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AS SONATAS DA RUA P

Ouvia-se ao longe, sempre após as seis horas da noite, o som suave das teclas de um piano. Mas não era qualquer piano, esse belíssimo instrumento do qual emanava tão doces melodias pertencia à casa de frente rosada situada na Rua Bovary. De lá se expandia o meigo e preciso dedilhar que a Senhora P. imprimia às teclas de marfim. E creia que não havia passante algum que não diminuísse ou até parasse seu caminhar para apreciar aquelas melodias, aquelas divinas sonatas.

Confesso que não sei muita coisa sobre quem seja a Senhora P., apenas o que sei é que há alguns dias essa distinta senhora está trancada em sua casa, absorta em seu amado instrumento feito da mais nobre madeira existente no reino. Essa é a conversa que circula pelas ruas, e dizem que até sua majestade o rei D. João VI já parou sua carruagem na Rua Bovary a fim de ouvir tais árias.

Meu caro leitor, acredito que ainda não o situei no tempo e no espaço de nossa narrativa. Pois bem, agora o farei: estamos no século dezenove, mais precisamente no período em que sua majestade D. João VI desfilava sua opulência abdominal e suas mãos com cheiro de galeto pelas ruas do nosso amado Rio de Janeiro. Época em que as mulheres se sacrificavam, se torturavam para se tornarem européias ou mais precisamente francesas. É nesse tempo e nesse lugar que encontramos nossa exímia e solitária pianista. Mas voltemos ao som do piano.

Dizia eu que todos paravam para apreciar as melodias que a Senhora P. fazia sair de seu magnífico piano de cauda, que a cada dia emanava uma melodia diferente. Certa feita, nossa pianista dedilhou uma sonata de Beethoven, a famosa opus 27 nº 2. Dizem até alguns estudiosos que Beethoven teria composto essa sonata para uma aluna, mas isso é outra história. Se imaginarmos que naquela época tal estilo musical estava restrito aos poucos ouvidos que frequentavam a seleta corte carioca, o que a Senhora P. fazia era brindar os ouvidos do povo não abastado com seu talento ímpar em executar os grandes nomes da música clássica.

Era maravilhoso encostar-se ao poste para ouvi-la deslizar suas mãos pelas teclas brancas e negras e sonhar com as melodias de Bach, Strauss, Wagner, Mozart e muitos outros.

Outra vez, enquanto caminhava pela famosa rua, notei que uma jovem se desfazia em lágrimas, enquanto ouvia a Senhora P. dedilhar vozes da primavera, de Strauss, e lhe confesso que me veio água aos olhos. O modo com que a Senhora P. percorria as oitavas do instrumento era, me desculpe o estrangeirismo, wonderful.  E Strauss é de fazer emocionar até mesmo o mais rude dos mortais. E a jovem chorava e secava os belos olhos que no mesmo instante voltavam a fluir água novamente. Senti-me compelido a socorrê-la. Feito isso, descobri que a juvenil senhora chamava-se Lenice e que estava a recordar seu grande amor que havia partido para terras lusitanas, um poeta de nome G. de Matos.

No dia seguinte, enquanto caminhava e versava com um mancebo conhecido nas proximidades como machadinho, jovem esse que a meu ver viria a se tornar um célebre escritor, me deparei com algumas pessoas conversando a respeito do estado de saúde da Senhora P. Diziam elas que essa jovem, que já não era tão jovem assim, estava com sua saúde debilitada. Que o piano lhe servia como alento a seu sofrimento. Pobre pianista! Me dizia machadinho. E eu retrucava que pobres ficariam os transeuntes quando não mais se movessem os dedos suaves da Senhora P. sobre as teclas firmes do seu piano. Pobres ficaríamos todos nós, sem o som suave e sensível das adoráveis sonatas.     

Deixando meu estimado acompanhante em sua tipografia, segui para a casa da pianista a fim de visitá-la. Mas sabia eu que não seria tão fácil assim, uma vez que a Senhora P. não se permitia muitas visitas. Não sei se era desprovida de beleza. Às vezes, até as mais belas não se permitem cortejar publicamente, preferem a simplicidade de um olhar, ou um galanteio ao ouvido. Coisas do coração. Deixemo-las.

Chegando à casa da musicista, fui recebido por sua governanta que me afirmou estar a Senhora P. em condições inapropriadas para uma visita. Dizia ela que sua senhora não se sentia bem e que por tal motivo não seria possível receber-me. Tentei lhe convencer de que minha visita era justamente por saber da convalescência de sua senhora e que fazia questão de prosear com tão distinta dama no intuito de animar-lhe o espírito. Não houve solução. A única frase que saiu de sua boca endereçada a minha pessoa, por intermédio de sua empregada, foi: — haverá música a partir das seis. E como prometido, houve. A bela concerto para piano e orquestra nº 21, 1º movimento, de Mozart.

Após a ceia, comecei a devanear como seria a Senhora P. Como seriam aquelas mãos que deslizavam tão suaves pelas teclas? Como seria a sua expressão ao tocar? Teria ela um rosto mais lívido ou corado? E os braços? Ah os braços! Verdadeiros laços que nos enlaçam! Certamente ela os teria compridos. Deixe-me dormir Senhora P.

Nova manhã no estado carioca, faz-se necessário sairmos às ruas, vivermos mais um dia, então vivamos!

Enquanto me dirigia a meu emprego, deparei-me com E. Poe, um velho conhecido de colégio. Poe estava agora se enveredando pela arte literária e também política. Caro amigo, dizia-lhe eu, a política não vai lhe fazer bem, apenas cultive o caminho das letras que bons frutos colherá. Mas sabemos que o desejo de seguirmos nosso coração em nossas escolhas é muito forte e Poe sempre me respondia com as mesmas palavras: — Quando o bichinho do desejo nos morde não mais conseguimos nos livrar, meu caro amigo. As letras me fascinam mas a política me arrebata. Também conversamos sobre a pianista da Rua Bovary. Aliás, nas imediações do bairro do Botafogo não se falava em outro assunto. Seguimos para o café situado na Rua da Bastilha. Durante longos trinta minutos dialogamos sobre o que teria acometido a tão distinta senhora. Poe, com sua maneira mais observadora, como lhe era de costume, afirmava ser o amor a única causa de tal ocorrido. O amor nos tira as forças, pronunciava Poe. Certamente essa moça ama e não é correspondida, essa é a causa de tanto pesar, e a maneira que a pobre encontrou para abrandar suas dores foi apegar-se ao piano, reiterava.  Às gargalhadas, eu lhe respondia que com toda certeza ele seria um bom escritor, pois sua mente era fértil de enredos amorosos. — Ah meu bom amigo, somente tu para extrair tal conclusão. Tudo a teu ver se finda no amor. És um sonhador incorrigível meu caro, um sonhador. Enquanto prosseguíamos com nossa conversa, adentrou no Café da Rainha o jornalista E. Zola. Zola viera ao Brasil para conhecer as excentricidades de que tanto ouvia falar lá na Europa. Mas com o passar do tempo foi se encantando com o clima, a fauna e a flora da terra de Cabral e decidiu não mais voltar ao frio europeu. Relatávamos Zola que o médico Dr. Molière havia feito uma visita à Senhora P. e que descobrira que a tal doença estava afetando os nervos da pianista. E que não conseguia explicar como a Senhora P. ainda conseguia executar suas sonatas ao piano diante de tamanha enfermidade. Era inexplicável, dizia o Dr. Molière. Para o amor não há explicação, entoou Poe. Não seja maçante com suas ideias românticas, respondeu Zola. — Senhores! senhores! não vamos entrar em debate por assunto tão vasto. E nos despedimos, seguindo cada um para seus compromissos.

Após o expediente, voltava eu para casa quando, ao passar pela Rua Bovary, notei que havia mais pessoas do que o habitual. Estaria a Senhora P. já morta? Alguns passantes comentavam que o estado dela era muito grave e que certamente ela não resistiria mais muito tempo. Outros afirmavam que essa mulher tinha um espírito muito forte e vibrante e que não se deixaria abater tão cedo. Mas o que ninguém se atrevia a fazer era deixar a Rua Bovary. Todos aguardavam para saber se haveria música na casa de frente rosada ou não. De repente houve um silêncio fúnebre. Ninguém ousou falar. Eram seis horas da tarde. As pessoas esperavam pela música. E, como um sopro divino, as melodias começaram a se expandir; tomar todos os cantos da tão conhecida rua. Era a Senhora P. que executava maravilhosamente Allegro de “La Tempestad del Mare” de Vivaldi. É comovente observar o efeito que a canção provoca nas pessoas. As expressões faciais, as lágrimas, os ouvidos atentos a cada acorde. O talento fascina e é fascinante. Em seguida, como um brinde aos ouvintes, a pianista executa uma música da obra de Liszt: a conhecida prelúdio e fuga sobre o nome de Bach. São treze minutos de êxtase pleno. A força dos acordes em alguns momentos e, em outros, a suavidade nas teclas. É uma bela canção. Ao final, os ensurdecedores aplausos com gritos de viva a Senhora P!

No dia seguinte, havia uma quantidade ainda maior de pessoas tomando a Rua Bovary, a espera de mais um concerto. Porém um fato intrigante deixou a todos apreensivos. Já passavam das seis e não se ouvi nenhuma melodia na casa de frente rosada. Somente o silêncio. Um silêncio funesto. Então, viu-se abrir a porta da casa da Senhora P. e sair sua governanta aflita pedindo que chamassem o Dr. Molière, pois sua senhora não estava nada bem. Alguns minutos depois o médico já se encontrava no recinto. E enquanto examinava a enferma, as pessoas teimavam em não irem para suas casas. Queriam saber como ela estava, se ainda poderia sentar-se ao piano. Os minutos se passavam e a angústia tomava conta dos rostos. Mais alguns minutos e a porta foi aberta novamente. Por ela passou o Dr. Molière, agora cabisbaixo e tristonho. As únicas palavras que o Dr. pronunciou foram:

— voltem às suas casas. A Senhora P. não mais executará sonatas nessa casa.

Era um domingo de sol, dia quente na cidade maravilhosa, quando o enterro percorria as ruas e era seguido por centenas de pessoas. Algumas choravam, outras aplaudiam, e todas se emocionavam com a força com que aquela mulher havia lutado para conseguir levar um pouco de emoção através da música a gente que ela nem conhecia. Por ordem do próprio rei D. João VI, que também acompanhou o funeral, foi executada a canção Nocturne op. In Flat Major de Bach.

No jornal da segunda-feira saiu uma nota na coluna do Sr. Zola que comentava a comoção popular durante o enterro. E mais, o mesmo jornal trazia uma ordem assinada pelo próprio rei D. João VI que determinava a alteração do nome da Rua Bovary para Rua P. em honra a sua moradora mais distinta.

 

Penélope S.S.  Maceió 6-3-10      14h:31

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AdrianoRockSilva ESCRITO POR AdrianoRockSilva Autor
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