este jovem ciclista apenas se levanta, ergue silencioso a bicicleta e foge friamente “traficando a morte” e “extinguindo tanto a presença quanto o presente.” (BHABHA, 1998, p. 92). A cena só confirma a hipótese, de Bhabha (1998), do destroçamento do corpo do homem negro pelos olhos do homem branco, que, desse modo socialmente violento, transgride seu próprio quadro de referência e perturba seu campo de visão: “Sem aviso, então, sucede a tragédia: / Carros, de encontro, indo, em colididas rotas, / um ao outro. / Berros, / xingamentos, / berros e mais berros, / acusações... / E, de repente, um disparo de revólver calibre 38... / Gritos.

            Percebe-se então o uso ardiloso, feito pelo poeta-Rosendo, da dramatúrgica e secreta arte da vingança em guerrilha cultural. Daí porque ele diz: “[...] o que eu delineio é o tumulto”. São nessas “horas cítricas”, sempre repletas daquelas certezas sensuais, que entrevemos o professor arrivista (ou melhor, “um mestre de miraculosas obscenidades”; ou ainda “um domador de feras que se interessava / por metafísica”), mas que, agora, identificando-se com Rimbaud, questiona o sentido da poesia – já vislumbrando a (im)possibilidade de desistir da poética: “Como não devorar a melodia desse pesadelo? / Talvez, livre das palavras, eu pudesse traficar armas para o meu ódio.

            Mas na impossibilidade humana de “Fuga da Palavra”, esse “ódio” é a matéria psicossocial que Rosendo sublima criativamente, através da poesia, trabalhando-a como “as larvas trabalham trituram transformam os destroços do cão sob as rodas” da bicicleta do jovem ciclista branco. É quando o poeta aproveita para homenagear à sua comunidade vivartística de destinos diferentes e brilhantes; isto é, um elenco personalidades radicais e reflexivas como, por exemplo, a da mexicana Frida Kahlo, a do austríaco Gustave Klimt e a do alagoano Paulo Caldas – só para citar aqui alguns nomes do campo da pintura. Daí as freqüentes referências às “cores”, na maioria dos poemas de “Os Moinhos”. Na certa para desconstruir poeticamente, através do simbolismo cromático, aquela “mitologia branca do pensamento europeu” (MILOVIC, 2004, p. 103, comentando as idéias de Derrida) e mostrar que, de fato, a linguagem é incolor, é só metáfora, não tem a cor das coisas que nomeia. “O gosto pelas cores”, – e aqui vale também citar Deleuze e Guattari (1992, p. 102-103) quando estes se perguntam sobre “O que é a filosofia?” e pensam os “personagens conceituais” e “estranhos” que ela faz viver –, “testemunha, ao mesmo tempo, o respeito necessário à sua aproximação, a longa espera pela qual é necessário passar, mas também a criação sem limite que as fazem existir.”

           Neste ponto, entende-se porque que as suas elogiadas “releituras” de Fernando Pessoa, Sylvia Plath, García Lorca e Gertrude Stein (cf. artigo de Edilma Acioli Bomfim para a coletânea “Poesia Alagoana Hoje” [MORAES, 2007, p. 30-31]), são uma adesão imediata à proposta saideana de uma “semiótica do poder ‘orientalista’” que problematiza o poder narrativo estrangeiro e estrangeirista (“‘Dobre à esquerda com a Rua Oswald de Andrade’”), introduzindo assim, de acordo com a teorização de Bhabha (1991, p. 186), “um novo tópico no território do discurso colonial.” O que significa uma forma de intervenção simbólica no “sistema de representação” do colonizador branco e ocidental – um sistema representacional congruente que é, sem dúvida, unificado por uma intenção político-ideológica (BHABHA, 1991). Daí porque, neste contexto sistêmico, Rosendo é um poeta tipicamente desencaixado, marginalizado e heróico, que, exatamente por tudo isso, tem que inventar subjetivamente para si próprio até mesmo um Outro país: “O meu país sou eu mesmo, um mapa negro do caos”. Esse “eu mesmo” é a autoconsciência do poeta, que, por sua vez, encarna o sujeito constituinte que o re-apresenta: “[...] sou o país de mim mesmo”.

            É a partir de tal adesão, portanto, que as “releituras” de Rosendo ativam, de modo poético, aquelas “forças potencialmente contraditórias e insurrecionais” fora-e-dentro dele próprio, ou seja, do sujeito colonizado. Forças micropolíticas que, sem dúvida, muito provavelmente têm o poder de “fraturar o discurso fechado da seleção natural” (BHABHA, 1991). Discurso este que, por sua vez, se converte ideologicamente em “darwinismo social” para que este último invoque os chamados “decretos da Providência todo-poderosa” (TEMPLE apud BHABHA, 1991, p. 186). Estes, um conjunto de dispositivos apelativos de controle social feito “a Deus e não à natureza” que tem o objetivo, segundo Bhabha (1991, p. 186), de “reter o colonizador num ponto determinado da ordem social”. Isto, de acordo ainda com a teoria de Bhabha (1991), faria com que o poder colonial, na especificação de Foucault, seja ao mesmo tempo a sua força e a sua eficácia na sujeição daquele que predomina, exclui e subjuga.

            Ora: dos “moinhos” de Milton Rosendo é nítida e ampliada a visibilidade do sujeito colonial redivivo. Pois, como escreve este poeta à “sombra clara” de “Augusto Lisboa” (personagem eurocêntrico e ego-centrado, que se inscreve, na “Fábula Escura” do poeta, como seu heterônimo ou máscara branca de “memórias cinzentas”): “[...] já não brilha ao castanho olhar jóia mais cara: / Senhor outro o humano peito jamais queira.” Não é por acaso que, inclusive, este último verso, que alude à parábola hegeliana do senhor e do escravo, repete-se sempre ao final das três estrofes do poema (aliás) intitulado “Cantilena Lusitana”.

             Mas note-se que este sujeito colonial não é incomum, é típico e cotidiano, já que ele se re-apresenta, como diz Bhabha (1991, p. 186), enquanto “objeto de vigilância, tabulação, enumeração e até mesmo de paranóia e fantasia.” No caso dos “Moinhos”, de Milton Rosendo: paranóia, pela perseguição constante do fantasma assustador do colonialismo e fantasia, que é social e sexual ao mesmo tempo, pois onde há censura, ou medo, há sempre e toda vida desejo (leia-se este no sentido freudiano): “Oh! O olhar dele. Sim. Oh! O olhar dela. Sim. [...] O Olhar. [...] O Olhar. O olhar.”, “[...] castanho olhar, jóia mais cara: / Senhor outro o humano peito jamais queira...”).

              Ao que indica a forma circular de um dos poemas do livro, o “país” de Milton Rosendo é um planeta em estilo concretista formado por “larvas” e “palavras”. Palavra de um poeta ultramoderno e “larvas” que “trabalham trituram transformam os destroços” de um “cão” – “Azul como um rottweiler”? – em decomposição. Imagem essa que, no mesmo poema, se confundindo tragicamente com a do autor, é bastante sintomática da baixa auto-estima deste; pois, como o poeta neste mundo, o “cão” também se encontra nele destroçado pelo atropelamento esmagador da História: “[...] os destroços do cão sob as rodas sobre o / sangue sob o céu sob lágrimas a poesia [...]”. Ou seja, não mais exatamente pela bicicleta-moedora de um jovem ciclista veloz (como imaginara Eduardo Xavier, quando criou a capa do livro de Rosendo), mas, desta feita, pelo “carro de Jagrená”: o veículo divino de um deus indiano que Anthony Giddens (1991, p. 140), associando-o ao capitalismo em seu atual estágio de desenvolvimento, o descreve assim: “[...] uma máquina em movimento de enorme potência que, coletivamente como seres humanos, podemos guiar até certo ponto mas que também ameaça escapar de nosso controle e poderia se espatifar.” E acrescenta: “O carro de Jagrená esmaga os que lhe resistem, e embora ele às vezes pareça ter um rumo determinado, há momentos em que ele guina erraticamente para direções que não podemos prever. A viagem não é de modo algum inteiramente desagradável ou sem recompensas; ela pode com freqüência ser estimulante e dotada de esperançosa antecipação.”

            Daí porque, mesmo estando submetido sinistra e historicamente a tal contexto capitalista ultramoderno, que o coloca neste mundo “sob as rodas” do carro divino de Jagrená, o poeta, contudo, observa estrategicamente resistindo à histórica “Ciranda das Horas”. Mas isto enquanto escreve poemando de modo tático: “Vou andando / Pra lá pra cá pra lá pra cá pra lá pra cá / Os ponteiros do relógio cavalgam o tempo / Pra lá pra cá pra lá pra cá pra lá pra cá / Meus olhos espiam os ponteiros / Pra lá pra cá pra lá pra cá pra lá pra cá / A esperança morre e revive em meus olhos / Pra lá pra cá pra lá pra cá pra lá pra cá / O tempo vai matando a minha esperança / Pra lá pra cá pra lá pra cá pra lá pra cá / A minha esperança vai matando o tempo...

            Esse tempo é, sem dúvida, “o tempo” da História, pois o poeta-Rosendo, como bom contextualizador que também é, vai “andando” em sentido horário até as “horas cítricas” de “17 de julho de 1997”: quando, enfim, a “esperança” ressuscita em seus “olhos” inchados de insônia – desmascarando a Revolução Francesa, por Alagoas. E isso enquanto traz de volta os últimos sinais perdidos do inacabado ano de 1968: “Flores podres incham de febre os olhos meus”... E foi pontualmente nessas “horas cítricas” de “tempos mal-dormidos” que “o tempo”, em sua “ciranda” histórica, fez fluir “Uma Outra Água” – verdadeira “Fenomenologia do Grito” –, no paraíso aquático dos marechais... Então, bem aos “olhos” vigilantes e aos ouvidos testemunhais do poeta (“eu ouço / arevolução [sic] derrubar os muros e as grades / do apartheid), “o tempo” lhe ensinou que “águas” passadas movem “moinhos”: “17 de julho às dezoito horas e quarenta e cinco / minutos / o poema / desabou / feito dilúvio sobre casas caiadas de miséria e pânico / o poema-fotografia-de-orquídeas foi encontrado / numa calçada / estirado / baleado assassinado repórteres examinaram-lhe / o cadáver / e vociferaram: / ‘Longa vida ao poema-jantar-de-prosódias!’

            O que resultaria para Milton Rosendo dessa aprendizagem histórica radical, não foi somente a constituição nele daquela espécie de “razão no plural” (MILOVIC, 2004, p. 85), foi também a descoberta de uma posição mais autêntica à sua autoridade poética no mundo, ou melhor, no “Grande Circo” social-global. Uma posição que, fazendo-o refutar e tripudiar a tese fukuyamana do fim da história, fê-lo inclusive localizar-se, prontamente, bem “[...] no fim que jamais houve (porque fim mesmo não havia...)”. Essa aprendizagem, pelo que parece, fez-lhe também pensar e lamentar o confronto entre Marx e Bakunin. Um “confronto infeliz”, como o qualifica Milovic (2004, p. 34), que, ao distanciar estes dois filósofos, separando suas lutas específicas e complementares, parece ter feito Marx perder bastante o dinamismo da ação (MILOVIC, 2004): “[...] o cinismo é a mais legítima de todas as políticas [...] / [...] acima do meu ombro esquerdo e algures, / num canto qualquer e mais acima, / em que o palhaço disse ‘ad infinitum’ / à esquerda e à direita e ao centro de qualquer coisa / e para sempre seja essa tempestade e além... [...] Depois, vieram as ondas e as ondas e as ondas”.

            Note-se que a recorrência à palavra “sob”, utilizada por Rosendo oito vezes no poema “As Palavras e as Larvas”, é bastante sintomática e parece estar assim neste para refletir e denunciar, de modo enfático, a posição de desvantagem fixa do poeta – e de sua poesia – nesse mundo social depressivo, depreciador e subterrâneo, ou seja: um “país” apenas subjetivo, particularista ao extremo e auto-centrado que, por isso, é só de si mesmo. Daí porque o poema referido, sobretudo pela forma narrativa quase-ininterrupta e intestina que o compõe, é certamente uma criativa representação literária do mundo atual e global em seu “delírio hegeliano” (MILOVIC, 2004, p. 11).

             Delírio esse que, sem dúvida, condena o poeta e sua humanidade a percorrerem caminhos astrofísicos, isto é, “CAMINHOS CIRCULARES” – com todas as letras maiúsculas: “[...] e ando para a morte como ando pela rua...” Por isso, em seguida, o poeta já diz prevenindo o(a) leitor(a) desguarnecido(a) por estar em situação análoga à dele: “O eco dos meus passos é o uísque dos anjos maus: / meu amor não é remédio para tua alma nua...!” Mas o diz, obviamente, “no engodo do poema”. Pois tais caminhos não são para “poetas ingênuos”, isto é, poetas inábeis no pensamento e que, por isso, jamais os associariam livremente ou poeticamente, por exemplo, à “ciranda”, ao “carrossel” e a este nosso “mundo” natural e social.

            Nascido de um enlace interracial, em que a mãe é branca e o pai negro, que era filho de um babalorixá (“Rotas embaralhadas / nos incertos tarôs / odus de borco nos búzios dum meu avô”), grande chefe de uma família simples, mas altamente complexa do ponto de vista sociocultural, – Milton Rosendo, já desde o útero materno (uma “urna de afogados”), convive com a diferença: “O menino, o mar lhe furta o amargo. / Digo mar e esse menino pensa distâncias.” Distâncias, note-se de passagem, psicossocioculturais: “O mar gargalha branco próximo ao colégio / onde se ensina somente o estático. / O mar não só urna de afogados, mas também tabuada e cartilha. / O menino anseia esse mar que se precipita como areia / e termina como céu. [...] Digo assim mar como se toda distância, enfim, convergisse para um azul sem pausas.

            O clima melancólico e oceânico (e talvez um tanto ressentido) que se produz nesse trecho do poema “Fuga da Palavra”, é convertido em outro completamente diverso e divertido mas com as mesmas intenções autobiográficas – só que, desta feita, com certa reserva, pois entre parênteses – nas quais Rosendo, parafraseando um famoso verso anedótico de Carlos Drummond de Andrade, nos conta: “(Quando nasci, veio um anjo meio underground e / me disse: / ‘Brother, o negócio é o seguinte: vai t...!’) – mas eu não quis nem saber.

            Essa reação de Rosendo já era, então, típica de um verdadeiro poeta: um poeta tão autêntico e legítimo que já vem ao mundo ciente do sentido da História, e, por isso, sabendo desde sempre que a razão deve ser nela realizada para a afirmação da criatividade artística; ou seja, uma afirmação nietzscheana da arte como a grande afirmadora da vida. Uma afirmação, portanto, que já não seria mais ética e, sim, poética. Mas uma poética através da qual seja possível pensar uma nova política do futuro – e de futuro – que afirme o dinâmico ou o Outro; pois, só assim, num sentido mais profundo, se constituirá uma nova democracia para o novíssimo sujeito constituinte. Será quando, enfim, o devir-criança-que-sofre na pessoa do poeta deixará de ser infinito ou absoluto – tornando-se, então, finito e frágil (penso aqui com MILOVIC e outros citados por ele, 2004).

            Por toda esta nossa leitura do livro “Os Moinhos”, de Milton Rosendo, discordamos radicalmente de Gláucia Vieira Machado (2009, p. 14) quando esta crítica diz, prefaciando o livro, que a “situação” do poeta – deste poeta alagoano –, “é simples: é só poesia.” Pois tal afirmativa não só (de)nega as complexas dificuldades enfrentadas por Rosendo, devido às difíceis condições de possibilidade históricas da sua vida-obra, como também reduz e mistifica a produção de conhecimento sobre essa desmobilizando qualquer crítica. Sobretudo quando Machado, no mesmo prefácio, inclusive diz: “Os amigos de Milton conhecem as páginas datilografadas feito cartas, levadas de mão em mão, como folhas ao vento. Tarô? I Ching? Escreva seu futuro, claro ou escuro. Há alguns anos é assim.”

            Críticas como essa – sobre uma obra produzida em Alagoas e por um criativo local, que já estréia laureado por certos departamentos universitários de literatura – não só sugerem que a “poesia” de Milton Rosendo é puro beletrismo provinciano, como também reforçam a percepção de que tais entidades locais não se preocupam com os autores alagoanos (cf. Marcos de Farias Costa in Gazeta de Alagoas, 17 out. 2010, Caderno B, p. B3). Ou então que, do ocultismo ao ‘cultismo’ nesses espaços de reconhecimento e consagração, de fato, “[...] não se sabe se emoldura a produção de conhecimento ou de contra-conhecimento.” (VILLAS BOAS, 2006, p. 32). E isto é realmente uma pena para a literatura alagoana.

            Mas como diz Rozendo, poemando hitchcockianamente esperançoso por esses contextos ou “CAMINHOS CIRCULARES”: “(No interior do sono, aninhados em árvores de sonho, / os pássaros / tramam uma nova alvorada) / O que realmente quero dizer: as heras se alastram pelo muro.

 

REFERÊNCIAS

BHABHA, Homi K. O local da cultura. 2ª reimp. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.

BOMFIM, Edilma Acioli. A literatura em Alagoas: um percurso lírico e histórico. In: MORAES, Maria Heloisa Melo de (org.). Poesia alagoana hoje. Maceió: EDUFAL, 2007.

COSTA, Marcos de Farias. Gazeta de Alagoas. 17 out. 2010, Caderno B, p. B3.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? 1ª reimp. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.

GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

MACHADO, Gláucia Vieira. Engenhos do logos possível: prefácio. In: ROSENDO, Milton. Os moinhos. Maceió: EDUFAL; Prêmio Lego, 2009.

MILOVIC, Miroslav. Comunidade da diferença. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Ijuí-RS: Unijuí, 2004.

ROSENDO, Milton. Os moinhos. Maceió: EDUFAL; Prêmio Lego, 2009.

VILLAS BOAS, Lincoln (org. Ricardo Maia). Testemunhos do vivartismo: escritos de intervenção cultural na Maceió-artística da pintura (1992-2004). Maceió: Catavento, 2006.

 

 



[1] É alagoano, mestre em psicologia social pela PUC-SP e faz pesquisas sobre a Alagoas-artística. 

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Ricardo Maia ESCRITO POR Ricardo Maia Escritor
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