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De conversa em conversa

 

Tempo de inverno. A mocinha no meio da rua sendo surpreendida pelos primeiros chuviscos, cobre os cabelos com o casaco, que é para não prejudicar o efeito da escovinha. Deus que me livre de achar isso uma besteira. Pra menina, ver o lisinho do cabelo desmanchar, seria um fim de mundo e a gente - eu me refiro a mim e a Josa -, entende dessas coisas. Mas Irene considera que tudo é uma besteira e perda de tempo.

 

Quando a ouço dizer que vaidade, não essa da menina, mas aquela exagerada, que escraviza a pessoa, não é boa coisa, me sinto é muito aliviada. Se for por causa dessa intemperança, graças a Deus, nem Josa, nem eu, haveremos de nos demorarmos no purgatório. Iremos ser hóspedes do Paraíso e bem ligeirinho. Nós duas. Sei não como é isso, mas a nossa ideia de como ele deve ser, se parece.

Um campo verde a perder-se de vista, com jardins enormes, cujas flores eu já as vi em uma porção de sonhos que tenho tido na vida. Não dá nem pra descrever de tão diferentes que são. Enquanto Josa rega eternamente os campos celestiais, eu, deitada em uma rede, alimento essa minha alma com manjares de beleza e assim como os anjos, só comeremos o maná sagrado. Vez por outra, porque nem haveremos de sentir essa fome toda.

 

O que ela não aceita nessa ideia paradisíaca é o porquê de ter que regar, sozinha, os jardins do céu. Ora, e os jardins aqui de casa que a senhorita sempre negligencia? Essa coisa de fazer pouco quando digo que planta é um ser vivo, de ver importância só na existência humana, há de ser compensado quando nos depararmos com a Perfeição, que iluminará nossas imperfeições e nos colocará diante da mais pura consciência. Tudo o que tem vida, participa dessa grandeza divina.

 

Josa me olha com desdém. Nunca ouviu dizer que no paraíso tenha dessas coisas, de regar jardim eternidade afora, só porque não o fez aqui. E pra falar a verdade, eu também não. É só conversa minha pra encher linguiça. Então só para impressioná-la, começo a falar passagens soltas do Bardo Thodol, o Livro Tibetano dos Mortos, e dividir assim minhas apreensões, que não posso negá-las,   contando sobre o que li. De uma coisa eu sei, quando eu estiver pra morrer, quero padre, quero extrema unção, ladainha, aquela porção de beatas ao redor da minha cama rezando em meu favor, me recomendando, e eu ali, de venta fina, como Odete se refere a gente acamada, respondendo as jaculatórias, ciente de que participo dos meus rituais de partida. E que Deus seja misericordioso comigo.

 

Nem sei porque entrei nesse viés agora. E o que foi que ficou tão calada? Josa também nem sabe porque fiquei pensativa. O assunto era outro. De como sem liquidificador,  à falta de luz elétrica, naquele momento, a gente podia ralar um coco à moda antiga, sem destambocar os dedos. Irene, sabia. Pra ela ‘coco só presta ralado no ralo’, mas quis saber se essa palavra existe mesmo. Sei dizer não. Mas, destambocar, quer dizer arrancar pedaço de alguma coisa. Mas isso é um agravante ao Aurélio. E pode inventar palavra e sair dizendo por aí como se ela existisse? Poder, não pode. Mas conheço gente que chama moto de “motra”, e há quem bote  “A” na frente de toda palavra que começa com consoante, gastando vogal à toa.

 

Josa quer que eu conte mais coisas sobre os quarenta e nove dias do Bardo. Quer saber com detalhes sobre o percurso da alma, seu encontro com as deidades boas e más, se é assim que possam ser adjetivadas. Aí vem, Samsara, Nirvana, os Mandalas que contêm círculos, quadrado e triângulos, tudo com representação desses ritos. É coisa profunda. E aí o negócio segue com palavras ainda mais estranhas. Dharma, Kharma... Não sei explicar bem e entrei em uma encruzilhada. Essas coisas germinaram em minha cabeça e estou fadada a carregá-las, pensar nelas, conjecturar, fazê-las crescerem, depois pesá-las em minha balança-de-responder, o que são e por essa razão, o quanto valem. Terei que encontrar um lugar onde elas caibam, em mim,  naturalmente.

Ainda tenho que pensar em muita coisa. Isso é tão difícil... Meu raciocínio é puramente ocidental. Funciona de outro jeito.

 

O que sei é que pensar em nós no Paraíso, após breve estadia no purgatório, até aqui é o modo mais simples e mais leve de vermo-nos sem muitos rodeios, no que eu creio que seja o para sempre céu dos purificados.

 

_ Não é muita pretensão a sua?

_ É Josa, eu acho que é sim, viu?!

 

A conversa está boa, mas vou ter que ir ali.

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Goretti Brandão ESCRITO POR Goretti Brandão Escritora
Maceió - AL

Membro desde Fevereiro de 2012

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