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Juntando os cacos

Quando parei pra pensar naquela história, compreendi que tudo não passava de ilusão. A senhora acha isso mesmo, dona Violeta?  Perguntou Raulina, que entrou pela casa de portas abertas, sem nenhuma cerimônia. Nem sabia do que se tratava, mas daquele modo introduzia-se na palestra, um modo de falar daquele povinho mais antigo, para se referir à conversa. Tudo é palestra.

 

Era bem verdade. Violeta estava sozinha e falara alto. Um costume que tinha, além de outro, pior, de ficar mexendo os lábios enquanto os outros falavam. Aquilo era ansiedade que fazia dela, a quem prestasse atenção, uma sofrível reprodutora muda da fala alheia. Pantomima. Era isso. Sobrava-lhe as repreensões de Aprígio. Sem contar que também dormia com a boca aberta, fosse onde fosse. É assim mesmo. Sou humana ou não sou? Quem quiser que sorria de mim. Ligo não. De jeito nenhum. Violeta usava de sinceridade. A de quem conhecia de si própria a persona, e tendo-a à mão, era consciente da maneira lógica de servir-se dela.

 

Um privilégio que os anos lhe deram. Ora, tinha até graça! Já passara da hora de estar preocupada com o que pudesse aparentar ser. Não abriria mão de sua dignidade, é claro. Tampouco de roupas, acessórios, um bom perfume. Coisas que a fizessem vistosa e bem apessoada. Mas dar conta de dormir como princesa, policiando-se até na vez de seu sono? Besteira.

 

Que peste, e eu pensando que estava só. Disse isso voltando-se para Raulina. Depois tossiu e desconversou, perguntando à outra sobre trivialidades, comentou o preço do pão, o calor infernal e sobre a polêmica dos benjamins da avenida principal da cidade, após a drástica poda que sofreram. Raulina entreteu-se com as perguntas. Um rebuliço tão grande na rua, que o povo tem feito. Cada um que diga uma coisa. E você o que diz? Digo nada não. A senhora acha que os “pés de figo” vão morrer depois disso? Nenhuma resposta.

 

Violeta mergulhara de volta à certeza de que houvera-se iludido de novo. Assumiu fisionomia triste, de quem prestes a chorar baixa a vista e esconde o rosto. Pensava em tanta coisa, tanta conjectura. Um desfile de pensamentos tratados à evidência de um coração cheio de queixas, não é nada bom. É que de uma hora para outra, tudo estava claro demais para ela. Raulina tinha o que fazer. Afastou-se e caminhou pensativa para a lavanderia. Quem a teria desiludido?

 

E Violeta ali mesmo, calada, juntou um por um seus cacos e varreu os pensamentos para fora de casa. Na calçada pode vê-los misturados com o lixo da rua, acumulado no meio-fio. Recolheu apenas um sentimentozinho de nada, insistente, que grudado ao chão, não deu ousadia à vassoura. E era exatamente essa coisinha pegajosa, que apossando-se dela mais uma vez, tornou a crescer. Sentou-se, braços entre as pernas, a cabeça pendida.

 

Raulina voltou, ‘dona Violeta, a senhora sabia que não vi nenhum cágado no quintal?’. Mas eles estão lá. Respondeu, impaciente por ter a sisudez atropelada. O que felizmente foi necessário para que voltasse para si. Ajeitou-se ligeiro, aprumou o espinhaço e ergueu a cabeça, passando as mãos no rosto. O diminuto intervalo entre uma disposição e o seu oposto, estabeleceu um desvio no pensamento dela, e foi por ali que os cágados entraram.

 

Violeta pode então, arrematar a trama daquele dia e cerzindo a ilusão à ideia de que os budistas é que estão certos, disse em voz alta que ‘vão-se os anéis e ficam os dedos e, palmas para os adágios populares’. Sentiu que tinha sido alvo de um laivo da sabedoria e refez-se, satisfeita. Arre lá, que desilusão não mata. Ensina.

 

E meteu-se pelo quintal procurando os cágados. Onde estariam escondidos aqueles danados?.

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Goretti Brandão ESCRITO POR Goretti Brandão Escritora
Maceió - AL

Membro desde Fevereiro de 2012

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