Tema Acessibilidade

MORRA O LUXO E VIVA O BUCHO!

            Era uma família bastante feliz. Composta por cinco pessoas (três homens e duas mulheres), esta família, como se diz no Nordeste, “comia o pão que o diabo amassou”. Mas era feliz, mesmo porque, como filosofava dona Antonia: “Deus quer assim...”.

Na primavera, seu Otílio sempre deixava a família por seis meses, vendo-a apenas mensalmente, quando a Usina o liberava para passar um final de semana em casa.

            Nesta ocasião, ele dava à esposa o dinheiro da feira do mês e pagava a conta na bodega[1] de seu Burguês, “homem de Deus”, segundo o dizer de seu Otílio, pois “se não fosse ele com essa vendinha e a confiança que tem em nós, a coisa seria bem pior” - argumentava.

            Certo dia, dona Antonia cismou que seu Otílio tinha que comprar um fogão a gás; já não aguentava mais cozinhar na lenha e no carvão.

            - Tem que dá um jeitinho Otílio – dizia ela. A gente tira um pouquinho daqui, outro dali, outro dacolá e compra.

            - Mas tu tens uma “contina[2]” besta, mulher! Não sabes que o dinheiro não dá nem para pagar as dívidas direito, como diabo vai sobrar para comprar o danado desse fogão?

            - Mas Otílio, a gente vende uma rês[3] e compra. A gente cria não é pra “se arremediar[4]” mesmo?!

            - Sim, mulher, mas os bichos a gente guarda para uma precisão, não é para estragar com qualquer besteira!

            Neste “meio enquanto[5]” interveio Lulu, filha do casal:

            - Mas papai, mamãe tá certa! Para quê precisão maior que essa? - completou. A gente vive num sufoco danado... Se dá uma dor pela noite tem que acender o fogo de carvão ou de lenha para fazer um chá...

            - Eu acho que vocês estão querendo é muita mordomia - exclamou Pedro, o filho mais velho. Onde já se viu pegar tudo o que se tem e dá num pedaço de lata porque as princesas não querem levar fumaça nem ter trabalho.

            - Sem contar, meu filho, que para fazer um negócio doido desses a gente teria que se apertar pra danar...

            - Eu mesmo, estando de barriga cheia é o que vale! - respondeu Pedro.

            - Mas não é questão de luxo não minha gente! – exclamou Lulu.

           - Tá bom! Vamos acabar com essa história de fogão a gás por aqui! Sempre pobre é lascado mesmo! - disse dona Antonia, já irritada.

           - Mas isso não é questão de pobreza não, mamãe! É ruindade mesmo! Eu vejo gente por ai gente pior que nós que tem um fogão a gás! - revidou Virgínia.

            - Fogão é luxo! Nunca tivemos um e está todo mundo vivo, não está? – problematizou seu Otílio. O dinheiro que a gente ganha é pouco e só dá mesmo para comer. Se tirarmos para o fogão faltará para outras coisas de “mais precisão”[6]. E como dizia minha avó: “morra o luxo e viva o bucho”!

[1] Pequena mercearia.

[2] Conversa insistente.

[3] Cabeça de gado bovino.

[4] Servir-se.

[5] Enquanto isso...

[6] Maior necessidade.

Attachment Image
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
0
2 mil visualizações •
Denuncie conteúdo abusivo
Valci Melo ESCRITO POR Valci Melo Escritor
Senador Rui Palmeira - AL

Membro desde Junho de 2013

Comentários