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O SONHO DA CONVERSÃO (Parte 1)*

 

“Um homem não é outra coisa senão o que faz de si mesmo.”

Jean-Paul Sartre

 

De Batismo chamava-se Joaquim Aciole Rosa de Almeida. Mas sentia-se bem mesmo ao ser chamado de Jó, como era popularmente conhecido. O apelido dava-lhe a feliz sensação de que fosse a encarnação do servo fiel narrado pelo livro sagrado.

Era um homem bastante religioso: frequentava regularmente as missas da capela que aconteciam no último domingo de cada mês; realizava, anualmente, uma novena em homenagem ao Padre Cícero do Juazeiro do Norte; sempre às 18h00min juntava a família na sala, em frente às dezenas de imagens penduradas na parede para rezar o Rosário e às 04h00min acordava os filhos e a esposa para rezarem o Ofício em homenagem à Virgem Maria.

“Do tanto que rezo meu lugar no céu já deve está garantido!” – pensava às vezes consigo mesmo. Mas logo se dava conta de que mesmo já estando salvo não poderia cometer o pecado da vanglória. E se autorrepreendia: “Para com isso Jó! Controle-se, homem! Controle-se!”

Ele não era um sujeito rico, mas, como modestamente se dizia na região onde morava: tinha “umas besteiras”. Era dono de um rebanho bovino de quinhentas cabeças de gado e quase três mil tarefas de terra, posses que livrava sua enorme família do êxodo rural mesmo em épocas de intensas secas.

Sobrevivia do cultivo de feijão, milho, abóbora, mandioca, algodão, palma e da comercialização de gado, leite e seus derivados. Mas a atividade que fazia seus olhos brilharem mesmo era a comercialização de gado nos currais da região, ofício que lhe proporcionava fazer contato com pessoas da sua classe social, pois na localidade onde morava a quase totalidade da população era composta por agricultores sem terra e uns poucos comerciantes.

Como era um dos maiores proprietários de terra do município e um homem de coração grandioso, quando podia, Jó não deixava seus vizinhos despossuídos “com as mãos abanando”. E assim fazia todas as manhãs com a partilha do leite: separava a maior parte para comercializar com a indústria e misturava o restante com bastante água para vender às famílias empobrecidas. “O mundo é dos mais espertos!” – dizia.

Também durante o período do plantio, todo aquele que o procurasse tinha a oportunidade de provar da sua generosidade: no Inverno ele cedia a terra já arada, cabendo ao meeiro apenas preparar o terreno, plantar, limpar o mato, colher e dividir metade da colheita com ele.

- O milho não. Você pode quebrar algumas espigas para assar, mas a palha e a semente do milho é toda minha! – alertava Jó quando fazia negócio com um meeiro.

- Sim, senhor! – respondiam os descamisados em um sinal de bastante gratidão para com o gesto do patrão.

E quando estavam na roça, na época da colheita, refletiam com os filhos: “Se não fosse seu Jó, não sei o que seria de nós, viu!”
 

 

Laura de Jó

“A possibilidade de realizarmos um sonho é o que torna a vida interessante.”

Paulo Coelho

 

Laura Maria Ferreira de Almeida, ou simplesmente, Laura de Jó, era uma mulher como muitas outras: tinha desejos e opiniões próprias, mas quase sempre se limitava à vocação de mãe atenciosa, dona de casa dedicada e esposa obediente.

Quando ainda adolescente, sua mãe tratou de lhe ensinar o que considerava o segredo de um casamento longo e feliz: em hipótese alguma medir forças com a autoridade do marido. A moça aprendeu bem a lição e rara era a ocasião em que não a praticava. Mas sempre que o assunto se tratava da generosidade para com algum descamisado, a obediência dada lugar à rebeldia e se tornava impossível não “bater boca” com o marido:

- Você sabe o que eu penso sobre isso, não é? – questionava ele. “Quem dar o que tem a pedir vem”, Laura! – profetizava. Agora você continue dando o que é nosso ao povo que daqui a pouco ninguém quer mais trabalhar...

- Deixe de ser mesquinho, homem! Que religião é essa sua que vê as pessoas passando necessidades e fica se escondendo atrás de besteira?

- Opa! Opa! Opa! Não é bem assim não, minha filha! Já faço muito... Quem dar trabalho a esse povo? Quem alimenta os filhos dessas pessoas com leite? Quem “enche a pança” da região inteira na novena do Padre Cícero? A minha parte eu já faço! Agora o que não posso é pegar tudo o que tenho e dar aos outros. Isso não!

- Ruindade, sim! Isso é ruindade porque uns quilozinhos de feijão, um pouquinho de farinha, café e açúcar não vai nos deixar pobres. Isso é caridade, Jó. Agora você pensa que é só rezando que se vai para o céu...

- Já disse e está dito: não quero ver isso aqui não, viu! Eu vou trabalhar “por cima de paus e pedras” para seu fulano só vir buscar a feira pronta? De jeito nenhum! Quem quiser comer que trabalhe!

Laura acreditava que um dia a água mole seria capaz de furar a pedra dura. E enquanto isso não acontecia, apesar das desavenças, tentava ajudar os mais necessitados – mesmo que para isso fosse preciso contrariar o marido.

 

 

O “destino”

 

“O destino conduz o que consente e arrasta o que resiste.”

Sêneca

 

Laura de Jó era filha de Joaquim Ferreira da Silva e Leonarda Santos de Almeida. Quando Jó a conheceu, ela morava com seus pais na Fazenda Novo Lino, a 70 quilômetros de distância. Ele já tinha relações os dois irmãos dela, João Pedro e Manoel, que também comercializavam gado nos currais da região. Mas só quando foi convidado para o casamento de um deles é que foi apresentado à linda jovem com a qual, sete meses depois, se casou.

 

 

O negócio

 

“A ‘sorte’ de uns é o azar de outros.”

Ditado Popular

 

Quando Jó e Laura casaram-se, a região inteira passava por uma seca que se estendia há 17 meses e os criadores de gado estavam se aperreado sem água e pasto para os animais.

Severino Oliveira era um desses pecuaristas: possuía 200 tarefas de terra e 80 cabeças de gado. Durante a seca, desfez-se de 20 tarefas de palma e 17 animais para manter o restante do rebanho em pé.

Desgostoso com aquela situação, Severino resolveu vender o terreno e o rebanho que ainda restava e tentar a sorte noutro lugar.

Como o terreno do candidato a retirante fazia divisa com a propriedade da família Ferreira, João Pedro e Manoel fizeram um esforço e compraram-no juntamente com o gado.

“Fizeram a maior loucura de suas vidas!” – comentava-se na redondeza. “Numa seca dessas comprar terra e gado magro... Ou não têm o que fazer com dinheiro ou têm muita fé em Deus mesmo!” – apregoavam outros.

Um mês após realizarem o negócio, choveu abundantemente e o que parecia ser loucura mostrou-se um grande investimento. Com água e pasto, poucos meses depois o gado estava custando o triplo do valor pago. “Pense nuns meninos de sorte, viu!” – comentam os vizinhos. – “Esses, sim, nasceram para o negócio...”

 

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* Capítulos 1 a 4 do livro O SONHO DA CONVERSÃO, romance escrito por Valci Melo em 2002 e cuja publicação dar-se-á aqui e no blog http://valcimelo.blogspot.com.br ao longo dos próximos dias.

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