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DEDICATÓRIAS PARA MIM: memórias e representações sociais de um autografomaníaco*

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                                                                                                                         Ricardo Maia

 

 

                                                                                                                 "Um dia vou ser apenas uma biografia."

                                                                                                                                          (Marly de Oliveira)

 

 

 

Volta e meia, nos últimos três anos, uma idéia aqui e ali vinha me cercando. Mas só há pouco, e com muito cuidado, resolvi encará-la. O efeito psicológico de seu cerco, ao meu estado de espírito alagoano, era positivo e nitidamente manifesto: eu sentia uma entusiasmada vontade de saber que, além de estimular em mim a atividade pesquisadora, me deixava cada vez mais consciente da minha insuspeitada e narcísica autografomania. Esse poderoso cerco era mais freqüente e incandescente quando eu abria um livro, em minha biblioteca, e neste, aleatoriamente, eu reencontrava e relia alguma dedicatória assinada para mim.

A ideia sitiante era a seguinte: reconstituir a minha rede de sociabilidade intelectual a partir de autógrafos dados a mim em livros que comprei ou ganhei. Faria isso em estilo memorialístico, destacando e comentando as representações literárias e/ou sociais contidas nas dedicatórias. Tal reconstituição, obviamente, seria parcial ou mesmo inacabada. Pois nem todos os meus livros autografados seriam mais encontrados, depois de duas famigeradas mudanças. Duas mudanças de endereços residenciais que se constituíram numa espécie de quase-despejo, subjetivamente legitimado, de dois “estranhos familiares” (Sigmund Freud): minha biblioteca e eu. Além disso, nem todos os intelectuais que conheço lançaram ou me deram seus livros, nem comprei ou ganhei deles todos os que foram lançados.

Ciente disso, e de que eu ainda estava vivo e desejando viver, fui buscar no que restou de minha destroçada biblioteca os livros autografados especialmente para mim. A empreitada foi dolorosa, doída demais. Mas, ao mesmo tempo, restauradora... Pois como previu minha sobrinha Micheline, quase três anos antes, na dedicatória mais extensa feita para mim: “Por vezes na longa caminhada da nossa vida passamos por perdas, angústias, decepções... / Mas tenha certeza que sua caminhada e seu trabalho não são em vão. Por mais longo que seja o dia, virá sempre o repouso da noite e é nele que Deus trabalha. / Creia que Deus fará descer a chuva na hora certa. E essa chuva será de benção. A tua colheita será grandiosa. / Meu tio saiba que você nunca está só. Deus sempre ta ao seu lado, por vezes em silêncio e por vezes trabalhando. Basta sentir.”

E foi o que fiz: “sentir”... E eu próprio senti muito... Senti, inclusive, a falta de vários livros caros e raros. Livros que na certa só eu os possuía e lia num raio, quase infinito, de kilometros quadrados partindo-se dali. Senti muito também e principalmente ter perdido, com várias deles, as dedicatórias autografadas por seus próprios autores. Ou outros Outros significativos para mim. Pois se comparado ao grande número de exemplares bibliográficos e hemerogáficos de minha pequena Alexandria ― (refiro-me aqui, metaforicamente, à lendária Biblioteca da antiga cidade de Alexandria), há até pouco localizada em um apartamento no décimo e último andar dum edifico chamado “Portal do Sol 1”, ― o resultado dessa busca foi relativamente pequeno, mas muito significativo para mim: uma “colheita [...] grandiosa”, como diria Micheline, que já constituía, portanto, um número suficiente de dedicatórias autografadas para eu realizar a insistente ideia já objetivada mais acima.

O número de autógrafos encontrados (XY) não era correlato ao número de livros autografados (YZ). Havia um deles que me foi dedicado pela autora (a pesquisadora acadêmica Raquel Villardi Miranda) e também por dois dos três poetas alagoanos (Marcos de Farias Costa e Lúcia Guiomar) estudados por ela, em nível de Mestrado, no opúsculo Lira e Angústia: poesia alagoana hoje (EDICOM, 1987. 40 pág.).

O segundo passo da pesquisa foi fichar todos os escritos autográficos para analisá-los, sistematicamente, e só então inferir sobre eles com segurança. Realizada a análise e a interpretação dos dados, passei ao relato da pesquisa visando produzir, a partir dele, o presente artigo para este caderno de cultura. Vejamos a seguir o que deu para comunicar aqui: 

ADMIRADORES INTELECTUAIS ― Pastora (2011) e Marly (1983) são duas poetas que têm o mesmo sobrenome (“de Oliveira”). Pastora é alagoana e Marly é capixaba, mas todas duas são românticas. Com Fernando Gomes, Jurandy Valença, Michel Jaidan Filho e Olga Borelli, elas compartilham “admiração” por mim. Mas cada qual ao seu modo.

Por exemplo: enquanto a de Fernando é uma “admiração maior”, a de Pastora é simplesmente “admiração”. Há também as admirações por mim que me chegam acompanhadas: a “gratidão” acompanha a de Marly; “uma amizade para sempre” segue a de Olga; a de Jurandy é seguida pelo “respeito” e a de Michel pela “estima”. Esta última forma de afecção, entusiasticamente creditada a mim pelo historiador penedense Ernani Méro, é, aliás, “muita”; enquanto que a do romancista Benedito Ramos é, por sua vez, “a mais alta”.

Com a paulistana Olga Borelli ― que em junho de 1981 veio a Maceió, a meu convite e de Gustavo Leite, para lançar o perfil Clarice Lispector: esboço para um possível retrato (Nova Fronteira, 1981. 148 pág.) ― a expressão “amizade” desponta, portanto, pela primeira vez, em sua materialidade lingüística, nos autógrafos dedicados a mim. Assim, sou “amigo” de Anilda Leão, Benedito Ramos, Carlos Pimenta, Ernani Méro, Fernando Gomes, Gláucia Lemos, Lúcia Guiomar, Marcos de Farias Costa, Maria Heloisa Melo de Moraes, Vicente Oliveira e um “amigo querido” de Marly de Oliveira e de Raquel Villardi Miranda.

Nesse processo de cordialidade iluminada, não só obtive “afetuosamente” declarações autografadas de “amizade” a mim. Obtive também, em linguagem autográfica, manifestações de “simpatia”, “apreço”, “estima”, “carinho” e “respeito” por minha pessoa. Aliás, “muito carinho”. E todo esse “afeto” foi, na certa, o que levou Marly de Oliveira e Millôr Fernandes a imitarem o Cristo. Ela, doando-me seu “coração agradecido” e ele a si próprio em tempo ainda de ditadura militar: “AO RICARDO, O MILLÔ 1980”. E este famoso cartunista assim o fez anexando à sua lacônica dedicatória, com letras maiúsculas, uma caricatura de si mesmo. Nesta, um desenho bem humorado feito com caneta esferográfica azul, ele se auto-representa de corpo inteiro oferecendo-me, com a mão direita, uma flor de cinco pétalas. Tudo isso enquanto verte profundamente comovido, do olho esquerdo, uma lágrima caricaturada.

Oito anos mais tarde, Dydha Lyra também desenha dedicando para mim as seguintes palavras: “Ao irmão de arte Ricardo Maia com abraço de Dydha Lyra. Maceió/AL, 1988”. Mas, ao contrário de Millôr, ele faz isso com letras tão minúsculas que faz alguns precisarem de lupa. Além do mais, sua criação autográfica, que é acompanhada de uma quase-caricatura minha que ele criara na Galeria Karandash, de Maria Amélia Vieira e Dalton Costa, não é fixada em livro nem de corpo inteiro. No entanto, como o cartunista carioca, Dydha também a produz com caneta esferográfica azul.

Por essas e outras palavras autografadas para mim, vejo agora que Clarice Lispector está certa: “Amizade é matéria de salvação”. Mesmo que esta amizade seja obtida, como se fosse uma espécie de capital monetário, apenas em noites de autógrafos. E vivenciada, num nível muito simbólico, somente através da materialidade lingüística de dedicatórias redentoras.

UM NOME BOM ― Minha amizade com Olga começou nos inícios de 1981, quando estive em São Paulo, com Gustavo Leite. Eu, a fim de conhecer de perto o fascinante trabalho em dança-teatro de Marilena Ansaldi; Gustavo, que embarcara comigo no mesmo vôo, ao contrário de mim, estava em “Sampa” a serviço da Fundação Teatro Deodoro (FUNTED). Na ocasião, a bailarina-atriz estava em cena, pela segunda vez, com o espetáculo Escuta, Zé!, baseado na obra homônima, de W. Reich (    -    ), Escuta, Zé Ninguém!. Era de Olga Borelli a produção cultural deste.

Ao me aproximar da criativíssima Marilena Ansaldi, nos bastidores do Teatro Franco Zampari, na capital paulista, fui apresentado por ela à Olga Borelli, com quem logo fiz amizade e, com Gustavo Leite, convidei-a para uma visita à Maceió. Então, neste mesmo junho de 1981, com o apoio cultural da Fundação Teatro Deodoro (FUNTED), recebi Olga no “Paraíso das Águas”, hospedando-a na casa-de-praia do médico Jose Cândido Vieira, em Paripueira. No Teatro de Arena Sérgio Cardoso, organizei e promovi a noite de autógrafos para o lançamento de seu livro sobre Clarice Lispector. Noite na qual Olga autografaria para mim um exemplar de seu livro com a seguinte dedicatória: “Para Ricardo Maia, eta nome bom, minha admiração e amizade para sempre. Sua Olga junho/81”

Hoje é interessante notar aqui que ― além da “admiração”, do “afeta” e da “amizade” que dizem (e inclusive registram!) ter por mim ― existe entre as dedicatórias do teatrólogo Homero Cavalcante e de Olga Borelli uma conexão de sentido que remete todas duas, claramente, a uma espécie de personalismo nominalista que é bastante comum nos processos de produção de eu, no campo artístico, e também nas demandas de distinção propriamente social numa sociedade de classes: “[...]Para Ricardo Maia, eta nome bom”, escreve ela. Ele, por seu turno, registra: “Ao Ricardo que é Maia, com o afeto de Homero.” (Grifos nossos)

Vale notar aqui também que foi graças à Olga Borrelli que fiquei sabendo da existência de Marly de Oliveira e sua poesia no livro Contato (Ed. Imago, s/d. 128 págs.), emprestado a mim por Olga. “Eu caio em ti como bruta pedra na água”. Retidos na memória já no ato da primeira leitura, dali adiante os sentidos deste e de outros versos de Marly convergiriam instantaneamente para o meu viver poético, impregnando ainda hoje a minha vida.

“ALABUCANA” ESQUECIDA ― Mesmo sem se lembrar de mim, em suas memórias da dança em Alagoas, nem da minha humilde contribuição masculina à história de sua academia de ballet, Eliana Cavalcanti (2008), contudo, autografa para mim com “carinho” nesse clima de amizade intelectualizada. E ela faz isso com muita verdade e justiça quando me representa, socialmente, como “um batalhador da cultura e das coisas belas”. Uma representação que, sem dúvida, se refere a minha participação testemunhada por ela no movimento vivartista da “Cruzada Plástica”, acontecido vinte e um anos antes do lançamento de seu livro 50 anos de plié: memórias de uma alabucana (Catavento, 2008. 410 pág.).

Mas se por um lado o “amante da dança” que eu era ― e ainda sou! ― não foi memorizado por Eliana Cavalcanti, por outro, este não deixaria de ser lembrado pela capixaba Marly de Oliveira (1983): uma escritora já há muito considerada a quintessência da poesia brasileira que a bailarina “alabucana” iria interpretar em 1982, sob a minha direção, porém desistiu nos primeiros ensaios do espetáculo Contato. Um espetáculo de dança-teatro, baseado no livro homônimo da referida poeta, que infelizmente só foi realizado, de modo parcial, tendo a voz de Neilda Cavalcante a declamar Marly: “Ah, o terrível é o tempo! Quem salva do tempo esse passivo contemplador do amor e do infinito? Quem se compadece e me assegura?” (o que cito aqui é da versão adaptada por mim).

Minha participação na liderança do movimento vivartista, desde o Grupo Vivarte (1984-1985) a Cruzada Plástica (1987-1988), foi também o que motivou o poeta e crítico Marcos de Farias Costa (1988) a me representar como “o ‘Moisés’ das artes plásticas alagoanas”. Aliás, “um Moisés com toques de Walter Benjamim.” Pois, para Marcos, eu havia heroicamente dividido as águas no nosso aquático ‘Paraíso’ libertando a Maceió-artística, dos anos 1980, do jugo pictórico-academicista de Pierre Chalita.

Nesse mesmo ano de 1988, essa representação seria compartilhada por Gláucia Lemos. Só que, diferentemente de Marcos, esta escritora e crítica de arte baiana não atribuía tal façanha a um EU e, sim, a um NÓS: “Queiram ou não,” escreveria Gláucia (1988), “a nossa interferência, a minha e a de vocês [vivartistas-cruzadistas] ― cronologicamente ― será sempre, e jamais deixará de ser, uma espécie de ‘divisor de águas’. Haverá sempre a arte de Alagoas ‘antes de’ e ‘depois de’. Isso, sem vaidade, mas de olhos abertos.” (Cf. carta de 12 de janeiro de 1988, enviada de Salvador-BA, a Ricardo Maia)

Daí porque, doze anos depois, percebendo minha posição mediadora na cindida Maceió dos vivartistas e dos chalitistas ― posição essa que me fazia ocupar, portanto, um entrelugar no campo artístico alagoano da década de 80 ― o semioticista Philadelpho Menezes assim autografaria, para mim, o seu livro A Crise do Passado: modernidade, vanguarda, metamodernidade: “A Ricardo, vivarto-chalitista? um abraço de parabéns, Philadelpho Menezes SP, 24/11 [/1999]” (grifo nosso). Esse “abraço de parabéns” era pelo êxito alcançado por mim (um ideólogo do meio-termo, para Menezes?) na defesa de minha dissertação de Mestrado, em psicologia social, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pois poucos minutos antes, Philadelpho havia participado da minha banca examinadora e anunciado o resultado do exame: um unânime “9,5”.

SINESTESIA LITERARIZADA ― Como se pode notar, em algumas dedicatórias autografadas para mim, a sinestesia literalmente representada também se faz presente. Pois além da “admiração”, da “gratidão” e da “amizade” de meus amigos intelectuais, sejam eles alagoanos ou não, existe inclusive o “abraço” de alguns deles. Vale notar aqui que no percurso evolutivo da minha sociabilidade intelectual, essa atitude sinestésico-autográfica parte do “abraço amigo”, passa por “um abraço de parabéns” chegando, finalmente, a “um” único e simples “abraço”. Mas este último, dado a mim por “Lole” (Maria Heloisa Melo de Moraes [2009]), traz consigo, em compensação, uma imagem sublime de mim mesmo: a de “poeta do cotidiano”.

Entretanto, o “poeta” associado a mim por Lole (2009) não só pertencia ao espaço “do cotidiano”. Em meados e fins da década de 1980, ele também apareceria ligado a duas artes cênicas e de novo ao dia-a-dia. Pois como autografara, para mim, Marly de Oliveira (1983) em seu livro Aliança (Nova Fronteira, 1979. 96 pág.): “A Ricardo Maia, poeta, dramaturgo, amante da dança e da vida, com o abraço amigo de Marly de Oliveira. Brasília, 1983.”

Compartilhando com Lole e Marly esta associação da figura do “poeta” à minha pessoa, a escritora Lúcia Guiomar (1987), ao contrário das duas, liga por sua vez tal figura exclusivamente ao campo da pintura, autografando assim: “Para meu amigo poeta das cores com carinho Lúcia Guiomar” (grifo nosso). Aliás, um “carinho” que, tempos depois, também seria destinado a mim, em linguagem autográfica, por Anilda Leão, C.R.P. Wells, Eliana Cavalcante, Emanuel Galvão, Geraldo de Magella, Gláucia Lemos, Homero Cavalcante, Marly de Oliveira e Nadege Porto. Esta última, uma aplicada e reconhecida aluna do 1º ano C do Curso de Administração Geral, da Faculdade Alagoana de Administração, que me presenteara, em “09/08/2004”, com um exemplar do livro Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil (Ed. A Girafa, 2004. 462 págs), de Frederico Pernambucano de Mello.

Aliás, na dedicatória carinhosamente autografada por Eliana, que mais acima já citei integralmente, ela inclusive reconhece a minha luta pelas “coisas belas” no campo da pintura em Alagoas. E procedendo assim ela faz, sem sombra de dúvida, referência indireta ao “personagem importante” atribuído a mim no “texto” Uma visualidade: trajetória crítica da pintura alagoana 1892-1992 (Escrituras, 2000. 168 págs): uma tese de doutorado da historiadora paulistana Célia Campos (1993), que, desde o primeiro ano deste século, já se encontra transformado em livro primorosamente editado.

Também reconhecendo o poeta em mim, o psicanalista e professor Ivan Corrêa (2001), do Centro de Estudos Freudianos do Recife, parece que também, como Micheline, vaticinou em sua dedicatória acontecimentos duros e conflitantes que levariam à desestruturação de minha biblioteca em 13 de junho de 2011: “[...] se os paradoxos nos pregam peças”, disse-me ele usando linguagem filosófica, “os tropos produzem poesia.” E, de fato, “poesia” (no sentido mais amplo do termo) foi produzida em compensação, e aos bons bocados, pelos “tropos” criticistas de um inconsciente político que em mim protesta... fazendo isso, na certa, “[...] PARA QUE O DESEJO SE VINGUE DO ABANDONO E DO DESAMOR.”

Estas palavras em letras garrafais de João Silvério Trevisan, grande escritor e militante gay, vieram para mim de São Paulo pelas mãos de Francisco Melo, um gênio da pintura em Alagoas, que, sendo meu amigo e de Trevisan, presenteou-me com um exemplar autografado, por este autor paulista, do livro Em nome do desejo (Ed. Record, 2001).

Cinco anos antes Trevisan e eu havíamos nos cruzado, por acaso, no centro de São Paulo. Mais exatamente na sessão de CDs do Mappin, onde principiamos uma interação cordial e muito simbólica que se estenderia até um antigo cinema, ali próximo, onde se exibia Tieta do Agreste, de Cacá Diegues, baseado em livro homônimo de Jorge Amado. Era uma fria tarde de agosto de 1996. Quase toda a Paulicéia trabalhava fervorosamente. Mas naquele dia, por coincidência, Trevisan e eu estávamos de folga e flanando pelo centro da cidade.

Embora sua fisionomia me parecesse o tempo todo familiar ― e ele já ter me informado, sem nenhuma vanglória, sobre sua profissão ―, em nenhum momento suspeitei que aquele João Silvério fosse o grande Trevisan, isto é, o magnífico autor também de Ana em Veneza, Troços e destroços, Devassos no paraíso e Seis balas num buraco só.

Depois do filme, e com o céu já escurecido, ele me acompanhou gentilmente até uma estação de metrô ali próxima onde nos despedimos com um aperto de mãos. Antes de nos darmos as costas, seguindo cada um o seu caminho em direções opostas, João me passou seu número de telefone para contato num pedaço de papel que logo pus no bolso da camisa. Mas esquecendo neste tal gentileza do importante escritor, perdia-a para sempre quando, no dia seguinte, pus a camisa na máquina de lavar sem olhar o bolso desta. Algum tempo depois, folheando a sofisticada revista República (agosto-1998, ano 2, nº 22), reencontrei Trevisan em duas soberbas fotos preto-e-branco de Eduardo Simões.

Foi quando de repente me lembrei que, em fins de dezembro do ano anterior (1995), uma cartomante carioca e meio angustiada chamada Beth, colocando cartas de tarô egípcio para mim, previu, através destas, o meu encontro com “um homem” que tinha todas as características e atribuições do Trevisan. Fiquei impressionado com a coincidência. Acho que o acaso, realmente, não é por acaso...

DIÁLOGO INTERROMPIDO — Nos livros que obtive, em noites de autógrafos, o utilitarismo do Homo academicus algumas vezes se fez presente. Vem dele, por isso, o uso preciso das expressões “que” ou “para que”... Por exemplo: Mary Jane Spink, uma Profa. Dra. do Departamento de Pós-graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com quem aprendi muito sobre Práticas Discursivas e Produção de Sentido, assim escreveria em seu autógrafo a mim: “Para Ricardo Para dar continuidade ao diálogo interrompido... Mary Jane”.

Isso foi em outubro de 2009, quando nos reencontramos em Maceió por ocasião do XV Congresso Nacional da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO). Este autógrafo de Mary Jane fazia referência, sem dúvida, ao fato de eu ter “interrompido” o desenvolvimento ascensional de minha carreira acadêmica após o Mestrado. Com este autógrafo, ela tentou estimular o meu retorno a São Paulo para eu fazer meu Doutorado. Por isso, inclusive, sou para sempre muito grato à Mary Jane.

Foi nesta mesma ocasião que obtive uma dedicatória, com autógrafo, de Nilma Renildes da Silva na primeira página de um exemplar do livro Método Histórico-social na Psicologia Social (Ed. Vozes, 2005. 156 págs.). Negra, psicóloga e militante petista de Bauru-SP, em fins de 1994, Nilma havia prestado comigo, na PUC-SP, as provas para o curso de mestrado em psicologia social. Desde então ela se tornara, talvez, a colega de turma mais afeiçoada e próxima a mim. “Para Ricardo Maia”, escreveu ela, “com uma felicidade imensa do re-encontro que se realizou em sua terra. Nilma.” Usei o exemplar do referido livro, como suporte, para que ela o dedicasse a mim, pelo fato de ser ela uma das três personalidades acadêmicas que o haviam organizado e apresentado.

Como Nilma, o historiador francês Françoise Dosse também fugiu ao Homo academicus quando privilegiou, em sua dedicatória autografada para mim, a expressão “reencontro”. Mas, ao contrário de Nilma, sem por ífem nesta. Na sua dedicatória autografada, Dosse diz-me o seguinte (a tradução é responsabilidade minha!): “Para Ricardo, uma recordação do nosso reencontro em São Paulo, em 14/8/95 ??????” (Griffo meu). Pois para esse titã da historiografia francesa, um indivíduo com pouco mais de meia idade e aparentando ser meio ‘hipponga’, aquele nosso primeiro encontro, ocorrido na PUC-SP, era na verdade o segundo. O primeiro, no entendimento dele, já havia ocorrido quando eu comprei e devorei, quase de uma só vez, o seu massudo livro sobre a História do estruturalismo: I. O campo do signo, 1945/1966 (Ed. Ensaio, 1993. ??? págs.)

No ano seguinte, quando eu residia na capital paulista e ainda cursava uma disciplina no Mestrado de Psicologia Social da PUC de Perdizes, obtive da Profa. Dra. Bader Burihan Sawaia a seguinte dedicatória seguida de autógrafo: “Ricardo  Com a esperança que este livro o inspire a terminar seu belo trabalho. Um abraço Bader”. Na ocasião, eu já havia feito a disciplina “Leitura Crítica”, ministrada por ela, e estava fazendo uma outra sobre “Processo Grupal”. Nesta, Bader substituía a inesquecível Silvia Lane, que se ausentara por motivo de saúde. Foi quando então comprei um exemplar da primeira edição do livro Psicologia Social Comunitária: da solidariedade à autonomia (Vozes, 1996. 184 pág.), organizada por Regina Helena de Freitas Campos. E como neste livro Bader havia assinado um artigo, intitulado “Comunidade: A apropriação científica de um conceito tão antigo quanto a humanidade”, nele ela escreveu uma dedicatória para mim e assinou seu autógrafo. Mas esquecendo-se de datá-lo...

O primeiro livro que obtive, com dedicatória autografada, na PUC de Perdizes, onde eu fazia o meu mestrado, foi do Prof. Dr. José Leon Crochik: um frankfurtiano esclarecidíssimo que ministrava a disciplina de Teoria Crítica. Na ocasião, profundamente descontente com a falta de rigor no processo de revisão da primeira edição de seu livro Preconceito, indivíduo e cultura (Robe, 1995. 220 págs.), Leon, talvez por isso, produzira para mim uma dedicatória afetual e minimalista fugindo completamente, portanto, do comum estilo mecanicista do Homo academicus: “Ao Ricardo com amizade. Leon (26/9/95)”. Pelo descontentamento de Leon, treze anos depois, quando eu há muito já havia voltado a viver em Maceió, comprei num Bienal do Livro, acontecida nesta cidade, a mais recente edição do referido livro do Prof. Leon para relê-lo melhor revisado. Reli-o e, mais uma vez, adorei a leitura.

O estilo acadêmico-utilitarista de escrever dedicatórias autografadas em livros é também nitidamente perceptível em dois outros intelectuais brilhantes que tive o privilégio de conhecer: os alagoanos Lincoln Braga Villas Boas (1999) e Nádia Amorim (2001). De Lincoln, já obtive três autógrafos. De Nádia, por enquanto, só dois. Nos autógrafos deles é, portanto, o grande mestre quem me fala: “Para o Ricardo para que lhe seja de proveito e exemplo Lincoln 21/09/99”, autografa Villas Boas.

Doze anos depois, por ocasião do lançamento em livro de sua tese de doutorado (A Psicanálise Machadiana: encenações do desejo [EDUFAL, 2011. 294 págs.]), ele escreveria para mim a seguinte dedicatória reproduzindo o mesmo estilo autográfico: “Para Ricardo uma demonstração de que nem tudo é mistério em Capitu como é na escrita inimitável de Machado. Um abraço, Lincoln 13/11/2011”.

Já Nádia Amorim, por sua vez, dedica e autografa para mim o seguinte em seu livro Dor, crescimento e vida (Catavento, 2001. 164 pág.): “Ricardo, Para sua vida pessoal e profissional alegria e êxito. Maceió, 22.06.01”. Com palavras quase idênticas ― “Ricardo: para você, com votos de sucesso e êxito [...]” ― ela já havia, em março de 1994, me dedicado um exemplar de livro Mulher solteira: do estigma à construção de uma nova identidade (Ed. EDUFAL, 1992. 192 págs.), originalmente sua tese de Doutorado já então transformada em livro. Pois como intelectual, antropóloga e Maia, Nadia sabia muito bem o que era ser pessoa e ter um profissão sublime em Alagoas.

Creio que, em seu inconsciente político, o mesmo também já sabia o ator e poeta Nilton Resende quando, em “26.VI.2007”, através de sua dedicatória, ele me deu três coisas: “[...] o livro, o abraço e os votos de bons ventos. Sempre.” E ele fez isso compartilhando, com Micheline e Ivan Corrêa, o mesmo ‘presságio’ envolvendo a mim e minha biblioteca. Mas, frise-se bem, sem ter consciência de tal predição nem dessa partilha. Isso hoje, para mim, é bastante claro. O livro ao qual Nilton se referia, na sua dedicatória, era O Orvalho e Os Dias (EDUFAL/Trajes Lunares, 2007. 84 págs.), sua obra premiada no Projeto Alagoas em Cena 2006 na categoria poesia.

PERFORMANCE AUTOGRÁFICA ― É interessante notar aqui a maneira singular como Tânia da Maya Pedrosa e Jurandy Valença produziram, para mim, suas dedicatórias autografadas. Pois quando as obtive deles, percebi nestas suas necessidades imperiosas de reconhecerem o outro (no caso eu) sendo ao mesmo tempo reconhecidos, por eles próprios, na mesma medida: “Para o inteligente representante da nova cultura, Ricardo Maia,” escreveu Tânia, “vai a prova da minha dedicação pela Cultura Popular de Alagoas. Tânia fev 2000”. Já Jurandy, por seu turno, ao me presentear com o livro A arte e A Sociedade (Ed. Presença, 1984. 188 págs.), de Arnold Hauser, exprime sua alta estima por mim registrando, ao mesmo tempo, suas ideologias estéticas de maneira linguisticamente performática: “Para Ricardo Maia, quem respeito e admiro. Do dadaísta, surreal e pós-pós-pós-polimoderno Jurandy Valença [???????]   160790”.

Em contraste à Tânia e Jurandy, a jornalista Alessandra Brandão, uma pioneira na pesquisa sobre o jornalismo científico em Alagoas, enfatiza em sua performance autográfica o reconhecimento exclusivo do próprio trabalho ― e, portanto, o auto-reconhecimento ― dedicando-me, assim, um exemplar do seu livro A presença da ciência e da tecnologia nos jornais alagoanos (EDUFAL, 2006. 105 págs.): “Para Ricardo Maia. Esta modesta tentativa de compreender a publicação científica em Alagoas Primavera/06  Alessandra Brandão”.

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[*] Este ensaio encontra-se inacabado. Pretendo retomá-lo assim que puder. Ele foi produzido em fins do ano de 2011, quando eu já estava morando "de favor" na casa de minha tia Geralda no centro de Maceió.

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Ricardo Maia ESCRITO POR Ricardo Maia Escritor
Maceió - AL

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