Tema Acessibilidade

Lembranças das alegrias de segunda mão

Com um presente de Papai-Noel no sapatinho não dava muito para sonhar, pois somente havia fumaça na chaminé de sua imaginação. Até onde a idade permitia fantasiar, a infância, em muitos vértices, sombria, perdera logo a magia com as insanidades bizarras dos adultos. Os poucos brinquedos com que era presenteada eram normalmente de segunda-mão, o que não deixava de lhe incitar a alegria da conquista.

Lembra de sua genitora, que no açoite da vaidade de sua tia mais nova (e irmã daquela) - somente nove anos mais velha que Rosinha -, remontara aos tempos antecedentes ao mercantilismo mediante a prática do escambo. Propusera à irmã trocar sua única boneca por uma calça comprida – que nem precisava de muita vaidade para cobiçá-la, considerando ser uma peça do vestuário feminino da crista moda – em benefício da filha de quatro aninhos. Sem vacilar, a proposta foi acatada. Os olhos da criança chisparam brilho de contentamento. A boneca era soberba: quase do seu tamanho, possuía cílios abundantes, cabelos lisos e compridos; ser-lhe-ia a companhia, doravante - o repositório de muitos mimos, factível do exercício de seus instintos maternais.

A calça foi usada pela tia adolescente na primeira matinê do bairro. O encanto da novidade fora substituído pela sensação amarga de nostalgia pela perda da boneca, que lhe era a representação de um sonho pueril realizado tardiamente, mas realizado. A irmã optou por não desagradar a cria e negou-se, peremptoriamente, ao desfazimento da troca: o negócio jurídico estava selado, consumado.

Essa boneca sobrevivera a várias intervenções maldosas de seu irmão do meio. Sempre que Rosinha afrouxava a vigilância – normalmente, quando estava doente -, o peralta lhe cortava os cabelos, lhe pintava as bochechas, atribuindo-lhe a aparência de um monstro, à imagem e semelhança do Chucky – o brinquedo assassino. A estimada amiga viajava de Recife a Maceió para ressurgir novinha à custa do irretocável trabalho do pronto-socorro das bonecas, então, localizado na Ladeira da Catedral, por conduto de sua avó materna. Três vezes o episódio se repetira, até a decretação de sua morte cerebral. É uma das marcas acesas de sua infância.

Outro brinquedo de segunda-mão que não lhe sai da memória foi a sua primeira bicicleta – uma Caloi. Era ela vermelha, mas possuía marca de solda em todas as junções; o freio funcionava perfeitamente, a ponto de fornecer à ciclista – veloz e furiosa - o mínimo de segurança nos imprudentes contornos da Rua do Supapo, a despeito dos gritos e rogos do pai e da mãe, respectivamente. Não lhe importava a gozação dos que Papai-Noel premiava com bicicleta zero metro, pois aquela se prestava à grande utilidade. Ademais, suas referências eram modestas e, inobstante os precoces percalços por que amargara, teceu uma infância preservando uma porção para o lúdico.

Rosinha tem alegria no material que compõe suas reminiscências e pensa “que cumprir a vida/ seja simplesmente/ compreender a marcha/ e ir tocando em frente...”; ela hoje se “sente mais forte/ mais feliz, quem sabe...”; leva somente “a certeza de que muito pouco” sabe; mas, feliz e sabe que pode dar a seus próprios rebentos um Ipod de última geração. (O lamento fica por conta de não poder lhes dar uma bicicleta com receio dos assaltos).

Simone Moura e Mendes

(Publicada em O Jornal, edição de 16/10/2012)

www.simonemouramendes.com

Attachment Image
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
0
1 mil visualizações •
Denuncie conteúdo abusivo
Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
Maceió - AL

Membro desde Setembro de 2010

Comentários