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A BARONESA VAGONETT E O BARÃO DESCARRYLHOT


Aquele não era mesmo o dia da Baronesa Vagonett! O dia estava cinzento, esquisito, apocalíptico. Algo parecia não estar bem. O Barão Descarrylhot estava péssimo, de muito mau humor.
A baronesa Vagonett não guardava quieta os desaforos exarados pelo bonachudo e fanfarrão Barão,Sir Descarrylhot. Qualquer discussão era motivo de voarem pelas largas janelas as finas louças de cerâmica portuguesa, os talheres ingleses rogers, os cristais de bacaratt e os instrumentos musicais franceses do casarão de engenho, que ficava nas imediações do antigo local conhecido como "Pedregal". Os escravos, coitados, eram que tinham que sair recolhendo todos os pedaços que sobravam da contenda do casal estressado, revirando, aqui e acolá, com as mãos pela restinga espinhenta à procura do que sobrava. Sra. Vagonett só não jogava fora os seus amuletos africanos, místicos e misteriosos, que ganhara de uma rezadeira que trabalhava na cozinha do engenho por muitos anos e que tinha uma espécie de pacto secreto com ela.
O Barão Descarrylhot, cansado de tanta teimosia e prejuízos dados pela Baronesa Vagonett - que não largava as mãos e bocas dos perfumes franceses, bacalhaus, vinhos do Porto, champanhas, geleias de berrys, caviar, pernis patas-negra e outras finas iguarias importadas que chegavam nos vapores provenientes do velho mundo - resolveu aprontar-lhe um tremendo susto.
O Barão, certo dia, partira de charrete de sua propriedade, pela manhãzinha, para a Estação de São João da Barra sem que a Baronesa Vagonett percebesse, pois ainda estava numa de suas ressacas clássicas de final de semana. Chegando lá, combinou com o agente da estação que gostaria de dar um susto para que a Senhora Vagonett levasse um "corretivo" e entrasse na linha, literalmente. Assim foi acordado. O agente da estação, sabendo que o Barão era homem de poder, não recusou o "pedido" e sabendo que o homem era de bons recursos, acabou por ganhar uns bons mil réis de incentivo à futura maldade a ser proposta.
A incumbência do Agente da Estação era o de avisar ao maquinista, quando da baldeação na Estação de São João da Barra, que no quilômetro 8, estaria a Baronesa Vagonett presa em correntes e prestes a ser esmagada pelo dragão de fogo que passaria em disparada em direção ao Ponto do Leite - outra estaçãozinha do percurso até Campos dos Goytacazes. Quando chegasse bem próximo, o trem daria o contra-vapor e pararia quase ao corpo da nobre e esbanjadora baronesa. Assim foi o trato!
Quando o Barão Descarrylhot voltou para sua mansão, fez questão de acordar a Senhora Vagonett com um falso beijo e a convidou gentilmente para um maravilhoso café, servido pelos serviçais com requinte de dia de festas, regado a muitos doces e frutas de época. Na mesa, abacaxis, cajus, goiabas, mandacarús, abios, abricós, camboins, pitangas, figos-do-mato, pastoras, ingás, grumixamas e muitas outras da região, colhidas de sua propriedade. Os doces coloriam a mesa, como o bolo amélia, chuvisco, caldas diversas, goiabadas, brevidades, quindins e tantos outros.
O sorriso da Baronesa Vagonett foi de desconfiança, mas aos poucos foi mostrando estar feliz pela mesa farta posta pelo Barão.
Depois do desejum, o Barão a convida para dar um passeio nas margens da linha férrea do Ramal Campista. Ela acaba aceitando, mas somente pelo motivo de desgastar o que havia comido em excesso, como sempre. Ela não sabia que por detrás daquele terno nobre e bigode de honra, existia um Sir Descarrylhot perverso, macabro, insano.Eles já não se davam bem fazia bastante tempo.
Próximo à linha, Vagonett é jogada por entre os trilhos com a força do Barão e neste momento surgem dois capatazes pagos por ele para fazerem a amarração de correntes que seriam presas nos grilhões junto aos batentes. Vagonett grita desesperadamente pedindo socorro e xingando muito o Barão traidor. As pragas foram fortes e exalavam cheiro de víbora!
Minutos antes, a locomotiva com os dez vagões, já estava em baldeação na Estação de São João da Barra e pronta para seguir viagem rumo ao corpo acorrentado de Vagonett. O Barão deixa então a Baronesa sozinha chorando em desespero e segue com os capatazes para a fazenda, com um sorriso cínico nos lábios.
Lá veio o trem, fumegando e apitando pelas retas da planície! Vagonett sente a vibração da chegada do trem pela trepidação dos trilhos e treme também. Faz reza forte, segura o amuleto africano e vende até a sua alma ao "coisa ruim". Ela não era fácil! O trem se aproxima cada vez mais. Vagonett se contorce pelas correntes, estica e encolhe o corpo, escarra na direção dos pulsos. Era uma desafeta religiosa, não acreditava em Deus, era acostumada a criar armadilhas e sair delas!
Ao mesmo tempo, o Barão Descarrylhot estava sentado numa cadeira de balanço de sua varanda, lustrando sua carabina e com as botas brilhosas em cima do para-peito da sacada, dava altas gargalhadas tentando imaginar como Vagonett iria se borrar com a pregação vingativa.
O maquinista estava avisado pelo agente que teria que frear no contra-vapor em determinado ponto no propósito de não atropelar a maldita, estava certo disso. Ao se aproximar do ponto indicado, sentiu que algo estava dando errado, tendo a alavanca de torque da casa de máquinas da locomotiva emperrado para valer. O maquinista, desesperou, gritou, pediu ajuda ao foguista, mas nada pode fazer. O trem estava muito embalado mesmo, naquela reta.
O vento nordeste fez com que, mesmo antes que a locomotiva passasse pelo corpo da megera, jogasse uma nuvem escura da lenha queimada por uns 50 metros à frente da visibilidade do maquinista. Não se conseguiu ver o momento do atropelo e nem se escutou um grito sequer da sacrificada.
O Barão Descarrylhot ouve o trem passar e não parar no ponto indicado. Fica apreensivo, pega o cavalo e sai em velocidade à galope sozinho até o ponto onde colocou sua companheira amarrada. A nuvem escura da Maria-fumaça ainda estava se dissipando por entre as moitas de clusias de restinga quando ele chega próximo ao local e vê os panos de sua mulher estirados nos trilhos. Fica sem reação. Mas para surpresa dele, não viu mais o corpo. Olhou metros à frente, dos lados dos trilhos e nada. Coça a cabeça, põe as mãos na cintura, enfim... não entendeu nada!
Falou em voz baixa: - a megera deu um jeito de escapar e fugiu nua pelos matos! Desgraçada, lamparona! Que tisga !
Pela curiosidade do Barão, ao se abaixar para levantar o vestido da Vagonett jogado nos batentes e trilhos misturados às correntes, se depara cara-a-cara com uma grande jararaca, que mais que depressa, lhe desfecha um bote fatal na altura da carótida, tirando-lhe os últimos suspiros nobres de seus tempos augustos e de austeridades!
O Barão cai estatalado às margens dos trilhos do Pedregal, contando os minutos para a sua morte e como últimas palavras, disse : - O susto que eu quisera lhe dar se tornou no mais puro e mortal veneno que pude provar!
Descerra a vida com a cabeça sobre o trilho, de olhos esbugalhados, pescoço furado, com a visão retilínea e ad eterna no ramal que cortava a planície de riquezas e frustrações...
Vagonett...?
Todos devem imaginar onde ela foi parar!
Quem passar pela SB 2 (Estrada Bairro de Fátima - Degredo) nos dias atuais e ver atravessar no asfalto uma jararaca em movimentos sinuosos e insinuantes, cuidado! Não se aproxime! A Vagonett deixou adeptas!

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Andre Pinto ESCRITO POR Andre Pinto Escritor
São João da Barra - RJ

Membro desde Julho de 2016

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