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O CUPIDO O CULPADO - Tchello d'Barros

O CUPIDO O CULPADO
Tchello d’Barros

Não é que ele fosse solitário ou anti-social, tampouco era tímido ou egocêntrico. A verdade é que gostava de ficar só, em estado de solitude, como recomendava o poeta Rainer Maria Rilke. Até seu esporte preferido era individualista, pois sempre que podia lá estava ele praticando arco-e-flecha. Quando menino, brincava com a garotada, quando todos, para fazerem parte da turma deveriam ter seu próprio arco, aljava e flechas. O alvo era um coqueiro no fim da rua e servia para todos treinarem a pontaria. Depois alguém dava o grito do Tarzan e os outros todos ululavam como índios e iam andar de cipó nas árvores do bosque ou nadar no riozinho. Bons tempos!

Adolescente, ganhou um arco talhado em madeira, feito por um descendente de índios do norte. Assustou-se quando atirou a primeira flecha e viu-a desaparecer por cima das árvores do bosque. Certa vez, estava viajando, visitando um castelo, e ao lado de um dos muros imensos viu alguém praticando o esporte, atirando sucessivas setas num alvo à cerca de cinqüenta metros. Decidiu pesquisar e depois de muito estudar, adquiriu os equipamentos necessários. Com muito treino, muitos erros e acertos depois, desenvolveu a pontaria e a concentração a tal ponto que acabou por tornar-se imbatível naquela arte.

O Cupido, que há milênios usa o mesmo instrumento para acertar o coraçãozinho dos candidatos a Romeu e Julieta, escolheu-o para alvo de mais uma de suas setas. Achou que aquela solitude toda deveria ser substituída, não por uma dessas meras paixões inflamadas ou algum romance ocasional, mas por uma história de amor de verdade, daquelas que muitos chamam de almas gêmeas, com direito a final feliz.

Esse anjinho sapeca, escolheu na aljava uma das melhores flechas, que guardava há tempos, para uma ocasião especial. Era toda de luz dourada, até parecia neon. Então ele vergou seu arco, esperou um momento de distração de nosso arqueiro, mirou bem no centro do peito e disparou! Só não contava com uma coisa: nosso herói, que conhecia flechas como ninguém, ao sentir que uma dessas vinha em sua direção, rápido como um ninja, conseguiu interceptá-la, agarrando-a com a mão. Então apontou seu arco para o cupido, que quando viu, fugiu em disparada e até hoje não se sabe aonde foi parar, tamanha a falta de amor verdadeiro nesse mundo. Restava agora descobrir o que fazer com aquela flechinha brilhante.

Depois que a notícia se espalhou, muita gente acorreu ao arqueiro para emprestar, roubar ou mesmo comprar a tal flecha milagrosa do amor. Queriam cravá-la no próprio peito, sem demora, para viver, nem que fosse uma vez só na vida, o maior dos sentimentos, a mais sublime das experiências. Houve quem lhe oferecesse ouro, mulheres, boiadas, camelos, e até mesmo metade de um reino. Uns marqueteiros propuseram dividi-la em pedacinhos minúsculos e vendê-los como pílulas do amor, ou diluí-la e vender como elixir da paixão. Houve choradeiras, histerias e súplicas, até quem apenas se contentaria em tocar de leve, tamanha sua fé. Então ele sentiu-se muito comovido, com a miséria do amor implorado.

Ninguém sabe exatamente o que aconteceu com a flecha. Uns dizem que foi feito um grande leilão e foi arrematada por uma socialite burguesa, dessas que casam por interesse. Outros contam que, compadecido, ele doou para uma virgem, que dizia não acreditar em amor. A versão mais aceita é que o Cupido procurou-o mais tarde e fizeram um trato: ele devolveria a flecha, com a promessa de não ser alvo nunca mais da mira do anjinho. Negócio feito!

O tempo passou e num certo fim de tarde, depois de mais um treino com o arco, ele relembrava tudo ao caminhar pelas ruas da cidade. Estava nesses devaneios, quando ao dobrar uma esquina, deu de cara com um certo par de cílios compridos, que traziam junto de si duas gotas do Atlântico. Foi mais rápido que uma seta, que um piscar de olhos, esse amor-à-primeira-vista. As buzinas da hora do rush abafaram o riso de um certo pivete com asas, sentado sobre o semáforo daquela esquina.






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