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A Sabedoria Congênita – um caso real.

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Sabe-se que, por volta dos anos quarenta, a maioria dos trabalhadores votava em quem o patrão mandava. Era o famoso “voto de cabresto” que muito revoltava o Hélio, primeiro filho de um homem pacato e cheio de sabedoria chamado Belo Vieira. Um dia, já com seu título de eleitor na mão, Hélio resolveu esbravejar a independência do seu voto. Mais tarde, na ocasião em que o seu chefe orientava-o a votar no candidato da UDN, o defensor voraz de Getúlio Vargas rasgou o papel e afirmou que era no “pai dos pobres” que ele votaria. Foi a primeira vez que Belo Vieira foi à presença do patrão. Sabendo dos critérios de punição que se praticavam ali, e, pensando nos dez filhos que ainda dependiam dele, Belo prometeu que sua família votaria com o patrão, para desgosto de Hélio que, em sinal de protesto, rasgou o seu título de eleitor.

Não obstante a ameaça do usineiro caso o Hélio aprontasse novamente, ele aprontou! E, desta vez, tão grave que pôs toda a sua família em perigo de morte. O fato é que ele pichou o cartaz do Brigadeiro Eduardo Gomes com a frase: “Não voto em corno!”. Em seguida, e desta vez diante de um número maior de pessoas, resolveu rasgar uma foto do candidato da UDN. Chegando a informação nos ouvidos do Senhor de Engenho, decidiu surrá-lo em público para que servisse de exemplo.

Cordélia, que servia à mesa enquanto se discutia os detalhes da operação, de tudo manteve Ari informado, que, por sua vez, contou tudo ao Belo Vieira. Raramente alguém escapava com vida após a execução de igual sentença. Belo, juntamente com o amigo Ari, elabora um plano de fuga para o menino, ficando com amigo de infância, a responsabilidade de preparar dois cavalos da empresa. Em um montou o Hélio e no outro Sérgio e Amaro. O plano era fazer com que o menino chegasse à casa de um amigo em Murici, só não se sabia como fazer sem que os vigias percebessem a movimentação.

Tenho uma ideia, disse Ari. “É melhor seguir pela mata”. Por mais que os garotos temessem entrar numa área tão tenebrosa àquela hora, não havia alternativa. O bosque era o mesmo que Getúlio Vargas mandou vasculhar a procura dos corpos ali enterrados. O caminho os irmãos já conheciam, mas, a escuridão da noite tornava o caminho assustador. Amaro afirma ter sido inevitável as lembranças das histórias que contavam sobre almas de tantos que ali foram enterrados. Diziam que à meia noite elas saíam dos túmulos para atormentar quem invadisse o seu território.

O silêncio da caminhada era tanto que apenas o movimento respiratório dos cavalos se ouvia. Amaro afirmou não ter medo de cobras, raposas nem de cachorros selvagens, mas o que lhe fazia temer e tremer eram as almas dali. O corpo arrepiava até com o barulho das folhas que caíam. No meio de toda a tensão, surge, de repente, uma imagem cor de neve, de aproximadamente dois metros de envergadura, que, rápida como um raio, desceu do céu e subiu, seguido de um grasnado ensurdecedor. Parecia ter vindo só observar os meninos e mostrar que também os acompanhava. O susto fez suas têmporas arder, seguida de uma forte dor na área frontal. Hélio, quebrando o silêncio disse que era uma “rasga mortalha” que costumava fazer voos rasantes para capturar roedores. Essa palavra aliviou um pouco a tensão do garoto, mas ele continuou: “dizem que ela canta para avisar que alguém vai morrer”. Naquele instante, o seu pensamento voltou à cena que estava por vir. Finalmente, saíram da mata e, com mais uma hora de viagem, chegaram à estação onde Hélio embarcaria com destino à cidade onde um amigo daria guarida ao fugitivo.

O relógio da estação marcava duas horas e o primeiro trem só sairia às cinco. Mas, enquanto Amaro pensava que retornaria com o dia claro, Hélio os mandou voltar para que chegassem antes do amanhecer e assim ninguém saberia da utilização dos cavalos. E assim, mais uma vez, Sérgio e Amaro tiveram que enfrentar a escuridão da floresta. Eram cinco horas quando, após libertar os cavalos, os irmãos chegaram. Belo e Olímpia já estavam acordados e, após os irmãos contar a aventura da viagem, ele se afastou um pouco e continuou a conversa com Olímpia em voz baixa. Aquilo parecia uma despedida.

Enfim, era chegada a hora de Belo se dirigir ao trabalho. Todavia, uma cena fez Amaro perceber algo diferente em sua rotina quando o viu esconder uma peixeira sob o casaco. Era a mesma que ele usava para abater os porcos. O instrumento era tão longo que de uma só incisão a partir da junta do pescoço, ele atingia a veia horta e o coração do animal fazendo o sangue jorrar. Será que ele faria o mesmo com o usineiro? Indagava.

Em seguida, lembrei-me de Zequinha, disse Amaro, quando o Ary o matou com uma foice de cortar capim mediante um golpe no abdômen. Dizem que ele ainda deu alguns passos enquanto abraçava em vão, as vísceras que insistiam em se libertar do seu confinamento natural. Após andar alguns metros, ele foi ao chão e ali expirou. Ou seria desta forma que Belo o atacaria? Eram estas as perguntas que Amaro fazia, sem que nenhuma resposta produzisse. Tentando se desvencilhar dos pensamentos catastróficos, lembrou que as principais armas de Belo Vieira sempre foram palavras de sabedoria, passando a imaginar que ele a utilizaria em sua defesa. Mas, se é assim, por que a peixeira estaria ali? Conjecturou o pequeno pensador.

Finalmente Belo se dirige ao pátio do engenho. A comunidade se aglomerava na expectativa da cena em que o Hélio seria espancado e, como de costume, o apontador inicia a chamada dos funcionários. Olímpia, juntamente com seus filhos, presumindo o perigo, não saiu de perto. De repente o apontador pronuncia bem alto: Antônio Viera da Silva! Naquele instante, o usineiro manda parar a chamada e ordena que Belo se aproxime do patamar e, Belo faz ouvido de mercador. Ele já tinha conhecimento da fuga. Insistiu: “suba até aqui!”. Ciente do que o esperava, respondeu: “até aí eu não vou não senhor, mas se o patrão quiser descer conversaremos aqui”. Isso o irritou tanto que o silêncio pairou na comunidade.

Ele desceu e, caminhando bem devagar, na mão direita segurava um porrete, enquanto batia pausadamente na esquerda. Belo era um homem de estatura que se sobressaía aos demais, mas o usineiro era um palmo maior. Com onze anos de idade, Amaro não tinha ideia do que faria, mas não saiu de perto, instante em que memorizou alguns detalhes da cena. Ele usava uma calça de linho S120 com vincos bem definidos, sinto localizado à linha da cicatriz umbilical e camisa de cambraia da cor de gema de ovo, tudo muito bem engomada. Pele roseada e cabelos lisos penteado transversalmente, dada à agitação, uma mecha caía sobre sua testa. E assim ele veio se aproximando onde a família se encontrava - todos bem juntinhos, à semelhança de pequenos peixes que se juntam para parecer grande frente ao predador.

Agora, com o rosto há um palmo do nariz de Belo Vieira, continuou brajevando. Segundo Amaro, naquele instante, foi possível visualizar a sua dentição protuberante e desalinhada, com gotas de saliva lançadas no ar. Sérgio, por sua vez, disse que havia também uma corrente de ouro presa a uma das arreatas, que descia fazendo uma curva à linha da virilha e subia ao bolso da algibeira onde se escondia um relógio de ouro marca ômega. Rosto alongo e bigode prateado, seus sapatos pretos marca “scatamacchia” estavam empoeirados por ter sido obrigado a pisar no chão de terra seca. Repetiu a pergunta: “onde está seu filho?”. Belo nada respondeu.

Enquanto todos atentavam no semblante do Senhor de engenho, disse Sérgio, eu não perdia de vista a fisionomia de meu pai, ao tempo em que vinha à memória uma coisa que ele me ensinou: “Nunca demonstre medo ao seu adversário”. “O medo faz o inimigo crescer e pensar que já venceu; a ausência torna-se provável o seu desandar.” Apesar do perigo, percebi que era isso que Belo Vieira colocava em prática.

As pessoas pareciam perplexas e, em silêncio focavam na direção da cena, embora o momento de maior tensão ainda estava para acontecer. Bem na hora em que o patrão faz o movimento típico do primeiro golpe, Olímpia, sem perder a fração de segundo que tinha para agir, o interceptou falando com firmeza: “não levante a mão contra meu esposo, senão a desgraça vai ser grande”. Surpreso, ele retrocedeu um passo, mas respondeu embravecido: “Vocês estão me ameaçando?”, pelo que, Belo respondeu com um tom que parecia calmo: “Não. Mas se o Senhor me bater, a desgraça vai ser feia”. A resposta o fez suspender o desastre.

Naquele dia Belo Vieira não trabalhou. A família retornou para casa, que se encheu de pessoas para prestar solidariedade e, de tantas opiniões ali proferidas, uma encheu novamente de medo o coração dos meninos: Seu Torquato - o barbeiro. Um homem de baixa estatura, testa larga, barriga saliente que sobre tudo tinha opinião formada. Sob o pretexto de nos dar apoio moral, disse: Ele só recuou porque a reação de vocês o fez imaginar que não teria o total controle da situação. Mas agora que já teve tempo de estudar o cenário, é provável que mande os seus homens até aqui e fazer o que planejou”. Amaro, que já não conseguiu dormir na noite anterior devido à viagem pela mata, não foi possível conciliar o sono outra vez. Passou a noite pensando que a qualquer momento chegaria um grupo de homens armados e os arrastariam para fora e ali operacionalizaria a matança.

Seu Torquato era homem feio, portador de uma excelente retórica e tinha uma esposa bonita, porém, assanhada. Ele sabia tudo que se passava na região e conhecia até as rotinas das pessoas que moravam lá, ignorava somente as insinuações da esposa frente aos rapazes solteiros do povoado. Ela costumava usar um tipo de vestido de alças da grossura de um cordão de embrulho que, ajustado ao corpo, revelava a forma exata das suas ondulações. Portadora de pernas visíveis e apreciáveis, sua presença em nada alegrava as mulheres casadas do povoado. Mas o seu Torquato a tinha como mulher virtuosa – ele era o único que pensava assim.

No dia seguinte, Belo procurou o patrão para uma conversa em particular, e, mediante suas considerações e pedido de desculpas, foi-lhe concedido o perdão e permissão para que continuasse na empresa. Algo se fazia presumir que seria com palavras de sabedoria que ele pacificaria aquele conflito. Suas palavras eram suaves, porém firmes e determinadas. Jamais levantou a voz para alguém, contudo, quando falava era pouco provável que alguém ousasse questionar. Era como dizia o rei Salomão, conforme o capítulo 15 do livro de Provérbios: “A resposta branda desvia o furor, mas a palavra dura suscita ira”. Belo Vieira nunca leu a Bíblia, mas esta lição ele aprendeu.

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Edson de Carvalho Silva ESCRITO POR Edson de Carvalho Silva Escritor
Maceió - AL

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