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RETRATO DE UMA CASA

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           Todas as vezes que eu retornava lá, encontrava-o, (aquele gato gordo e octogenário), com seu miado seco e medonho, reclamando uma certa ausência por todos os cômodos da casa, como se estivesse à espreita de algum fantasma, e por mais bizarro que isso possa parecer, agora era ele, que com seu fôlego felino a mantinha viva na chama das suas sete vidas, das quais, por sinal, e a julgar pela sua idade, já havia perdido seis.

           Contrariando a sua natureza ele possuía verdadira fobia de altura, gostava de saber bem onde pisava, caminhava com suas patas peludas e amarelas bem grudadas no chão. Desde pequeno era assim, medroso, tolo e bonachão.

           Como zombavam do tempo! Ele e a velha árvore plantada na frente da casa. E que dupla ímpar formavam!  Muitas vezes, entre trocas de carinho ele afiava suas garras em seu tronco seco e estriado, e ela com voz galhosa e cansada gentilmente lhe agradecia por ter lhe coçado as costas.Durante a noite, enquanto o Ingazeiro sombreava a casa e espantava com seus galhos fantasmagóricos os visitantes indesejados, ele era o único, (para minha inveja) que a via e seguia com sua visão noturna e espectral, pareciam duas bolas de fogo, seus brilhantes olhos de gato presenteados por Deus.

          Os dois eram uma espécie de elo, um pouco do que restou dela e do seu calor maternal, como as roupas impregnadas de perfume, o pote de biscoito sobre a geladeira; o menino de plástico alaranjado, que rezava em silêncio, e a seu pedido velava por  todos nós; a cama vazia... o armário pendurado na perede, a menina de porcelana, que alheia a tudo e a todos alimentava os gansos, o sofá sentado solitário no canto da sala...a Bíblia com seus pequenos grifos...Era só a incerteza ( que a encontraria sempre lá, no mesmo endereço), entre a certeza mórbida de finitude que me atormentava insistentemente, dia após dia.

        Certa manhã, o destino o surpreendeu, como todo ser animado, ele também partiu (não sem certa relutância), e seus miados roucos tão impertinentes para a vizinhança, deixaram de ecoar pela casa. Pouco depois, atacado vorazmente por caramujos africanos e um bando de cupins famintos, após dezessete anos de flores, frutos, e serviço prestado de vigilância, o Ingazeiro tombou, e exalou seu último suspiro purificando o ar.

       Agora, aquela casa sem alma era como a casca seca de uma frondosa árvore que mansamente perdeu toda a seiva; entretanto, ainda permanecia nela uma sútil fragrância.

       Lentamente, para a minha tristeza, a casa mudava-se dali, perdia o cheiro, a forma, a cor, o calor; e foi residir para sempre dentro de um álbum fotográfico. E todas as vezes que olho saudosamente a sua fotografia; eles estão lá, e sorrindo me convidam a entrar; minha mãe, o gato e o pé de ingá.

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Cleide Vanderley ESCRITO POR Cleide Vanderley Escritora
Maceió - AL

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