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UM DOCE DOS CONFINS DAS ALAGOAS: uma leitura crítica do romance “Doce de Mamão Macho”, de Benedito Ramos

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                                                                                                                                       Ricardo Maia[1]



 

INTRODUÇÃO

 

            Há seis anos recebi do escritor alagoano Benedito Ramos um convite quase recusável, para mim, não fosse a enorme capacidade que ele possui de ultrapassar, afetiva e intelectualmente, os efeitos dos nossos diferentes e divergentes posicionamentos na Maceió-artística dos anos 1980 – década na qual nós dois nos colocamos, muito definitivamente, em pólos opostos da Arte em Alagoas.

            O convite, feito a mim reiteradas vezes quando nos encontrávamos por acaso na Editora Catavento, para eu fazer uma “apreciação crítica” de seu delicioso “Doce de Mamão Macho” (2006, 124 pág.), sempre me deixava meio atordoado; e, em conseqüência, esquecido de perguntá-lo sobre o que de fato ele entendia por “crítica”... Essa informação era para mim muito necessária para que eu aceitasse, ou não, o seu convite – já nos prevenindo, é claro, sobre algum possível dissabor entre nós dois devido a tal “crítica”; pois só assim me sentiria mais a vontade e seguro ao procurar ler seu livro num sentido mais amplo e radical de “leitura”, como gosto de fazer quando se trata realmente de Arte. E o livro de Benedito Ramos, como pude constatar, era realmente artístico. Da forma ao conteúdo.

            É também importante observar, à guisa de introdução, que essa amplitude e radicalidade às quais me refiro, são dois traços característicos da complexa “epistemologia multicultural” (SEMPRINI, 1999, p. 81) do novo academicismo, encarnada e desenvolvida tão bem pelos chamados “Estudos Culturais” (MATTELART & NEVEU, 2004). O que, de minha parte, implica aqui não só em dizer quem sou, quem fui, serei ou deixarei de ser... mas, sobretudo e inclusive, de onde estarei falando.

            Por isso, quero frisar bem que escrevo aqui sobre o livro de Benedito Ramos em um solo epistemológico sempre fronteiriço; isto é: poliplurimultiinter e transdisciplinar – embora minha graduação e pós-graduação tenham sido apenasem Psicologia. Esta segunda, mais especificamente, em nível de Mestradoem Psicologia Social. Daí porque não sei ao certo se o que comunico aqui sobre o referido livro é de fato “crítica literária” ou “crítica social”. As duas certamente... O que sem dúvida significará, neste último caso, o reconhecimento implícito de que há “...tantas formas diferentes de psicologia social, muitas das quais se desenvolveram no contexto de outras ciências sociais que não a psicologia.” (FARR, 1996, p. 9).

            Devo ressaltar aqui também que a atitude crítica é compreendida, por mim, não como uma “Arte ou faculdade de julgar”. Muito menos ainda como um “ato (...) de censurar”. Mas como uma “forma de análise, comentário ou apreciação teórica e/ou estética” (cf. Dicionário Aurélio, 1986, p. 501) do romance de Benedito Ramos; que é também, sem sombra de dúvida, um testemunho histórico-ficcional que merece ser abordado por uma leitura crítico-transversalizada; como é, aliás, a que inscreve sua noção de literatura filiando-se a Philarète Chasles (1798-1873): um precursor da psicologia social de formatação sócio-antropológica que nos trouxe a importante informação, segundo Bomfim (2003), de que cada povo está dentro de sua literatura. Pois, como assevera Vigotski (apud BEZERRA, 1999, p. XII), por sua vez, corroborando dialeticamente essa informação de Chasles: “...a arte é o social em nós.”

            Pressupondo daí a extrema complexidade relacional entre arte, indivíduo e/ou sociedade, Vigostski admite que a estética pode ser definida como disciplina pertencente ao campo da psicologia aplicada, acrescentando ainda que o enfoque sociológico da arte não anula o enfoque estético mas o admite como complemento. (BEZERRA, 1999).

            Na certa concordando com Chasles e Vigostski, Moscovici (2003, p. 165) critica os “usuários” de psicologia social por preferirem persistentemente, ainda hoje, uma visão de mundo presente em determinados meios acadêmicos que os fazem “descuidar o que poderiam ter aprendido de artistas e escritores sobre psicologia humana e mecânica de uma sociedade.” Agindo assim, esses usuários não se guiariam pelos princípios epistemológicos que podem levá-los a uma análise do que é raro e sobre o qual pouco se sabe.

             Uma análise desse tipo ajuda a lançar nova luz sobre os fenômenos já estabelecidos e familiares. E isto, sem dúvida, deve levar as ciências sociais a criarem novos e mais profundos aspectos da realidade social (MOSCOVICI, 2003). Pois, como assevera ainda esse teórico romeno: “Será somente a exploração de novas realidades que possibilitará à psicologia social progredir e ser retirada dos esquemas referenciais das atividades comerciais e industriais a que ela está hoje confinada.” (MOSCOVICI, 2003, p. 164).

 

1 UMA MARIA “QUASE SEM DESTINO”

 

            Em “Doce de Mamão Macho”, Benedito Ramos faz bastante justiça a literariedade maior e alagoana que seu sobrenome já indica. E procedendo assim, ele nos conta a história de vida sui generis da travesti interiorana “Maria Querência”: que é representada literariamente, numa genial sacada psicanalítica de autor, como uma “invenção” de si e da própria mãe, Dona Bilinha; pois essa velha senhora sempre desejara ter uma filha (p. 19). Por isso Mário Querêncio, desde muito cedo em sua vida, era, como se pensava dele, um menino “nascido errado” porque andava e gesticulava “como uma menina” (p. 19). Mas como ele próprio diria, anos tarde, em tom yavéhico e convicto de si mesmo: “Sou o que sou e estou muito feliz assim.” (p. 86).

            Na cena imaginária, como estamos a ver, o Mariozinho era apenas um menino que encenava inconscientemente o desejo da própria mãe. E sua mãe, por isso, até o “ajudou mentir para todo mundo” (p. 19). O menino acabaria levando essa encenação desejante, às últimas conseqüências, em sua vida e na vida de uma região inteira nos “confins das Alagoas” (p. 38) – aonde a estrada que dava acesso a esta, “parecia não ter fim” (p. 38), como nos conta o narrador que a descreve assim numa espécie de cartografia anatômica do desejo feminino: “Era um inferno. Distância infeliz vendo serra de um lado e outro e aquela estrada comprida ao meio.” (p. 38).

            Mas o que o menino Mário Querêncio fazia com o que sua mãe fazia dele, desde a sua mais tenra idade, era levar ao paroxismo uma espécie de cultura do travestismo generalizado. Uma cultura psicossocialmente compartilhada por quase todos na cidadezinha sertaneja de “Bom Jesus dos Pecadores”. Até mesmo pelo temido coronel Nicácio Pereira, pai de Jesuíno. Pois como parece nos sugerir Benedito Ramos: se o coronel não teve os mesmos motivos de “Querência” para desejar-se outro na sua vida e na dos outros, travestindo-se em corpo, como ela fez, – travestia-se em alma quando o assunto era emoção profunda e verdadeira. Não é por acaso, note-se de passagem, que o chamado cinema autoral ou de arte é um elemento dessa cultura teatralizada (isto é, do simulacro) que o leitor mais atento e cinéfilo pode perceber ao longo de sua leitura do romance de Ramos: “Ela [Dona Da Luz] era apenas a matriarca da família, que só entrara em cena no final da vida de seu marido [o Cel. Nicácio Pereira].” (p. 67, grifo nosso)

            É possível pressupor aqui a intenção velada de Benedito Ramos em homenagear literariamente a Sétima Arte, talvez com o objetivo de casá-la algum dia com seu livro. Aliás, qualidade estética e imaginação autoral são o que não falta neste para ser convertido em excelente roteiro de filme, ou mini-série de televisão, – dessas mesmas que, de vez em quando, a Rede Globo vem produzindo com sucesso.

            Essa intenção de Benedito Ramos, na criação de seu livro, é percebida inclusive logo que um leitor cinéfilo examina os títulos que ele dá para os capítulos que estruturam o desenvolvimento do mesmo. Pois todos eles parecem aludir implicitamente à interessantes produções cinematográficas, como, por exemplo: aos casamentos de Betsy, de Maria Braun, de Muriel e do Meu Melhor Amigo; à Cama de Mentiras; ao Dormindo com Estranhos (ou com o Inimigo); à Filha de Ryan; ao Cheiro da Papaia Verde; ao Doce Novembro; ao Preço de uma Escolha, do Desafio ou do Desejo e, ainda, ao Último dos Moicanos.

            Este último, aliás, uma alusão talvez não lá tão implícita aos últimos ‘caciques’ durões da política sertaneja numa Alagoas surpreendida pelas dificuldades e mudanças provocadas por novos tempos. Tempos modernos e pós-modernos. Tempos esses que são assinalados assim, de modo sociográfico, pelo narrador do romance:

 

Bom Jesus tinha mudado em tudo o que havia de pior. Principalmente, em época de eleição. As pessoas, principalmente os pobres, tinham perdido o restinho de dignidade e se sujeitavam as coisas mais ridículas para ganhar uns trocados. Pareciam viver de plantão para acompanhar os comícios musicais, aplaudir, vaiar, puxar briga e fazer tudo por dinheiro. Ninguém tinha mais responsabilidade com nada, nem com a própria família. Era cada um por si como um bando de selvagens se rasgando por migalhas, caindo no chão e estrebuchando um em cima do outro para receber porcaria [...]. Era outra geração. A televisão tinha contado tudo sobre seus direitos, que não se resumiam naqueles casebres de taipa pensos e sem reboco, mas em uma carteira assinada, salário mínimo, férias e décimo terceiro. Não existia mais matuto besta. (p. 68 e 88).

 

2 CULTURA DO TRAVESTISMO GENERALISADO

 

            Mas voltando aqui ao que vínhamos abordando mais acima, citarei a seguir um trecho do livro de Ramos que nos sugere a existência, até mesmo nos “confins das Alagoas” (p. 38), de uma cultura pós-moderna do travestismo generalizado no momento exato em que esta está sendo produzida, psicossocialmente, até mesmo pelo Coronel Nicácio Pereira – “O último baluarte da oligarquia sertaneja” (p. 63):

 

[...] mesmo se fazendo de forte vivia bisonho. E quando sentava na varanda olhava horas a fio para o céu como se procurasse alguma coisa naquele verão escaldante onde quase nenhuma nuvem aparecia. Ficava tapeando dizendo que estava com medo do açude secar, mas no fundo não era o céu nem o sol que o entristeciam, era saudade de sua filha mais velha que beijava o seu cangote quando estava ali mesmo, naquela cadeira de balanço. Vez por outra uma lágrima escorria furtiva que ele acudia rapidamente sem deixar vestígio. Quando a voz embargava, ele tossia, tossia e depois pedia um copo d’água. Era a poeira. (p. 11)

 

            Ora: uma coisa tão séria quanto divertida que Benedito Ramos nos faz perceber subliminarmente, em seu romance, é que a travesti Maria Querência e o Coronel Nicácio Pereira são, de fato subjetivo, uma espécie de In e Yang. Ou de dois lados da mesma moeda que circula na economia simbólica da pequena Bom Jesus dos Pecadores. Isso fica definitivamente claro para o leitor mais atento quando, depois da morte deste líder oligarca, é Querência a única pessoa entre “os Pereira” (p. 88) que inspira a mais total confiança da matriarca da família, e do povo da cidade, para ocupar o seu lugar na liderança política local. E, note-se de passagem, em caráter de urgência... Por isso é enganoso pensar, como parece nos prevenir o autor nas entrelinhas, que a travesti Maria Querência representa um mundo à parte dentro da Bom Jesus dos Pecadores; porque ela, na verdade e o tempo inteiro, encerra em-si e para-si (isto é, em seu corpo e alma) toda a sócio-cultura daquela cidadezinha católica do interior alagoano.

             Assim sendo, logo no primeiro capítulo do livro, a idéia freudiana de um teatro social da histeria já se apresenta ao leitor como sendo o leitmotiv do romance de Ramos – ao passo que tal idéia evolui, ou resvala, aqui e ali, para a concepção de “simulacro” elaborada teoricamente por Jean Baudrillard (comentado por DESCHAMPS, 1991). Essa outra, uma clara indicação da existência de uma cultura pós-moderna já em pleno vigor – até mesmo naquele “fim de mundo” (p. 99) nos “confins das Alagoas” (p. 38) – se encontra em muitas frases e trechos do referido livro. Como, por exemplo, no seguinte trecho no qual Querência resiste reflexiva e dilematicamente a se incorporar e/ou ser incorporada aos esquemas corruptos (e corruptores) da politicagem local em véspera de eleição para prefeito da cidade:

 

[..] não havia uma alternativa, a não ser romper com o restante dos Pereira. Seria uma briga de mentira, cá pra nós, igual à de Zé Marreca com o filho. E tudo ficou combinado assim, inescrupulosamente, na frente dela. Foi um choque. Não di.sse nada naquele momento, mas foi pra casa extremamente abalada e com vontade de desistir. E desistiria se Dona da Luz não a procurasse na mesma noite e a persuadisse a ir em frente. Foiem frente e voltou a se arrepender quando viu a encenação contra o prefeito e as faixas de repúdio penduradas por toda a cidade. Sem falar nos discursos ofensivos de Zé Marreca e os nomes de ladrões à família Pereira. [Maria Querência] Não sentia à vontade e não entendia como se passava a um papel daquele. Era um preço muito alto pelo amor de Jesuíno. (p. 110, grifos nossos).

 

            Na sua “peleja” (p. 84) com “o peste do Zé Marreca” (p. 92), seu malicioso e letal adversário político, chegaria a ouvir dele a seguinte observação capciosa: “–– Dona Maria Querência nós assistimos a sua atuação no caso dos ‘Sem Terra’.” (p. 85, grifo nosso).

            Essa “atuação” (ou encenação) cotidiana, que implica sempre uma dissimulação teatralizada e constante das emoções mais profundas e verdadeiras, típica também do cultivo do ódio e da moral do esconderijo, é o que faz, do começo ao fim do livro de Ramos, a católica “Bom Jesus dos Pecadores” temer e descreditar o conhecimento da verdade como recurso à libertação humana – uma das grandes máximas do cristianismo que reconhece “a verdade” como revolucionária: “Conhecerão a verdade, e a verdade libertará vocês” (JOÃO, 8/32). Daí um certo déficit cognitivo manifestado, aqui e ali, até mesmo pelo narrador onisciente em relação à compreensão das coisas vividas mais profundamente pelas personagens: “Jesuíno coçava a cabeça e parecia não ter nenhuma palavra mais para dizer. [...] Os dois [Jesuíno e Maria Querência] ficaram por algum tempo parados olhando um para o outro sem que uma só palavra pudesse ser dita.” (grifos nossos, p. 28).

            O resultado desses silêncios sintomáticos é a deflagração, entre elas, da “moléstia dos cachorros” (p. 96). Ou, na melhor das hipóteses psicanalíticas, daquela “peste emocional da Humanidade” (da qual nos fala Wilhelm Reich [1982] no livro “O Assassinato de Cristo”), que contamina e ataca quase todos e todas do romance de Ramos. Uma “peste fascista” (REICH, p. XXX) que é constantemente indicada, em estilo naturalista, no corpo inteiro do texto, pela expressão “raiva” (e suas correlatas: “vocifera”, “ira” e “fúria”, entre outras). “O fascismo, na sua forma mais pura,”, nos explica Reich (1988, p. XIX, XX e XXI), é o somatório de todas as reações irracionais do caráter do homem médio. [...] não é mais do que a expressão politicamente organizada da estrutura do caráter do homem médio, uma estrutura que não é o apanágio de determinadas raças ou nações, ou determinados partidos, mas que é geral e internacional [e, por isso,] permeia todos os corpos da sociedade humana de todas as nações. [...] o fascismo é sempre e em toda parte um movimento apoiado nas massas, revela todas as características e contradições da estrutura do caráter das massas humanas: não é, como geralmente se crê, um movimento exclusivamente reacionário, mas sim um amálgama de sentimentos de revolta e idéias sociais reacionárias. [...] O fascista é o segundo sargento do exército gigantesco da nossa civilização industrial gravemente doente. (Grifos do autor).

           Nesse sentido caracterial, o fascismo é, em suma, a atitude emocional básica do homem oprimido da civilização autoritária da máquina, com sua maneira mística e mecânica de encarar a vida (REICH, 1988). A partir desse ponto, o que nos chega do conhecimento reicheano acerca do pensamento humano comum é o seguinte: “A mentalidade fascista é a mentalidade do ‘Zé Ninguém’, que é subjugado, sedento de autoridade e, ao mesmo tempo, revoltado. Não é por acaso que todos os ditadores fascistas são oriundos do ambiente reacionário do ‘Zé Ninguém’.” (REICH, 1988, p. XXI). E a isto, Reich (1988, p. XXII e XXIII) acrescenta o seguinte com profundo conhecimento de causa psicossocial:


 [...] o fascismo internacional nunca será derrotado por manobras políticas. Mas sucumbirá perante a organização natural do trabalho, do amor e do conhecimento em escala internacional.

           Na nossa sociedade, o trabalho, o amor e o conhecimento não são ainda a força determinante da existência humana. E mais: estas grandes forças do princípio positivo da vida não estão ainda conscientes do seu poder, do seu valor insubstituível, de sua extraordinária importância para o ser social. [...] A queda da nossa civilização é inevitável se os trabalhadores, os cientistas de todos os ramos vivos (e não mortos) do conhecimento e os que dão e recebem o amor natural, não se conscientizarem, a tempo, da sua gigantesca responsabilidade. (REICH, 1988, grifo nosso)


             Com base nesse esclarecimento reicheano, citarei a seguir alguns trechos aonde “a peste do fascismo” (REICH, 1988, p. XXX) – ou melhor, “a moléstia dos cachorros” (p. 96) – é vivenciada, cotidianamente, pelas personagens de Benedito Ramos. Vejamos: “... Jesuíno [...] quase subia nas paredes de raiva.” (p. 27) / “Tinha vontade de matar Maria Querência. Olhava para ela, naquela sua tranqüilidade e se controlava para conter a raiva.” (p. 24) / “...Jesuíno estava calmo, a raiva inicial havia passado...” (p. 14) / “...a sua reação de raiva, esta, iria confundir a esposa [Adelaide].” (p. 22) / “Ele [Jesuíno] teve vontade de apertar o seu pescoço, como fez com Maria Querência, mas controlou-se, porque estava no meio da rua.” (p. 74) / “Adelaide não teve outra a não ser conter a sua ira e voltar para casa. (p. 74) [...] Sua raiva não passava assim, rapidamente. Ficava remoendo o dia todo. [...] Era mais fácil esquecer as pancadas do segundo marido, do que aquela rasteira que Jesuíno lhe dera.” (p. 75) / “[...] sua atitude em revigorar a raiva e no mesmo instante deitar com ele foi bastante estratégica.” (p. 33, grifos nossos).

 

3 GÊNERO CONSAGRADO DE “MULHER-MACHO”

 

            O nome “Maria Querência” já traz a indicação do elaborado trabalho criativo de Benedito Ramos como romancista: “Maria” (para dizer o seu gênero consagrado de “mulher da roça” [p. 100]) e “Querência” (que, de fato, amalgama numa só palavra dois termos indicadores de subjetividade desejante: “querer” e “carência”). Já o nome “Jesuíno”, por sua vez, parece querer aludir muito sutilmente à identidade cultural fronteiriça deste outro protagonista. Um hibridismo identitário que se constitui, simbolicamente, bem na linha divisória entre o Cristo (daí “Jesu/s”) e “o bicho” (p. 10) suíno a chafurdar, irracionalmente, em ataques de fúria raivosa – típica de um homofóbico – à pessoa de Maria Querência. “Era muito difícil de entender porque logo na primeira noite, depois do casamento, Jesuíno Pereira estava quase matando Maria Querência, sua mulher, com quem havia casado fazia algumas horas.” (p. 11-12). E essa dificuldade de entender o real social vivido com Querência persistia na mente provinciana de Jesuíno, mesmo quatro anos depois; pois ele ainda, segundo o narrador:

 

Não podia entender como tinha conseguido amar daquela forma Maria Querência. E mesmo depois de tudo não conseguia odiá-la. A raiva havia sumido e sentia um carinho enorme pelo seu jeito bruto de viver. Saiu dali pensando em sua vida. Uma vida que havia construído durante os últimos quatro anos longe da autoridade do pai. Estava voltando [de São Paulo-SP] outra pessoa. Mais livre e menos preso àquela terra e àquele mundo. (p. 18).

 

           Percebe-se aqui não só a indicação de um processo de aculturação sofrido, por Jesuíno, durante sua experiência paulistana; mas, também, que a noção bergsoniana de um eu-profundo que se diferencia de um eu-superficial junta-se, no livro de Benedito Ramos, às idéias freudianas de estranho e inconsciente – suas possíveis correlatas –, para que o narrador, de modo onisciente, conceba as subjetividades de suas personagens como sendo psicossocialmente esquizoestruturadas. Daí ele sinalizar um estranhamento de si, vivenciado muito introspectivamente por Jesuíno: “Estava voltando [de São Paulo-SP] outra pessoa” (p. 18)... e insinuar, inclusive, que o verdadeiro motivo dele ‘exilar-se’ na ‘Paulicéia’ não era só afastar-se o mais longe possível de Querência, mas também, e principalmente, de sua própria homossexualidade recalcada. Isso fica bastante claro quando ele reencontra “o filho postiço” (p. 24), que (todos acreditavam) teve com ela, e que exerce sobre ele um ‘fascínio’ tal a ponto de Jesuíno não resistir em manifestar seu desejo de levá-lo consigo para São Paulo:

 

Júnior estava um rapaz. Alto magro, e nem podia negar que parecia com ele [Jesuíno], quando tinha a mesma idade. [...] Júnior ao lado do pai, fascinava Jesuíno pelo seu porte de rapaz. Por isso não resistiu convidá-lo a ir com ele para São Paulo. [...] Para ele, a presença daquele menino ao seu lado, com seu apego, sua alegria devolvia-lhe uma paz que nunca mais tinha encontrado. Sentia falta daquele afeto. Sentia falta de uma família e, sobretudo, de filhos. Dessa forma, não tinha dúvida de que aquele era o lado bom de sua relação com Maria Querência que não conseguia esquecer. Não estava acostumado a ser chamado de pai. Era estanho, mas era doce demais para deixar passar aquele momento. Talvez por isso, para ouvir que era pai, que quis a sua companhia e não se omitiu em responder as suas inúmeras perguntas, nem de acariciar os seus cabelos, ou beijar-lhe o rosto. Era seu filho. Não tinha dúvida de que o seu coração o adotara. [...] No fundo, era como se tivesse mesmo aquele filho de um casamento pleno. (p. 43, 44, 65 e 66).

 

            Ora: não foram os fortes traços de masculinidade que mais chamaram a atenção de Jesuíno Pereira quando ele, pela primeira vez, botou os olhos em Maria Querência– “mulher esguia, de mãos pouco delicadas” (p. 11) e com “jeito de mulher-macho” (p. 76)?

 

4 DOCE DE MAMÃO TRANSGRESSIVO

 

            Em “Doce de Mamão Macho”, um outro grande indicador da criatividade de Benedito Ramos como romancista, está no fato dele colocar, no contexto interiorano nordestino de Alagoas, temas complexos e delicados que geralmente são debatidos apenas em espaços metropolitanos ou não-periféricos. Como, por exemplo: homossexualidade, travestismo, homofobia, assédio moral/sexual, violência contra a mulher, contra o homossexual e... casamento gay. Aliás, temas esses que vêm sendo debatidos acirradamente graças à presença daquelas “minorias” cada vez mais “ativas”, em nossa sociedade, das quais nos fala o psicólogo social Serge Moscovici (1989, p. 58).

            Daí a bela ação solidária que o romance de Ramos também pode significar, sobretudo, para essas minorias. Uma ação eivada de profundo sentido multiculturalista produzido, na certa, pelo cientista social que ele também é e nunca se esquece disso quando faz literatura. Pois como nos informa o sociólogo Andrea Semprini (1999, p. 94): “Os multiculturalistas sublinham a importância do reconhecimento para ajudar a cultivar auto-estima em membros de certos grupos menos favorecidos.”

            Sobre o tema da legalização da união civil homossexual, por exemplo, é interessante citar o seguinte trecho no qual Benedito Ramos lhe faz uma referência tão pueril quanto divertida – mesmo se considerarmos as circunstâncias do enlace entre o jovem Jesuíno e o travesti Maria Querência: “...era uma união que, para a opinião pública de Bom Jesus dos Pecadores, tinha sido válida.” (p. 23).

            Na certa também por sua criatividade multiculturalista com “C” maiúsculo, e ao contrário do que lhe ocorre como pintor, Benedito Ramos, como escritor deste saboroso “doce de Mamão” inversivo (“O doce tinha um estranho poder de fazer a pessoa mudar a preferência sexual” [p. 46]) que é este seu romance, se revela um artista totalmente dentro de seu próprio tempo e lugar. E de tal modo, que se ele não disser de sua Maria Querência o mesmo que Tennessee Williams e Gustave Flaubert disseram de suas personagens antológicas (Blanche DuBois e Emma Bovary) – com toda certeza, uma certa Maceió dirá de sua fictícia (?) cidadezinha nos “confins das Alagoas” (p. 38): “Bom Jesus dos Pecadores sou eu!”

            Será quando, enfim, “a verdade” (p. 14) será dita e ela nos libertará. E todos nós, então, poderemos despir a nossa farsesca história social para passá-la a limpo... Pois com toda razão, ciência e arte, Benedito Ramos parece acreditar que é disso – e só disso – que mais carecem (e no fundo desejam) todos os Jesuínos, coronéis Nicácios e “Marias Querências” que existem fora e dentro de nós.

 



REFERÊNCIAS



BEZERRA, Paulo. Prefácio à edição brasileira. In: VIGOTSKI, L. S. Psicologia da arte. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

BOMFIM, Elizabeth de Melo. Contribuições para a história da psicologia social no Brasil. In: JACÓ-VILELA, Ana Maria; ROCHA, Marisa Lopes da; MANCEBO, Deise (orgs.). Psicologia social: relatos na América Latina. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

DESCAMPS, Christian. As idéias filosóficas contemporâneas na França (1960-1985). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

EWALD FILHO, Rubens. DVD news: guia de filmes. Volume 1. São Paulo: NBO, 2001.

EWALD FILHO, Rubens. DVD news: guia de filmes. Volume 2. São Paulo: NBO, 2001.

FARR, Robert M. As raízes da psicologia social moderna: 1872-1954. Petrópolis-Rj: Vozes, 1996.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

MATTELART, André; NEVEU, Érik. Introdução aos estudos culturais. São Paulo: Parábola, 2004.

MOSCOVICI, Serge et alA sociedade: entrevistas do Le Monde. São Paulo: Ática, 1989.

MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. 4ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2003.

RAMOS, Benedito. Doce de mamão macho. 1ª ed. Maceió: Catavento, 2006.

REICH, Wilhelm. O assassinato de Cristo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Bauru-SP: EDUSC, 1999.

VÍDEO: 1998. Dicionário dos melhores filmes. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

 


[1] A primeira versão deste texto não tinha este formato, pois ele havia sido produzido para ser lido em voz alta, por mim, na noite de 20 de junho de 2006, data do lançamento do livro de Benedito Ramos aqui resenhado. No entanto, uma primeira edição 50% reduzida de seu corpus original foi publicada mais ou menos um mês depois no Caderno Dois, p. B1, do O Jornal em 22 de julho de 2006. A versão aqui publicada não é, portanto, exatamente igual a essa primeira; pois, há pouco, sofreu alguns acréscimos e retoques textuais para esta edição on-line.

[2] É alagoano, graduado em psicologia (CESMAC) e pós-graduado em psicologia social (PUC-SP).

 

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Ricardo Maia ESCRITO POR Ricardo Maia Escritor
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