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NOTAS SOBRE “FANTASMAS” MACEYORKINOS OU ADALBERTO SOUZA, UM POETA ASSOMBRADO PELO PÓS-TUDO (1ª Versão)

• Atualizado

 

 

                                                                                                Ricardo Maia

 

 

No interessante livreto de poesia, intitulado Fantasmas Não Andam de Montanha-Russa (Ed. Buqui, 2014; 116p.), a dessacralização do mundo e seu subsequente desencantamento, a desterritorialização subjetiva e o finalismo pós-tudo parecem ser, dentre outras, as questões fundamentais do eu-poético em Adalberto Souza – um alagoano com currículo exemplar e já há muito interessado em estética da criação verbal: “E / tudo / para / depois / e / depois / de / tudo.” (p. 73) “E depois de tudo / ficava clara / sensação de não pertencer a lugar algum. /// Uma sensação inadequada / de ser em outro lugar. /// De estar perdido, Bíblia Sagrada / em criado-mudo de motel.” (p. 64) E mais adiante, noutra pequena estrofe: “Por tudo e principalmente por nada / apenas o inexplicável / sentimento / de estar ali / sem / sermos nós.” (p. 72)

 

Digo que “parecem”, e não que de fato são, porque Adalberto Souza, na certa avisado por Freud do teatro psicossocial da histeria – um sintoma gerador de simulacros e dissimulações típicas de uma “sociedade do espetáculo” (DEBORD, 1967); um sintoma que, por sua vez, é verificável inclusive através da escritura desconstruída ou desconstrutora – deseje assumir, de modo deliberado, um eu por excelência poético e, portanto, fingidor. Ou melhor: um eu ator de si mesmo a desejar, na sua relação com o outro, um viver cinematográfico: “Troca o roteirista dessa cena, / encena / a crua, / feia / verdade / que escondes / para aqueles / dias / frios, / de sol sem luz, / em que / solitária / destilas / teu / veneno.” (p. 62)

 

O resultado desse estúdio cinemático ou teatrinho particulares, são versos fragmentados e/ou minimalistas em estrofes delgadas que, se invertidos de sua posição originalmente vertical para a horizontal, logo percebemos seu grafismo ou escritura labilidosa – cheia de altos e baixos – nos sugerindo uma cordilheira alfabética. Daí, no título do livro (podemos pressupor!), a expressão “montanha-russa”. Esta noção, fornecida aos leitores, já no título do livro, é decerto uma representação literária daquele “equivalente emotivo-volitivo” (BAKHTIN, 2000, p. 109), nos dias atuais, ao antigo simbolismo da montanha como espaço de ascensão espiritual apaziguada e apaziguadora. Portanto, de uma lugar sublime e anti-distônico onde os “fantasmas” perturbadores do poeta não têm acesso. Daí o título: “Fantasmas não andam de montanha-russa”. Esta última uma metáfora maquínico-naturalógica do romantismo tardio de Adalberto Souza; uma metáfora da qual ele extrai, simbolicamente, a força de atração da massa de uma montanha real. Aquela mesma da hipótese científica desenvolvida por Goethe (1749-1832), o grande poeta alemão. Vejamos o que diz sobre este último o crítico literário Mikhail Bakhtim (2000, pp. 248-249):

É precisamente a própria massa da montanha que influencia as mudanças atmosféricas. Dessa atividade interior da própria montanha, resulta o tempo metereológico que é recebido, como algo concluído, pelos habitantes do vale.

Pouco nos importa que essa hipótese científica não esteja comprovada. O que importa é a particularidade da visão de Goethe tal como se revela. Há que convir que as montanhas, para quem as contempla, são habitualmente a própria imagem do estatismo, a encarnação da imobilidade e da imutabilidade. Ora, as montanhas não são algo inerte, estão apenas imobilizadas, não é uma grandeza constante, sempre, sempre igual a si mesma, ela muda, vibra, oscila. É por isso que também as montanhas, onde essa força parece intensificar-se, são cambiantes, ativas, criadoras do tempo metereológico.

Daí resulta que o quadro iniciado por Goethe passa por uma transformação nítida e profunda. Basta realmente lembrar-nos de que, no princípio, havia mudanças acentuadas da atmosfera (o brilho sob um sol forte, as nuvens, os temporais, a chuva violenta, a neve) situada contra o fundo imóvel dos montes eternamente imutáveis; no final, nada resta desse fundo imóvel e imutável que ganhou um movimento mais profundo do que o evidente, mas secundário da atmosfera; esse fundo tornou-se ativo, ou melhor, é nele que se situam o verdadeiro movimento e a atividade.

Essa particularidade da visão de Goethe, que nos revela em nosso curto exemplo, manifesta-se em tudo, numa ou noutra fora (conforme o material), com maior ou menor evidência. O que, antes dele, servia de fundo sólido e imutável para todos os tipos de movimentos e mudanças, implica para Goethe um processo de evolução, encontra-se inteiramente penetrado de temporalidade e mostra-se mesmo essencialmente criador de movimento. [...] na análise de Wilhelm Meister, [...] o que constituía habitualmente o pano de fundo sólido do romance, a grandeza constante, as premissas imóveis para a dinâmica de um enredo romanesco, torna-se consubstancialmente portador do movimento, seu iniciador, torna-se centro organizador da dinâmica do enredo, graças ao qual o próprio enredo romanesco se modifica radicalmente. É precisamente aí, nesse fundo imóvel dos fundamentos do mundo (sócio-econômicos, políticos e morais), que ele, “tacanho filisteu”, costumava aliás proclamar, imutável e eterno, que Goethe descobre o movimento. Em Wilhelm Meister, esses fundamentos do mundo começam a pulsar, semelhantes aos maciços montanhosos que citamos como exemplo, sendo essa pulsação profunda que determina o movimento superficial e a mudança dos destinos humanos, das vidas humanas.

 

Ora, é assim que o absoluto – isto é, o entorno sócio-histórico configurado sintomaticamente como um playground – percebe seu lugar na poética de Adalberto Souza. Embora este poeta não demonstre muita disposição para reconhecê-lo. Talvez por charme cult ou mistério do ministério da poesia. O que, por outro lado, explica o aspecto mecânico-simulacral de sua “montanha-russa” alagoana. Pois essa trata, na certa, daquela “transcendência do tipo original” do pensamento crítico bakhtiniano; a saber: “não mais ‘vertical’, mas ‘horizontal’ ou ‘lateral’; não mais de essência, mas de posição.” (TODOROV citando BAKHTIN, 2000, p. 17)

 

A assunção desejante e portanto dramatúrgica do eu-poético, em Adalberto Souza, é, na realidade psíquica deste criativo, uma estratégia obsessiva de sobrevivência simbólica. Uma estratégia que garante a ele, como se fosse uma religião, o nexo criativo entre fantasia e arte. E tudo isso para a criação e recriação de si e do outro no fazer literário. Pelo menos é o que tudo indica nos seguintes versos: “Reinvento-me / de tantas formas / possíveis. /// Reinvento-me / apenas para apagar / tuas / marcas / do meu / caminho.” (p. 86) Pois como já dissera o poeta em página anterior de seu livreto: “Prefiro a fantasia, / mil vezes te criar e recriar. /// Prefiro sonhar a vida / sem tropeços ou rotinas. /// Prefiro assim construir e desconstruir / tantos sonhos / para não acordar cansado de quem sou. /// Prefiro me reescrever / tantas vezes quanto puder / sem me perder de vista. / Prefiro me reinventar / assim criador e criatura. / Renascer.” (p. 52)

 

Mas como um poeta que em sua formação intelectual já pisou outros solos consagrados além do literário – como, por exemplo, o solo epistemológico da Psicologia –, Adalberto Souza encontra-se ciente, em sua experiência poética, desta “ilusão” com futuro (FREUD). Ou melhor: desta “fantasia” (p. 52) criativa que sempre o religa ao outro com poética. Entretanto, ele escreve receoso de um mal amnésico que já assola alguns, precocemente, nos dias atuais: “Tenho medo / de apenas / desacreditar /de mim. /// Um dia olhar / num espelho / e sendo / olhado / de volta / não / saber / quem / é esse / estranho / que / me possui.” (p. 53)

 

Assim sendo, nesse processo profundamente dinâmico de escritura e reescritura reinventiva de si e do outro, o eu-poético, em Adalberto Souza, o constrói inclusive como “Melancólica / casa mal-assombrada” (p. 54) onde nesta – ou mais exatamente “Num canto de mim mesmo” (p. 54), como nos relata o supracitado poeta – um “antigo fantasma habita.” (p. 54) Um fantasma ao mesmo tempo kardecista (exógeno) e freudio-goetheano (endógeno) que, por ser “antigo” e inscrever-se arquetipicamente na história da vida real do poeta, é chamado hoje, antiquadamente, de amor grego. Uma amor que desde há muito ele sente na própria “pele” (p. 66), mas que ainda parece enxerga-lo com “olhos incautos” (p. 17) e "Olhar de desespero / um grito / mudo / num / silêncio / perturbador." (p. 47) Pois, afinal, um olhar de “Bíblia Sagrada / em criado mudo de motel.” (p. 64) E decerto por isso diz: “Para tudo o tempo tem um remédio. / Exceto para / aquela mágoa / guardada. /// Tanto tempo / escondida / que dela / só temos / a leve memória / e a certeza de que / sempre / estará lá, / latejando nossa / vergonha.” (p. 70)  

 

É esse olhar fantasmático que faz de Adalberto Souza um poeta “Insone” (p. 57). Um poeta ainda a enxergar-se, no “espelho” (p. 54) narcísico da contemporaneidade de ego minimal, como uma “Estranha personagem” (p. 54) que o possui. Aliás, uma personagem pirandelliana à procura de um autor em "Noites frias / na cidade que dorme” (p. 57). Porém um autor que desperte seus habitantes do sono dialético e os façam inscrever tal “personagem”, pelo menos, na pequena história da literatura alagoana. E no mais: propague sua imagem, na memória coletiva das Alagoas, “Igual / esse cheiro / de caju doce / espalhado pela cidade / que dorme / de mim / esquecida.” (p. 57)

 

Note-se que o entorno social do poeta, sua realidade ético-cognitiva – ou seja: a exterioridade mais ampla de seu mundo vivido – é representada literalmente como uma “cidade / que dorme”. Ora, percebe-se nesta representação de Maceió a valoração sub-reptícia desta como sendo o contraponto exato da New York, da composição de Fred Ebb e John Kander (apud MAIA, 2013, p. s/n), como uma “cidade que nunca dorme”. E esta representação valorativa é sem dúvida o tributo simbólico, pago por Adalberto Souza, para seu ingresso pós-modernamente prestigioso em “Maceyork”: a Maceió subjetiva dos poetas e artistas plásticos “maceyorkinos”. Uma capital alagoana radicalmente imaginária, que, na psico-história da arte em Alagoas, se configura como “uma espécie de protetorado da ‘cultura incompreendida’ do pós-modernismo poético deles.” (MAIA, 2013, p. 18)

 

Em seu livro O Mínimo Eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis, Christopher Lasch (1987, p. 12-13) nos mostra

como as condições sociais vigentes, especialmente as fantásticas imagens da produção de massas que formam as nossas concepções do mundo, não somente encorajam uma contração defensiva do eu como colaboram para apagar as fronteiras entre o indivíduo e seu meio. Como nos lembra a lenda grega, é, antes de tudo, um eu inseguro de seus próprios limites, que ora almeja reconstruir o mundo à sua própria imagem, ora anseia fundir-se em seu ambiente numa extasiada união. A atual preocupação com a “identidade” expressa em certa medida esse embaraço em definir as fronteiras da individualidade. E também o faz o estilo minimalista da arte e da literatura contemporâneas, que extrai grande parte de seus motivos da cultura popular, em particular da invasão da experiência pelas imagens, e deste modo ajuda-nos a ver que a individualidade mínima não é só uma resposta defensiva ao perigo mas se origina de uma transformação social mais profunda: a substituição de um mundo confiável de objetos duráveis por um mundo de imagens oscilantes que torna cada vez mais difícil a distinção entre a realidade e a fantasia. 

 

Em meio à essa dificuldade crescente, como uma espécie de corveia desviada de seu legítimo destinatário, em pecaminoso esquema de improbidade administrativa, na economia das trocas simbólicas ainda vigentes na velha Alagoas, segue anexado à esse tributo à Maceyork-artística, mais exatamente à das artes visuais, o seguinte apelo existencial (e um tanto desesperado) de um poeta minimalista que é, também, um estudioso da história da arte: “Livra-me dessa solidão / de tintas vermelhas / Hopper de intensidades enlouquecidas. /// Pinta meu corpo / do mais claro azul. / E / disfarça em mim / enovelado sentido: / confuso / tango argentino / vermelhamente triste.” (p. 43)

 

Mas depois, na sequencia desse apelo aos “maceyorkinos” – esse “pecadores, regenerantes e santos” de uma “modernidade a galope” na velha Alagoas (VILLAS BOAS, p. 11) – o poeta-herói, em Adalberto Souza, entre em profunda crise psicossocial por esse “Esquálido desejo” de pintar e/ou escrever modernamente no Paraíso das Águas (Maceió). Desejo este, no duplo sentido filosófico e psicanalítico, que é fonte fantasmática de mais uma “velada confusão” (p. 55) sócio-mental que, agora, o faz apelar religiosamente à “Nossa Senhora da Solidão”: a equivalente maceyorkina de Nossa Senhora dos Prazeres, a padroeira de Maceió: “Nossa Senhora da Solidão, / padroeira dos que esperam / sentados, / em pé, cansados. /// Nossa Senhora da Solidão, / protetora dos meus silêncios, / olhai por mim, pecador, / agora e na hora dos meus tormentos. / E, sendo assim, / protetora, / livrai-me do mal cáustico / do meu arrependimento.” (p. 103)

 

E de fato subjetivo o poeta heróico livra-se desse “mal cáustico” que o leva a desistir – mas sem convicção – desse “Esquálido desejo”. Um “desejo”, no duplo sentido filosófico e psicanalítico, que, para ele, é “Amor que passa / Passador” (SOUZA, 2013, p. 15)... Amor que, ao passar, transforma-o contudo prazerosamente naquela Maceió insular que se encontra descrita nos livros de geografia. E agora também, na cartografia apocalíptica deste, por conta do movimento diaspórico de Adalberto Souza (2013, p. 15), numa “Ilha que fica / Desertificada / Ilha sem cor / Sem mar, sem areia, sem pedra / Este sou eu / Uma grande ilha cercada de nada.” Pois “Cercam-se todos / os lados, lagoa / pantanosa, prateada covardia” (2014, p. 94).

 

Neste exato ponto, tem-se a confirmação do pressuposto de Lasch (1987, p, 12) da “extasiada união” do poeta com seu ambiente biopsicossociocultural. Onde neste, inclusive, o poeta extrai, através de sua escrita contemporânea e minimalista, “grande parte de seus motivos da cultura popular” (LASCH, 1987, p. 12-13). Mas “em particular”, como observa ainda Lasch (1987, p. 13), “da invasão da experiência pelas imagens”. Inclusive pelas imagens produzidas, com exclusividade, para entretenimento infantil, pela indústria cultural de massa: “Eu queria te escrever / um gibi. Não um comic book.”, diz o poeta, reconhecendo seu verdadeiro “desejo” em sua experiência humana contraditória em Maceyork – sua novíssima terra-mater. E complementando sua aparente desistência dessa Maceió subjetiva, ele, então, se explica melhor à esta espécie de Terra Santa: “Eu queria te escrever / um gibi, / daqueles / da infância, / que prendia toda a atenção. / Histórias de reviravoltas, / de tantas viras / e tão poucas voltas. /// Eu queria te escrever / um gibi, assim, / num papel / vagabundo, / igual teu amor, / soltando a cor / na ponta / dos dedos.” (p. 87)

 

Ora: ao fazer-se assim tributária da ideologia liberal-individualista, a poética de Adalberto Souza torna-se, de maneira ambivalente ou autocontraditória, um produto-produtor daquela “cultura da solidão principal e sem saída” (BAKHTIN apud TODOROV, 2000, p. 16). Aquela mesma que é, também, geradora da “idéia [sic] do ser auto-suficiente” e correlata da narcisística “cultura do mínimo eu” – da qual nos fala Christopher Lasch (1987). Mas jamais, de fato, uma “cultura incompreendida” (AMORIM; OLIVEIRA, 2006, p. B1) como pressupunha, ou de fato credita, o jornalismo cultural alagoano. Daí a este, inclusive, podemos pressupor, o apelo do poeta à decodificação semiótica de suas mensagens: “Traduz os poemas que te escrevo. / Descobre as pistas que te indico. /// Não sei te falar de outra forma. /// Apenas / através por de sinais /// Intrepreta-me.” (p. 33).

 

E radicalizando às últimas consequências tal apelo, o poeta heroico em Adalberto Souza diz mais – chegando ao ponto de sugerir ao outro, inclusive, uma metodologia para realizar essa interpretação de sua existência literalizada poeticamente: “Invada minha vida, / traga as perguntas / que prefiro / não saber as respostas. /// Traga sempre / as respostas. / Não / importando / a maldita / pergunta.” (p. 21) “Absolva minha loucura / veja meu mundo / sempre / com olhos de primeira vez. /// Observe meus detalhes, / é lá que me encontro. /// Sempre.” (p. 23)

 

Aliás, não só: neste apelo ao outro – uma outridade que também pode ser vista, teoricamente, como aquele “outro generalizado” de Herbert Mead (citado por FARR, ????, p. ?)– o poeta de “olhos incautos” (p. 17), como um bom e autêntico pós-modernista que é, chega ao ponto de garantir aos seus leitores, especialmente aos midiáticos, uma total liberdade de interpretação e, portanto, de expressão: “Transpasse-me / ressignifique / minhas entrelinhas /// Busque-me / – encontre / minha falta de sentido – / na ausência / desordenada / de suas mãos.” (p. 27) Mas na certa ele faz tal apelo informado por Freud de que onde há medo existe sempre desejo. Por isso, sedutoramente, ele incorpora o fantasma da misteriosa e aterradora esfinge egípcia, diante de seus potenciais leitores (edípicos?), dizendo à estes o seguinte: “Faz-me / enigma / no calor da tua pele. /// Decifra-me / antes / que / te devore.” (p. 26)

 

No entanto, em meio a esses antigos “fantasmas” em ação, na poética de Adalberto Souza, é interessante notar, aqui e ali, a dependência homológica – algumas vezes também tipicamente medieval – entre os campos da arte e da religião. Uma dependência que, na certa em mais um “enovelado dia” (p. 55) de seu cotidiano, é reconhecida de maneira conflitada e auto-irônica, pelo próprio poeta, nos “14 passos do esquecimento / via-crucis / de uma / cruel / paixão / sem / mais / nenhum /resquício.” (p. 81) Daí Adalberto, como poeta e em pleno contexto de ultramodernidade (ou pós-modernismo), ver-se “perdido” (p. 64) no mundo. E neste, o que é bem pior, transformado em uma coisa, um objeto inanimado, um ser-em-si. Ou ainda, mais especificamente, nos termos dele próprio, numa “Bíblia Sagrada / em criado-mudo de motel”. (p. 64)

 

A imagem projetada neste último enunciado poético, mais parece com a de um quadro de natureza-morta, em óleo sobre tela, que fora contemplado pelo poeta em algum museu, residência anacrônica ou aula de história da arte. Tal imagem, no entanto, configura uma visão do tempo em duas idades distintas deste que coabitam o mesmo espaço de maneira visível, material e aparentemente fixa; a saber: o passado Antigo, corporificado pela “Bíblia Sagrada”, e o presente ultramoderno evidenciado pelo “motel”. Neste exato ponto de nossa leitura crítica do livro de Adalberto Souza, percebemos que sua poética descende, sem sombra de dúvida, da linhagem espiritual do romantismo alemão. Pois de acordo com o teórico russo Mikhail Bakhtin (2000, p. 262), que em sua Estética da Criação Verbal faz um balanço da análise a que submeteu a visão do tempo em Goethe:

As características essenciais desta visão são as seguintes: a fusão do tempo (entre o passado e o presente), a marca nitidamente visível do tempo inscrita no espaço, a união indissolúvel do tempo do acontecimento ao lugar concreto de sua realização (Lokalität und Geschichte), o vínculo substancial e visível que liga os tempos (o presente ao passado), a atividade criadora do tempo (do passado no presente e do próprio presente), a necessidade que penetra o tempo, que liga o tempo ao espaço e os tempos entre si, e, finalmente, com base na necessidade que impregna o tempo especializado, a inscrição do futuro que assegura a plenitude ao tempo tal como ele aparece nas imagens de Goethe.

 

E identificando o poeta visualista ao “contemplador”, Bakhtin (2000, p. 260), neste balanço analítico, arremata assim essa questão:” A realidade do tempo histórico no interior de um pequeno espaço em Roma, a coexistência visível de diversas épocas, fazem o contemplador sentir-se participante do grande conselho dos destinos universais.” (grifo do autor) E acrescenta, logo em seguida, retocando tal arremate teórico: “Roma [para Goethe] é o grande cronotopo da história humana.” (grifo meu) Já para o poeta Adalberto Souza – um criativo heróico do romantismo tardio do subdesenvolvimento no terceiro mundo alagoano – este cronotopo é um quarto de “motel” com “Bíblia Sagrada / em criado-mudo” (p. 64). Contudo, um espaço de interações afetivo-sexuais e sociais que se revela tão primitivo, para o poeta, que o leva a “entalhar / em bruta pedra / aquele olhar”... Aquele mesmo olhar romântico de Goethe (p. 66), numa “caverna secreta” no próprio “coração”. Órgão inclusive descrito, por Adalberto, como um “Perfeito abrigo / onde guardo / o que não mais / será pronunciado.” (p. 67)

 

Esta anunciada ação escultórica, note-se de passagem, tem um propósito subjetivo confessado pelo poeta: fazer com que a pessoa amada e desejada, por ele, “não / esqueça nunca / a frieza / daquele toque / rasgando / minha pele.” (p. 66) Pele que ele, em seu espelho totêmico, deseja vê-la ainda pintada “do mais claro azul” (p. 43). Uma cor que assim incorporada (isto é, feita corpo mesmo!), sinalize, na cena imaginária, sua distinção propriamente cultural como criativo das letras. Em outras palavras: uma coloração dermatológica que estampe nele próprio, aos olhos do outro, a deificação consagradora e tão esperada do seu heroico eu-poético. Aliás tão heroico, divino e “azul” quanto o corpo de Vishnu – um deus astronauta da mais remota Antiguidade indiana, ao qual o o poeta parece dizer: "Num céu / de fumaça, / aprendo / todo dia / a interpretar / teus sinais / para / me tornar / tua tradução." (p. 20). Ora: se Deus está nos detalhes, como assevera um velha crença, então o eu-poético em Adalberto Souza se traduz, naquela "outra cena" (ein andare schauplatz) de que nos fala Freud, como a referida deidade da Índia Antiga. Pois como inclisive escreve o poeta supracitado: "Procura minhas entrelinhas. /// São nos detalhes / que me encontro / que te espero. /// Desvenda meu mistério / escondido na palavra / descoberta em mim." (p. 24)  

 

É certamente nessa coexistência dos tempos (primitivo e moderno), ou amálgama cronológico epifânico (primitivismo-modernismo), que Adalberto Souza encontra explicação, em um quarto de “motel”, para o “estranho sentido” de uma “velada confusão” na mente do outro – “uma pessoa prática.” [106] “Uma paródia de si mesmo / num / espelho / onde / não / mais / se / encontrava” [p. 47) e, além do mais, com um “nome” feito “nau à deriva” [p. 107]) –; mas também, por co-extensão ou identificação projetiva, na dele próprio. Uma “confusão”, na verdade calendárica, que a vida quase toda lhe perturba o sono. Daí o poeta se perguntar, ainda acordado, na “cidade que dorme”: “Será que esse tímido amanhecer / vai domar / o ímpeto feroz dessa madrugada insone?” (p. 51) E ele assim o faz, como estamos a ver, evocando, implicitamente o citado poeta alemão em seu romântico movimento Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto, em bom português).

 

Na “Busca ensandecida” (p. 73) e sempre frustrada de se relacionar com esse outro, o tempo é percebido e literariamente representado por Adalberto Souza como sendo fugidio e tão luminosamente ultracelerado ao ponto de, einsteinamente, se tornar um tempo relativo; ou seja: um tempo “Sem tempo / nem / de virar / história.” (p. 77) Um tempo que causa amnésia social e, na sequência, “Uma perda mais rápida que a velocidade da luz” (p. 77). Esse tempo, na sequência, exige do poeta que este conceba e pratique o exercício da memória como resistência cultural. Daí, de maneira dilemática, em dois momentos diferentes de sua produção poética, este escrever, com profunda ambivalência, os seguintes versos fragmentados em estrofes minimalistas e delgada: “Apenas / esquecer. [...] Não / quero / esquecer, / por / não / conseguir, / por / não / poder.” (respectivamente, p. 81 e 73)

 

Ciente de que sua situação existencial é constantemente modificada, ainda que ele próprio não queira saber disso, queira “esquecer” (p. 81), o poeta Adalberto Souza percebe que não pode mais ficar remanchando, marcando “14 passos do esquecimento” em Maceió. Então, movido de dentro da “casa mal-assombrada” (p.54) de seu ser-aí, pelo fantasmático sentimento de solidão – numa espécie de exílio sui generis em seu próprio lugar de origem (“O inferno / é / a / cara / da/ solidão.” [p. 97]) – ele projeta intensamente uma cenografia intimista que contém as seguintes coisas: “estante”, “Porta-retratos sem foto”, “copos”, “sofá”, “tapete”, “porta”, “mala vermelha pronta”, “livros”, “discos” e, principalmente, “espelho” (p. 79 e 80). Este último (“Totem sagrado / válvula de escape / para onde resvala / todo sofrimento.” [p. 54]) para funcionar, no espaço privado, como dispositivo estimulador das projeções do “inconsciente maquínico” (GUATTARI, ????, p. ?) do poeta, em seus dolorosos processos de produção de subjetividade. Pois como ele próprio parece tentar convencer à si mesmo ao espelho, sabendo de antemão o quanto “todo [esse] sofrimento” ainda pode lhe ser rentável, na economia simbólica do campo literário, então ele diz: “Deixa essa dor. / De tantas / e / tantas formas / ela / me / faz / exatamente / ser o que / hoje / sou.” (p. 65) E complementa com sugestão metódica: “Desfia essa trama / –  nós intrincados – / de que não conseguimos ser. /// Por não querer. / Por não esquecer.” (p. 92)

 

Ora, em matéria de criatividade literária, todas essas coisas são integradas – com intensidade material, visível e consciente – à sua postura emotivo ético-cognitiva na vida: “Uma / vida / com / incontáveis / enganadoras / promessas / a dois.” (p. 83) E por isso mesmo: “De repente / assim, / de / tantas / formas / inexplicáveis, acabou.” (p. 71) E como acrescenta ainda o poeta em outra página de seu livro: “Escapa / entre / os / dedos / a tão / nítida / certeza / de ser / apenas / uma vez / mais / feliz.” (p. 93)

 

Tal experiência humana – com tamanha postura político-criativa em escala individual – facilita bastante o entendimento à respeito daquela “diáspora” para além das fronteiras do Estado de Alagoas. Ou, senão mesmo, até dos particulares limites da alagoanidade. Pois esta atitude diaspórica, como já assinalamos acima, é ainda “incompreendida” pela imensa maioria alagoana (AMORIM; OLIVEIRA, 2006, p. B1): “E foi assim que ele partiu, / os sonhos desfeitos, / a mala vermelha pronta. /// Na boca, / nos olhos, no andar / naufrágio / de / tantos planos. /// Levando / todos / os livros, / os discos, / deixando / os / espaços / vazios. /// Onde / o / nada / do outro / preencheria / para sempre / a / solidão / daquela / casa.” (p. 80)

 

Mas esta partida, note-se de passagem, só acontecera depois da seguinte e aguda constatação de um poeta insone “na cidade que dorme” (p. 57): “Quadros, / tabelas, / números complicados /// Misturas, / equações, / equilibradas, / física / quântica. /// E / nada / para / ajudar / a te / entender.” (p. 35) Sequer um “Resumo / palpável / de sua / confusão. Explicação / inútil / na / tentativa / de / entender” (p. 83), como ele próprio observa ironizando-se no espelho. Note-se também que a singularidade desta partida do poeta-herói, é, para ele mesmo, bem mais que um evento literariamente registrável. É inclusive um evento cinematicamente roteirizável que tem, como cenário, o aeroporto de uma Maceió chuvosa e alagada como se seu mundinho estivesse na iminência de um dilúvio local: “Cena de filme: /// Chove torrencialmente, / carros lavados, / ruas alagadas. /// Por dentro / ele também chorava. /// Passageiros em frenesi / tantos rostos / idas e chegadas. /// Em pé / esperando / a hora de sua partida, / por tanto que / ficou para trás, / por dentro / ele também chove.” (p. 95)

 

Em Fantasmas Não Andam de Montanha-Russa, os sinais visíveis e mais complexos de tempo e espaço que Alberto Souza circula e registra, em sua poesia pós-modernista, revelam um momento existencial do poeta com “enovelado dia” (p. 55) e uma “Noite” niilista e preguiçosa de “sexta-feira” (p. 106) com “ócio de nadas” (p. 48). Mas que pode chegar para o outro “cheia de / misteriosas / possibilidades.” (p. 29) Uma noite na qual o poeta-herói “pisando / em cactos” (p. 68), na sua relação com este, chega à uma “madrugada insone” (p. 51) de “Domingo”. Este terminal e “sonolento dia” (p. 41) das quatro semanas do mês, é, na improvável definição poética de Adalberto, um “gigante quebra cabeça” de “peças em preto e branco / onde encaixo meu desencanto.” (p. 49) O exato “quebra-cabeça” que lhe sequestra o sono “na cidade que dorme” (p. 57) e o faz flanar, em “Noites frias” e nômades, “pela praça / à espera da primeira / floração: / azuis, / verdes, / grenás.” (p. 57)

 

Esses sinais, segundo Bakhtin (2000, p. 243), constituem “os indícios da marcha do tempo” evidenciando, linguisticamente, uma “estética da criação verbal” produzida pelo “trabalho dos olhos que veem”. Um trabalho que, por sua vez, combina-se com um processo muito complexo do pensamento. Daí porque Adalberto Souza investe importância radical na visualidade; isto é, na chamada “cultura do olho” (BAKHTIN, 2000, p. 245, grifo do autor). Daí as alusões às cores, à pintura e aos pintores – como, por exemplo, às de um “Hopper de intensidades enlouquecidas” (p. 43) – fazendo assim a literatura e as artes plásticas coincidirem; pois ainda de acordo com Bakhtin (2000, p. 246), estas permitiriam aos seus leitores visualizar, com precisão, as memórias dos lugares por onde anda o poeta. E como este anda à procura de uma autor, de um interpretante para a sua história de vida. Uma vida já minimamente notabilizada em textos poéticos minimalistas.

 

No entanto, como o assegura Bakhtin (2000, p. 247, grifos do autor): “Em toda parte o olho que vê procura e encontra o tempo”; ou seja: “a evolução, a formação, a história.” Mesmo que estas sejam aquelas “Sem / tempo / nem / de virar / história.” (SOUZA, 2014, p. 73)

 

 

 

REFERÊNCIAS (ainda incompletas!)

 

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão.................................................................................

GUATTARI, Félix. O inconsciente maquínico..................................................................................

LASCH, Christopher. O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

MAIA, Ricardo. Maceyorkinos: escritos de crítica cultural à Maceió-artística glocalizada. 1ª ed. Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2013.

SOUZA, Adalberto. Das coisas que esquecemos pelo caminho. 1ª ed. Imprensa Oficial Graciliano Ramos / EDUFAL, 2013.

SOUZA, Adalberto. Fantasmas não andam de montanha-russa. 1ª ed. Porto Alegre: Buqui, 2014.

 

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Ricardo Maia ESCRITO POR Ricardo Maia Escritor
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