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"Sou dos caminheiros da luz!"

“Sou dos caminheiros da luz!”.  Não sabia de onde ela extraíra essa entidade, que, talvez, sequer existisse à época. Hoje, o Google fê-la ter certeza que sim. Trata-se de um lar espírita. Não brincaria se suas irreverências juvenis, seu espírito travesso aquilatassem a seriedade da instituição.

Tequinha, alguns anos mais nova, endeusava a criatividade com que a amiga fulana aplicava trotes e mais trotes à residência dos sete irmãos, todos seus amigos, onde o clima de testosterona era abrandando com a presença da mãe – única mulher que compunha aquele lar. Eles se revezavam em responder, com impropérios vários, às ligações telefônicas de alguém, com o tom de voz alterado para ser passar por pessoa idosa, dizendo-se ser dos “caminheiros da luz”. Isso sob a impotência da mãe atônita: “meu filho, não brinque com isso!...”. E o Zeca, desdenhava da cautela religiosa da genitora pela certeza de tratar-se mesmo de trotes. “Ora mãe, caminheiros da luz não existem. É alguém querendo tirar onda com a nossa família”. “Ô Zeca, pode ser coisa séria, tenha mais respeito, meu filho!”.

A diversão maior era o encontro com a turma na esquina da rua, de onde era possível sentir o cheiro de maresia com o sopro do mar do Pina. Os irmãos, indóceis, relatavam ao grupo acerca das ligações telefônicas dos “caminheiros da luz”. Tequinha, a despeito da pouca idade, já sabia guardar segredo e fazer “cara de paisagem”, expressão que não denunciasse seu regozijo interior pelo sucesso do intento. Fulana, por sua vez, tentava fazer crível o telefonema esdrúxulo: “e vocês nem deixam a pessoa dizer o propósito da ligação?!”.

Bem, essa e outras lembranças decerto não teriam submergido tão fluidas não fosse o salutar reencontro com a amiga fulana, o que foi proporcionado por essa maravilha da engenhosidade humana, embora muitas vezes usada de modo inescrupuloso, chamado facebook. Foi essa amiga quem a ensinou a fazer pipoca, mediante a recomendação de que teria de segurar com força o cabo da panela, uma vez que o estouro do milho faria com que a tampa voasse longe. Tequinha, tendo fulana em alta conta, menina de inteligência invejável, seguia à risca essa recomendação, com a qual a maturidade suscitou muitos risos.

Ainda guarda, com carinho, a lembrancinha para o seu aniversário de 15 anos que a amiga fulana criou e produziu com maestria: uma sandalhinha de cartolina, com detalhes dourados, em representação aqueles anos, senão por circunstâncias familiares que o consciente busca afogar. Aliás, foi o engenhoso labor da amiga uma poderosa contribuição para a realização da festinha, cujas fotografias denotam o sucesso do evento, mesmo à custa de meses acumulando refrigerantes, leite condensado e outros insumos, devido a escassez de recursos financeiros que permeava sua infância e adolescência, conquanto nada lhe faltasse do indispensável.

Forte mesmo foi a lembrança de quando demandou a farta inteligência da amiga para auxílio numa redação da escola. “Não devo fazer porque usaria expressões que não lhe são compatíveis, como ‘pois que’, ‘visto que’, ‘entretanto’...”. Frustrada, ela disse, de si para si: “algum dia, ainda serei capaz de usar esses tais de ‘visto que’...!”. A amiga fulana, na literalidade, não foi dos “caminheiros da luz”, mas ainda resplandece em suas doces reminiscências.

 

Simone Moura e Mendes

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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
Maceió - AL

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