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O SONHO DA CONVERSÃO (Parte 6)*

A dúvida

 

"A mente que se abre a uma nova ideia jamais volta ao seu tamanho original."

Albert Einstein

 

Jó acordou muito assustado e não parava de pensar um segundo sequer no que viu e ouviu no sonho. Quanto mais tentava se esquecer do infeliz pesadelo, mais vivo ele ficava em sua memória. “Foi apenas um sonho.” – falava para si mesmo na tentativa de se autoconvencer. Mas não adiantava: não conseguia parar de pensar no comportamento das pessoas em seu suposto velório, na conversa que teve com os falecidos, na inexistência do céu e do inferno, na forma como até então tinha conduzido a própria vida. “E se não foi apenas um sonho?” – pensava. “Isso pode ser um sinal... Será mesmo que existe outra vida ou inventamos isso por ser muito doloroso aceitarmos que a morte é realmente o fim? Será que ao morrermos não teremos o mesmo destino que o dos animais e das plantas? Mas eles têm espírito? Devem ter porque assim como a gente, nascem e morrem... Mas se têm o que os diferenciam de nós? Será que têm consciência do que fazem? E caso não tenham consciência de seus atos, seus espíritos vão para o céu ou para o inferno? Mas se não existe vida após a morte, o mesmo que ocorre com eles deve acontecer também com a gente...”

Os dias iam se passando e aquele homem prepotente e orgulhoso dava lugar a um ser inseguro e deprimido. Jó vivia pensativo, mas não comentava com ninguém sobre o sonho. Sua esposa estava bastante apreensiva com o que conseguiu ouvir antes de acordá-lo: “Eu não matei ninguém. Posso até ter alguns defeitos, mas assassino ou ladrão nunca fui. Isso não! Deus me livre! O Manoel interpretou tudo errado Joãozinho... Eu não estava tendo um caso com a sua mulher... Isso foi antes de vocês casarem. Eu nem sabia que a sua mulher era a Angélica com quem fui noivo. Ele entendeu tudo errado... Tudo errado!”

Sentindo-se insegura para tocar no assunto devido ao estado no qual já se encontrava o marido, Laura dava asas à imaginação: “Será que Jó tem a ver com a morte de meus irmãos? Jó e Angélica tiveram um caso e ele nunca me disse nada!... Meu Deus! Foram eles; foram eles que tramaram a morte dos meninos... Manoel deve ter descoberto e ‘dado com a língua nos dentes’ e eles mandaram matar os dois antes que o caso se tornasse um escândalo. Ave Maria! Só pode ter sido isso!”

Os dias foram se passando e o percurso mais longo que Jó se arriscava a fazer era do quarto até a cozinha ou, no máximo, até o alpendre: lá ficava tentando decifrar o conteúdo do sonho.

Certo dia, ele começou e ter alucinações e receber a visita dos irmãos Ferreira. E não adiantava se esconder: onde entrasse eles iam junto.

- Deixem-me em paz! – gritava apavorado. - Não matei vocês. Não trai você, João Pedro! Não trai! É tudo invenção do Manoel. É invenção dele... Invenção!

A partir de então, ele parou de se comunicar com as pessoas, de andar e de comer. A vida já não tinha sentido, pois sua bússola não mais indicava o caminho a seguir.

A notícia acerca do seu estado de saúde se espalhou e ele começou a receber muitas visitas. Vez ou outra tinha as alucinações e conversava com os falecidos diante de todo mundo, tentando explicar para eles que não era responsável pelo crime.

O boato de que Jó estava recebendo os espíritos dos irmãos Ferreira e que estes revelaram ter sido ele e a viúva de João Pedro os responsáveis pelo crime começou a circular. “Veja como são as coisas: Jó mandou matar os cunhados porque estava tendo um caso com a mulher de um deles e o outro descobriu”. – comentava-se na região.

A notícia chegou aos ouvidos de seu Joaquim e dona Leonarda. Indignados, pressionaram Angélica, viúva de João Pedro, para ouvir a versão dela, mas antes que isso acontecesse, a mesma se suicidou dentro de um açude.

O sonho de Jó e o suicídio de Angélica tornaram-se os assuntos mais comentados da região durante muito tempo. Para alguns, não restavam dúvidas: o assassinato dos irmãos Ferreira agora estava mais do que esclarecido. O estado de saúde de Jó e o suicídio de Angélica eram a manifestação da justiça divina, visto que tinham cometido um crime bárbaro e isso não poderia ficar impune. “Quem deve teme!” – comentavam na redondeza. – “Ela viu que ia ser desmascarada e se matou. Já ele, olhe: a consciência pesou tanto que acabou confessando o crime e ficando ‘ruim da bola’...”

Para outros, a dúvida falava mais forte: “Pobrezinha! Talvez se matou porque era inocente e não aguentaria passar por tamanha humilhação. Quem já viu: além de perder o marido tão nova, coitada, agora ser responsabilizada pelo crime!...”

 

 

A escolha

 

“Que seja doce a dúvida a quem a verdade pode fazer mal.”

Michelangelo Buonarroti

 

Após o acontecido, seu Joaquim e dona Leonarda mandaram chamar Laura em casa e obrigaram-na a deixar o marido:

- Não é possível que depois de tudo o que esse homem fez à nossa família você ainda tenha coragem de viver ao lado dele! – reclamou dona Leonarda.

- Esse homem é meu marido, mamãe. – rebateu Laura. – Tenho consciência que ele tem muitos defeitos, mas não consigo me convencer de que tudo não passe de um sonho.

- Um sonho, minha filha! – contestou seu Joaquim. – O sonho foi a única forma que Nosso Senhor encontrou para soltar a língua daquele miserável, isso sim!

- Papai! – interpelou Laura. – Entendo perfeitamente a posição de vocês. Mas preciso que tentem se colocar no meu lugar...

- Não, minha filha! – retorquiu dona Leonarda. – Escolher ficar ao lado desse homem depois de tudo é incompreensível. Por favor, não nos peça para fazer isso!

- E se ele for inocente? – questionou Laura. – Se tudo não passar de um pesadelo, de alucinações?

- Se fosse, minha filha! Se fosse!... – retrucou seu Joaquim. - Mas o caso é que não é nem aqui nem no “quinto dos infernos”. Depois do que ele foi capaz de fazer com a gente esses anos todos não restam dúvidas: ele acabou com a vida dos seus irmãos e com a nossa também. Só não vê quem for cego!...

- Você escolhe, minha filha: – ordenou dona Leonarda. – ou abandona aquele bandido ou não nos considere mais como seus pais.

- Mas mamãe!

- Mas nada! É isso mesmo que você ouviu e pronto! Mas nada! – respondeu dona Leonarda com o consentimento de seu Joaquim que balançava a cabeça.

 

 

O sofrimento

 

"O caráter pode se manifestar nos grandes momentos, mas ele é formado nos pequenos."

Phillips Brooks

 

Apesar de muito confusa, Laura preferiu cuidar do marido que estava a cada dia de mal a pior. Seu estado era tão grave que já não havia muita esperança de que viesse a ficar recuperado. No entanto, para não deixá-lo “morrer à míngua”, a família resolveu levá-lo à capital para receber os cuidados médicos.

No hospital, Jó até estava respondendo bem ao tratamento quando Laura resolveu “tirar a limpo” o conteúdo do sonho:

- Preciso que me conte a verdade, Jó. Vivo com você há vinte anos e tenho o direito de saber o que realmente aconteceu entre você e a finada Angélica.

- Finada Angélica? – questionou Jó, assustado.

- Sim, finada.

- Não! Não! Finada não! Foram eles... A culpa é deles... Eles mataram a Angélica...

- Ninguém matou a Angélica, Jó. Foi ela que se suicidou.

- Não! Angélica não! Morta não! Não!

Até então ele não sabia do falecimento de Angélica. A notícia de tal fato deixou-o ainda mais perturbado. Já sua reação contribuiu para que Laura ficasse ainda mais duvidosa acerca do seu envolvimento com a ex-cunhada e com o assassinato dos irmãos.

Jó enlouqueceu de vez. A partir de então foi transferido para um manicômio, onde permaneceu por quase dois anos.

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* Capítulos 20 a 22 do romance O SONHO DA CONVERSÃO cuja publicação dar-se-á aqui e no blog http://valcimelo.blogspot.com.br ao longo dos próximos dias.

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