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“EU NÃO SOU EU E NEM VOCÊ”: Ou, Martha Araújo e a insustentável leveza de ser alagoana

• Atualizado

Ricardo Maia

 

                                                                                                    “Seu drama não era de peso, mas de leveza.

                                                                                                     O que se abatera sobre ela não era um fardo,

                                                                                                                 mas a insustentável leveza do ser.

                                                                                                                                                                                  (Milan Kundera)

 

  

          Martha Araújo (1943-    ) é uma artista plástica alagoana, brilhante e pós-modernista, que sempre se exaspera quando tentamos interpretar a sua obra a partir de um ponto de vista que não seja o dela próprio. Este fato torna o seu engajamento, na contemporaneidade estética, tão divertido quanto suas histórias de vida narradas por ela.

          Na certa, por isso, a obra que Martha ora expõe, na Pinacoteca Universitária da UFAL, nos causa tanta sensação à primeira vista. Seu extraordinário papel de catalisador de questões culturais inscritas em nossa memória coletiva, mais especificamente na memória histórica do nordeste brasileiro, a faz falar não apenas da artista que a produziu. Mas também, e sobretudo, do que ela fala sobre o seu/nosso contexto histórico. Aliás, um contexto fortemente marcado, como nos faz ver a própria artista, por uma identidade étnico-racial plural tipicamente brasileira. Ou mais exatamente alagoana, como sugere, numa das obras, a pregnância quase exclusiva das cores vermelha, azul e branca encontradas na afrancesada bandeira do Estado de Alagoas.

          Digo “quase exclusiva”, porque estou me referindo aqui ao extenso conjunto de fotos de indivíduos de pele bruna, em sua grande maioria, que se encontra exposta com o título “Você em Mim” (2010). Obra que confirma, muito criativamente, a teoria psicológica da importância fundamental do Outro na constituição do sujeito; como também a noção de que as ideias e ações têm conseqüências (conseqüências, às vezes, totalizantes!). E sempre são guiadas, contextualmente, por um sistema de valores. Fato este que exigiria, de todo/a e qualquer artista contemporâneo, segundo Hans Haacke (1995), um reexame crítico e autocrítico constante.

          De acordo ainda com Haacke (1995, p. 16), um artista contemporâneo muito bem fundamentado na sociologia do campo artístico de Pierre Bourdieu (1930-2002), é o papel catalisador da obra de arte que faz com que um produto artístico não seja unicamente uma mercadoria ou um meio de se fazer sucesso para obter dinheiro e notoridade. Pois de acordo com ele ainda, os produtos artísticos “representam um poder simbólico, um poder que pode ser posto a serviço da dominação ou da emancipação e, neste sentido, um campo ideológico com repercussões importantes na vida cotidiana.” (HAACKE, 1995, p. 16)

          Mas é renegando exatamente esse “poder” ― ou “infrapoder radical”[1], como o teoriza, por sua vez, Cornelius Castoriades (1987-1992, p. 127) ― que Martha Araújo prossegue, em sua trajetória criativa, na histeria do momento pós-moderno. Nesse refúgio anistórico de autoproteção da maioria dos artistas pós-tudo, em Maceyork, ela consegue sem querer estimular três coisas: 1) a despolitização da estética, com sua conseqüente neutralização da arte; 2) o imaginário desligamento de toda e qualquer ligação da obra de arte com suas condições de produção; e 3) a transformação da criatividade artística numa fonte de descobertas estéticas “puras” que, em conseqüência, produz um insidioso “efeito de museu”. Um fenômeno ideológico que, segundo Bourdieu (1995, p. 89), “arranca a obra de todo o seu contexto, exigindo um olhar ‘puro’”. Portanto, dócil e apaziguado que tende a eliminar a pessoa crítica para atrair, com exclusividade, os “pensadores da banalidade” (HAACKE, 1995, p. 39), isto é, os intelectuais midiáticos cheios de charme. Por isso, sim, “a recusa de Martha”, percebida e assinalada epistemologicamente por Márcio Rolo (2012), um crítico carioca e curador da mostra, que assina o primoroso texto do catálogo da exposição.

          E tudo isso para quê? Para realizar um trabalho de universalização da cultura humanista da arte em Alagoas (ou seja, no espaço público alagoano). Um trabalho que, queira ou não o/a artista, sempre acaba por resultar naquela espécie de “monoteísmo cultural” (BOURDIEU, 1995, p. 65). Daí, por exemplo, a absolutização da cor branca no simbolismo organizacional intenso de sua exposição. Uma exposição que por sinal coincide historicamente, num belíssimo sintoma artístico-social, com o ano do centenário dO Quebra de Xangô: um acontecimento lastimável que, na Maceió de 1912, marcou de modo traumático a história das perseguições políticas à cultura afro-religiosa no Brasil.

          No entanto, não se trata aqui de suspeitar de sentimentos racistas incorporados pelo recente trabalho de Martha. Muito pelo contrário. Trata-se, sim, de pressupor, levando-se em conta também o atual debate multiculturalista sobre a identidade na pós-modernidade, que o predomínio simbólico da cor branca, nesta sua mostra, nada mais é do que uma alusão implícita a questão da “branquitude”. Uma questão que pode ser entendida como sendo “o lado oculto do discurso sobre o negro.” (BENTO, 2002, p. 147). Ou é, inclusive, a mais oportuna tradução visualista do enunciado de Arísia Barros (2010, p. s/n), um ativista alagoano do movimento negro local, no qual ela diz: “A cor do mérito no Brasil é branca”.

          Queiramos ou não, o que nós expressamos, nos ensina Bourdieu (1995, p. 89), “leva em conta a circunstância na qual ela [a obra de arte] é dita.” E complementa: “A boa linguagem é aquela que tem propósito, que vem a calhar e que tem eficiência.”

           Ora: pelo que tudo indica na bela exposição de Martha Araújo, a prova disso que diz Bourdieu encontra-se, discretamente sinalizada, no conjunto de dois pequeninos quadros intitulado “Invólucros” (2012). Nestes, a artista parece confirmar, com bastante eficácia simbólica, esta aguda observação sociológica. Pois neste conjunto de duas obras em pequeno formato ― onde a artista destaca, respectivamente em cada uma delas, as cores negra e branca com linhas de algodão tecidas sobre papel e sem imagem alguma impressa sob estas ― podemos perceber, com nitidez semiótica, a famosa dialética jacksoneana do “Black or White”. Uma dialética que, a nosso ver, faz uma espécie de conexão espiritual entre a exposição aqui abordada e a memória histórica dO Quebra de Xangô neste ano do seu centenário.

           Ao estabelecer tal conexão, esta dialética não somente desdobra a intenção rememorativa e crítica da obra de Martha Araújo, em seu “inconsciente político” (JAMESON, 1992), como também nos mostra que a branquitude hegemônica em sua exposição é uma espécie de equivalente mascarado da diversidade cromática que a cor branca, por exemplo, contém em si. Mas é desse modo que o poder simbólico do contexto ― sempre influenciado por coações e censuras cada vez mais sutis, que circulam em todo campo social ― se inscreve nesta mostra de Martha tornando atual, no presente vivo, a presença do passado. O que significa, na teoria de Bourdieu (1995, p. 111), uma evocação libertadora que solta o presente que está preso no passado. Essa evocação, de acordo ainda com este sociólogo francês, “obriga a afrontar tudo que o passado aparentemente morto e enterrado anuncia a propósito do presente.” (BOURDIEU, 1995, p. 111).

          Um exemplo? As duas distintas cadeiras de madeira e palha, em estilo colonial (uma de balanço e a outra não; esta última sintomaticamente pintada de branco), a sinalizarem, obviamente, esta presença residual do passado colonialista nos dias de hoje. Dois signos de um mobiliário antiquarista, que, citados de modo surreal pela artista, nos ajudam a identificar e explicar com mais facilidade, no simbolismo intenso da referida exposição, as “alusões políticas sutis” (BOURDIEU, 1995, p. 88) à história alagoana. Uma história, como se sabe, feita de colonização e exclusão.

           É quando então, finalmente, obtemos resposta à seguinte pergunta: O que, da totalidade sócio-histórica do mundo alagoano, a atual linguagem artística de Martha Araújo acompanha? Nesse exato momento, nos percebemos, na exposição dessa grande artista, visitando inclusive uma Alagoas profunda que ali já se abate sobre o público-espectador local confirmando, (de-)negativamente, a sua/nossa identidade pós-moderna: “Eu não sou eu e nem você.”

            Ou seja: Sou a insustentável leveza do ser alagoano.

 

REFERÊNCIAS

BARROS, Arísia. “A cor do mérito no Brasil é branca”. Rev. Venha ver: economia, cultura, ecologia, turismo. Maceió, n. 42, ano X, p. s/n, 2010. Entrevista concedida a referida revista.

BENTO, Maria Aparecida Silva. Branquitude: o lado oculto do discurso sobre o negro. In: CARONE, Iray; SILVA BENTO, Maria Aparecida (orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre a branquitude e o branqueamento no Brasil. 2ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2002.

BOURDIEU, Pierre; HAACKE, Hans. Livre-troca: diálogos entre ciência e arte. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

CASTORIADES, Cornelius. O mundo fragmentado: as encruzilhadas do labirinto / 3. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987-1992.

JACKSON, Michael. Namber ones. Sony Music, [1984]. 1 CD-ROM.

JAMESON, Fredric. O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo: Ática, 1992. Cap. 1, p. 15-103: A interpretação: a literatura como ato socialmente simbólico.

KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Rio de janeiro; São Paulo: Rio Gráfica, 1986.

 



[1] De acordo com Castoriadis (1987-1992, p. 127), que é psicanalista e filósofo marxista grego, o “infrapoder radical” constitui uma “manifestação e dimensão do poder instituinte do imaginário radical”. Ele é um poder que não se localiza, portanto constantemente circulante, que é exercido pela sociedade instituinte, anteriormente a “todo poder explícito, e muito mais, antes de toda ‘dominação’”. Em outras palavras: ele é um “poder instituinte” do “imaginário instituinte, da sociedade instituída e de toda a história que nela encontra seu final passageiro. Por conseguinte, num sentido, é o poder do próprio campo social-histórico, o poder de outis, de ninguém.”

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Ricardo Maia ESCRITO POR Ricardo Maia Escritor
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