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O PERSONAGEM SEM-PERNAS DO ROMANCE CAPITÃES DA AREIA, DE JORGE AMADO: REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA

O PERSONAGEM SEM-PERNAS DO ROMANCE CAPITÃES DA AREIA, DE JORGE AMADO: REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA

RESUMO

O presente trabalho busca apresentar as diversas concepções de personagem dentro da ficção literária, tendo como foco o personagem Sem-Pernas da obra Capitães da Areia de Jorge Amado, que representa dentro de uma tradição formal realista o descaso social de crianças e adolescentes e seus pensamentos ingênuos por meio de suas reflexões e pela voz do narrador.
PALAVRAS-CHAVES: personagem- representação- reflexão- sociedade

ABSTRACT

This paper seeks to present the various conceptions of character within the literary fiction. Having focused on the character without-Legs of the Capitães da Areia de Jorge Amado, denouncing realistically the social neglect of children and adolescents and their naive thoughts through his reflections and the voice of the Narrator.
Keywords: character- complaint- reflection
INTRODUÇÃO

O presente estudo visa analisar o personagem Sem-Pernas do romance Capitães da Areia, do consagrado escritor baiano Jorge Amado, obra que constitui uma fonte inesgotável para uma análise literária. Este trabalho abordará a personagem citada e o espaço da narrativa onde ela atua como instrumentos de representação da sociedade brasileira e de sua assimetria, que coloca classes sociais diferentes em contato.
É por meio desse estudo que queremos provar que o autor, através da composição do narrador, se utiliza da personagem para fazer com que o leitor se sensibilize e reflita sobre delicadas questões sociais que envolvem toda sociedade brasileira e em particular a sociedade baiana, nordestina. Buscaremos comprovar também que o narrador busca envolver a consciência social do leitor por meio das falas e das ações das personagens da obra analisada e em especial da personagem Sem-Pernas. É como se o projeto de autoria, configurado no trajeto do personagem, representasse grandes e agudas questões sociais do país.
Este estudo, além da análise mencionada, irá fazer uma breve apresentação biográfica do autor do romance aqui citado e uma breve apreciação dos estudos teórico-críticos sobre a personagem. A escolha por estudar este autor e obra foi feita em virtude do centenário do escritor baiano, Jorge Amado, e da importância da sua vasta produção para leitores atentos a fundamentais obras representativas da vida social brasileira.
A análise de um romance social permite-nos observar, através da linguagem literária, a representação de uma sociedade sob a visão crítica da percepção artística. Assim, no romance estudado, vemos a sociedade representada pela ótica e formalização literária de um determinado autor, Amado. Daí a importância de um estudo mais aprofundado sobre aspectos da estrutura da obra em questão, já que uma narrativa literária é uma fonte inesgotável de estudos não só da arte em si, mas do conjunto da trajetória humana, histórica, dos indivíduos.
Nossas análises serão feitas à luz de estudos sobre literatura, cultura e sociedade, teoria literária e literatura de ficção, bem como estudos feitos sobe a personagem de ficção, utilizando como base teórica as produções dos estudiosos: Antonio Candido (1676); Beth Brait (1985); bem de como outros grandes nomes da crítica literária.
1. JORGE AMADO - A SAGA DE UM ESCRITOR

Amante de sua cultura, produto inegável de sua gente, Jorge Amado refletiu sobre o país e representou em suas produções literárias a cultura e a realidade brasileira com ênfase na cultura baiana, seus costumes e crenças. O autor percebeu as particularidades da cultura baiana, lugar diferenciado do restante do país e, até mesmo, do próprio nordeste. Na Bahia, a cultura popular é viva e atuante, embora censurada pela elite da época de seus primeiros romances como Tenda dos Milagres (1964). Como esclarece Amado: “na Bahia, a cultura popular está presente mesmo na obra mais refinadamente intelectual.”(1986,p.15)
Para ele, a Bahia sempre foi um lugar de inspiração para criação de romances e personagens inesquecíveis, além de celeiro para produzir todo tipo de arte para os mais refinados gostos. Logo, não basta trazê-la na arte literária, contudo trazer em si, em seu espírito e vivência, ou seja, vivenciá-la de forma permanente e livre, como afirma Amado em uma entrevista concedida à Literatura Comentada (1981): “eu comecei a viver a vida do povo da Bahia. [...] Como eu dizia, em 27 comecei a trabalhar em jornal e a viver misturado com o povo da Bahia”.
Assim, de forma inovadora e permeada pela cultura das classes populares, produziu vários romances que se eternizaram na cultura e no imaginário do povo brasileiro, levando para a ficção as mazelas sociais e comportamentos condenados pela formalidade social. O que resultou em obras vetadas, rotuladas de subversivas pelo sistema politico da época, que ecoaram por alguns anos no senso-comum nacional.
Homem á frente de seu tempo, soube através de romances difundir a cultural local e nacional para além das fronteiras brasileiras, o que resultou em inúmeras traduções para diversos idiomas, pois suas obras foram traduzidas para mais de quarenta idiomas diferentes; também através delas influenciou outras culturas e comportamentos.
Engajado politicamente, eleito deputado federal, foi autor de inúmeras leis que foram incorporadas na constituição nacional, entre elas, a da liberdade religiosa no Brasil, que tinha a religião católica como a única reconhecida pelas autoridades.
É perceptível que toda sua trajetória foi realizada sob o ato de escrever, para as mais diversas finalidades (informar, entreter, persuadir, instituir regras, etc.). Assim, muito precoce, já iniciara seu gosto por essa prática. Na sua infância recebia inúmeros elogios pela qualidade de seus textos. Amado também coordenara um jornalzinho que distribuíra para vizinhos e amigos. Essas atividades despertaram no menino o gosto pelas letras e criaram o grande escritor que construiu seu legado na história e na literatura universal. Tornou-se imortal no imaginário popular, como também nas academias, sendo suas obras fontes inesgotáveis de pesquisa pela qualidade literária que possuem. É graças a sua ousadia que podemos conhecer em suas obras a representação de situações que não eram consideradas adequadas para a criação literária na época.
Sendo o trabalho de escritor não um fardo pesado, mas diversão, a paixão pelo seu ofício foi que contribuiu para o êxito de suas criações. Escrever, para ele, era algo que vinha de dentro do mais profundo ser, que não poderia evitar, estava intrínseco ao sentido de sua existência. Não que o ofício de escrever exigisse demais do escritor levando-o assim à exaustão, mas a vocação e a habilidade o faziam criar artifícios para tornar esta atividade prazerosa.
Amado não criou apenas inúmeros personagens, mas se fez uma espécie de personagem, pois a consagração de um romancista popular ocorre quando ele de autor se converte parcialmente em personagem do universo intelectual brasileiro e internacional. Assim, aparecerá como tema de cordel e se tornará figura reconhecível em gravuras e desenhos. Também suas personagens são reconhecidas mesmo quando não se lê integralmente a obra. Suas produções tiveram sempre um consumo crescente em livros e adaptações para cinema, teatro, minisséries e novelas.
Do reconhecimento e da importância de sua obra foram inúmeros prêmios nacionais e internacionais (Prêmio Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras1936; o Prêmio Internacional Stalin, Moscou1950; Internacional de Literatura na Itália,1976), o que comprova sua competência como escritor e sua grandiosidade na arte literária ,fato que ultrapassa fronteiras.

1.1 . História e Fatos de uma Vida

Em 10 de agosto de 1912 na fazenda Auricídia, distrito do município de Itabuna, veio ao mundo Jorge Amado de Faria. Com dez meses vê seu pai ser ferido numa tocaia dentro de sua própria fazenda. No ano seguinte uma epidemia de varíola obriga sua família a deixar a fazenda e se estabelecer em Ilhéus.
Alfabetizado aos seis anos por sua mãe, passa a frequentar a escola de D. Guilhermina, que tinha uma pedagogia baseada na palmatória e em outros castigos da tradição pedagógica da época.
Cria um jornalzinho “A luneta” (1922) e distribui para os vizinhos e parentes. Essa criação já assinalava o surgimento do grande escritor. No mesmo ano vai estudar em Salvador no colégio dos padres jesuítas, o Antônio Vieira. A redação que fizera na entrada na escola tinha como tema “o mar”; apresentada ao padre Luiz Gonzaga, rende-lhe bastante elogio e o padre professor passa a lhe emprestar livros de autores portugueses. Como afirma Amado²: “Padre Cabral me fez penetrar no universo literário. E eu fui em frente”. Dois anos depois, ao voltar das férias, foge para Sergipe, por ser rebelde ao excesso de disciplina do internato.
Ingressou no ano de 1927 em grupo de jovens intelectuais baianos, fundando a Academia dos Rebeldes, que disputa com outro grupo o título de movimento modernista local. Em 1930 entra para Faculdade Nacional de Direito. Ao concluir o curso em 1935 não segue a carreira, jamais tendo ido buscar o diploma.
Militante da politica de esquerda, é levado à prisão com outros intelectuais da época. Libertado, volta para terra de seu pai, Estância, em Sergipe.
Em 1937 a política brasileira passa por suaves mudanças e se inicia a campanha eleitoral para a presidência da Republica; isso lhe permite viajar a alguns países da América.
Com o agravamento da situação política é exilado por dois anos em Portugal e na Argentina. Em 1943 ocorre a nova viragem política com a entrada do E.U.A. na II guerra mundial. O exilado resolve retornar ao Brasil, participando de grandes campanhas populares. É preso em Porto Alegre e recambiado para o Rio. Por não ter condenação anterior é libertado.
No ano seguinte (1944), volta a Salvador e retoma suas atividades jornalísticas. Organiza a I Exposição de Arte Moderna em Salvador, na Biblioteca Pública.
Em 1945, preside a Delegação Baiana ao I Congresso Brasileiro de Escritores, evento cuja declaração final exige a legalidade democrática. Candidato a deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e eleito para a assembleia nacional, toma posse em 1946 e tem seu mandato cassado em1974. E lhe é imposto novo exílio, na Europa. Passa os dois primeiros anos na França e atua politicamente em conjunto com outros intelectuais de vários países. No ano seguinte é expulso da França juntamente com outros exilados. Passa a viver na Tchecoslováquia.
Em 1949, pelo conjunto de sua obra e por sua atuação nos organismos mundiais de defesa da paz entre os povos, recebe o prêmio internacional Stálin. Em 1952 abandona a militância politica e afirmou: “voltei à minha sina de escritor, depois de anos cuidando da política. Sou político apenas como escritor”.
Eleito para Academia Brasileira de Letras em 1961, ocupa a cadeira 23, de quem é patrono José de Alencar e fundador Machado de Assis; muda-se para Salvador. Passa seis meses na Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos, ministrando cursos sobre suas obras, na condição de autor convidado, 1917. Recebe o premio Internacional de Literatura na Itália, em 1976.
Quatros anos depois, foi eleito para academia de Letras da Bahia. A escola de samba Império Serrano, do Rio de Janeiro, apresenta o enredo "Jorge Amado - Axé, Brasil", em 1989.
Em maio de 1996, o escritor sofre em Paris um edema pulmonar. Depois de dez dias de internação, recebe alta e viaja para Salvador, onde em julho comemora com os amigos os 80 anos de Zélia. Estreia "Tieta do Agreste", filme de Cacá Diegues, que também assina o roteiro, ao lado de João Ubaldo Ribeiro e Antonio Calmon. No papel­título, Sônia Braga.
Em maio de 1999, é hospitalizado para fazer exames de rotina e tratar de um mal-estar digestivo. Em junho, a Fundação Casa de Jorge Amado lança o livro "Rua Alagoinhas 33, Rio Vermelho", sobre a casa em que o autor vivia e sobre seu cotidiano.
Cada vez mais recluso, face à seus problemas de saúde, comemora em agosto de 2000, com poucos amigos e a família, seus 88 anos. Vivia deprimido por se encontrar quase sem enxergar, sob dieta rigorosa, privando-se do que muito gostava: de escrever, de ler um bom livro e de um bom prato.
No dia 21 de junho de 2001, Jorge Amado é internado com uma crise de hiperglicemia e tem uma fibrilação cardíaca. Após alguns dias, retorna à sua casa, porém, em 06 de agosto volta a se sentir mal e falece na cidade de Salvador às 19,30 horas. A seu pedido, seu corpo foi cremado e suas cinzas foram espalhadas em torno de uma mangueira em sua residência no Rio Vermelho.

1.2. Produções Literárias: “Escrever É, Para Mim, O Mesmo Que Viver”

Autor de uma vasta produção no campo não só literário, mas também jornalístico, pois já na adolescência criou jornalzinho informativo que distribuía para vizinhos e parentes, Jorge Amado fez de suas produções um paralelo de suas experiências de vida na amada Bahia, bem como fora dela. Sua estreia como escritor foi na revista “A luva”, com poema de feições modernistas. Com aproximadamente quinze anos, faz parte do grupo literário Academia dos rebeldes.
Utilizou de maneira genial a arte da escrita e suas finalidades em diversos momentos para expressar seus ideais mais profundos. Inúmeras vezes a usou como bandeira de luta. Assim, representou as várias mazelas e incomodou a classe dominante. Ousadamente trouxe às páginas de seus livros temas como: a lei do mais forte em Cacau (1933); a exploração do povo em Suor (1934), a vulnerabilidade social de crianças e adolescentes em Capitães da Areia (1937); a posse violenta da terra em A Morte e a Morte de Quincas Berro DÁgua, entre outros. Muitas vezes pagou um preço alto por essas produções, taxadas de subversivas e incineradas, vendidas às escondidas, como a obra Os subterrâneos da liberdade (1954), como uma tentativa de calar suas críticas marcadas pela linguagem próxima do registro oral popular de parcela de uma sociedade dividida por classes, pois “ os governantes suspeitam da literatura porque é uma força que lhe escapa”³ Emile Zola(1840-1902).
Dessa maneira, os governantes buscaram atingir o escritor, porém jamais poderiam atingir suas obras, sendo estas forças que não eram capazes de dominar, pois elas constituem dom dos intelectuais escritores que, quando lançadas, causam danos maiores que uma bomba, já que seus efeitos podem transgredir gerações. Candido (1976, p.45) afirma:
a grandeza de uma literatura, ou de uma obra, depende de sua relativa atemporalidade e universalidade, e estas dependem por sua vez da função total que é capaz de exercer, desligando-se de fatores que dependem a um momento determinado lugar.

É por possuir um caráter social e universal que essas obras permanecem úteis até hoje, pois sua produção possui função definida, ou seja, representa as mazelas sociais, ocultadas pela elite dominante. Assim, a universalidade das mesmas é garantida porque os temas tratados não expiram com o tempo, por expressar uma rica e interessante complexidade de reflexões da sociedade e a maneira como nos relacionamos. Dessa forma, embora, a Bahia seja seu cenário predileto, os assuntos abordados podem desligar-se dos fatores de um determinado tempo histórico. Como a obra Capitães da Areia, objeto desta pesquisa, que aborda uma temática bastante atual combatida pelos conselhos tutelares à luz do estatuto da criança e do adolescente (Eca): a situação dos menores infratores, que pela sua relevância até hoje gera discussão através da redução da maior idade penal no congresso.
Também divulgou e apresentou de maneira “sinequanon” a cultura de um povo através de suas obras: País do Carnaval, 1931; Jubiabá, 1931; Gabriela, cravo e canela, 1958; entre outros. Assim, de forma própria, conseguiu a apresentar para o mundo, e seduziu leitores que futuramente tornaram-se amantes deste lugar, usando assim, uma das principais funções da literatura que é a fruição para envolver o leitor na obra.
Teve como adaptações de suas obras para o cinema e televisão seus personagens femininos: Gabriela cravo e canela: crônicas de uma cidade do interior; Dona Flor e seus dois maridos: esotérica e comovente estória vivida por Dona Flor, emérita professora de culinária e seus dois maridos - um, Vadinho, de apelido, o segundo, Teodoro Madureira, o farmacêutico constitui-se a espantosa batalha entre o espirito e a matéria; Tieta do agreste: pastora de cabras; Teresa Batista Cansada de Guerra. Permanecem até hoje vivas no imaginário popular, o que revela uma competência em criar suas criaturas que eram inúmeras, pois, para ele, elas são que fazem o romance.
Podemos observar que as narrativas são as paixões de Jorge Amado que, embora, não tendo produzido poemas em grande escala como os romances, preferiu levar a poética a suas narrativas.
Outra característica de suas obras são os personagens masculinos e malandros que povoam suas fábulas, embora não na proporção das femininas, mas que também estão presentes no imaginário popular.
Nesta breve análise podemos observar que o que fez e faz de Jorge Amado um dos maiores escritores do seu tempo, bem como na atualidade, é sua paixão pela literatura e sua habilidade em criar personagens que facilmente penetram no imaginário popular; utilizando uma linguagem que valoriza a língua falada e trazendo matéria da vida real, o que dá mais veracidade à obra, estes fatores o tornaram sucesso de público. Embora a crítica o veja com restrições, ele optou por um projeto de autoria com engajamento social, bandeira de luta, mesmo sob a repressão. Obra e atuação política em Amado têm uma profunda relação.

1.3. CAPITÃES DA AREIA: crítica e representação do descaso social com adolescentes

O romance narra o dia- a- dia de um grupo de meninos de rua que se abrigam no trapiche na cidade de Salvador. Estes garotos são conhecidos por “capitães da areia”, nome que também é o titulo da obra, que remete à falta da moradia, pois os mesmos moram na beira da praia e estão entregues a própria sorte. Estes adolescentes roubam e têm atitudes de violência; tais atitudes contribuem com a visão preconceituosa daquela sociedade em relação a eles. Todavia, a obra apresenta aspirações e os sonhos desses meninos, que apesar da situação abrupta são resilientes em busca dos seus objetivos.
Este romance é narrado em terceira pessoa por um narrador onisciente, o que possibilita mostrar o outro lado dos capitães da areia. O narrador é parcial e cúmplice, por se identificar com os heróis da história focando em seus sonhos e suas aspirações como a qualquer criança. Seus comentários são sempre favoráveis aos capitães da areia.
Iniciado com a reportagem fictícia com o título “crianças ladronas” que colabora com a verossimilhança da obra dando um caráter mais dinâmico e verdadeiro, revela uma situação presente na sociedade. Após a introdução, é apresentada uma sequência de cartas de leitores que representam as diversas ideologias presentes naquela comunidade, como a do chefe de polícia que atribui ao juiz os atos dos capitães da areia; e a do juiz que afirma que é papel do chefe da polícia perseguir os meninos.
Já a carta da mãe, cujo filho fora internado no reformatório, conta os horrores sofridos por ele. A do padre José Pedro confirma os maus-tratos sofridos pelos adolescentes e a última é a do diretor do reformatório, negando os maus-tratos sofridos pelos meninos.
Esta produção, além de contribuir para o caráter verossímil do romance, busca revelar que a mídia atende aos interesses das classes mais ricas e é tendenciosa: os fatos publicados, muitas vezes são permeados de ideias não verídicas, como no caso do diretor do reformatório que no decorrer da obra revela-se hipócrita, pois era favorável aos tratamentos dado aos meninos “delinquentes”. Dessa forma, a obra acentua o descaso da sociedade em relação aos meninos abandonados.
O enredo da obra caracteriza os personagens de acordo com sua personalidade, ou seja, suas ambições e frustrações. Pedro Bala, órfão de pai e mãe e foi morar na rua desde os 5 anos de idade, na obra já está com 15 anos; sua maior característica é reflexão antes de tomar suas decisões. “Pedro Bala mais ativo, sabia planejar os trabalhos, sabia tratar com os outros, trazia nos olhos e na voz a autoridade do chefe” (AMADO, 2007, p.21). O personagem é líder dos capitães da areia e, como seu pai que morrera com uma bala em uma greve, ele se torna o braço forte do grupo. Representa a ousadia da luta do proletariado.
João Grande, como o nome já diz, tem alta estatura, engajou-se nos capitães da areia com nove anos, e há quatro faz parte do grupo. Torna-se um dos chefes, mas não era por sua inteligência, pois o ato de pensar lhe doía a cabeça (id.. 2007, p.22). Protetor do grupo na obra, é a expressão da bondade e da força, o que vem a compensar sua pouca inteligência.
Querido de Deus é o “mais célebre capoeirista da cidade” (Ibid. 2007, p.23). Era crente em Xangô, Omulu deus dos negros e também nos santos dos brancos, o que simboliza o sincretismo religioso presente na obra, que representou uma posição do projeto de Jorge :a luta pela liberdade religiosa. Na Bahia de todos os santos, a tradição judaico-cristã, dominante, discriminava a cultura afro-brasileira e seu sagrado.
Professor, João José, é o mais intelectual do grupo, respeitado por criar os melhores planos de roubos,pois “desde o dia que furtara um livro de história numa estante de uma casa da Barra, se tornara perito neste furto (Ibid. p.24)”. Empilhava-os em uma estante e lia todos como uma ânsia de febre. Ele representa a exceção dentro do grupo, um menino pobre, que estuda e se torna um pintor de renome rompendo certo determinismo social presente na obra.
Sem Pernas “era o espião do grupo, ele sabia se meter na casa de uma família uma semana, passando por um bom menino perdido dos pais na imensidão da cidade. Coxo, defeito que valera-lhe o apelido”(Ibid,p.:26). Objeto de nossa pesquisa, o personagem é dotado de ódio e representa a figura traumatizada da criança que sofre maus tratos e torna-se resistente a qualquer tipo de aproximação.
Pirulito, “era magro e alto, tinha uma cara seca, meio amarelada e pouco risonha” (2007:28). Tinha várias imagens e rezava todos os dias. Tinha o sonho de estudar para ser padre. Este representa a bondade do grupo, pois desejava ser bom e era temente a Deus, esperando a justiça celeste.
Gato, “o elegante do grupo” (Ibid., p.32). Tinha 13 anos quando veio para grupo, sendo dono de um baralho marcado com o qual aplicava golpes. Matinha relações sexuais com uma mulher de 35 anos. Representa o tipo ideal de vigarista: bonito, bom e bem-vestido, inteligente e simpático. E conseguia manter amorosas sem estuprar as negrinhas do areal.
Boa vida, “mulato troncudo e feio”( Ibid., p.:32). Não gostava de se preocupar, às vezes cometia algum furto e entregava a Pedro Bala. Gostava de ficar deitado na areia olhando os navios. Representa o tipo ideal de malandro brasileiro. Não contava com nenhum prestigio dentro do grupo, mas era amigo de todos.
Dora, atraente por sua beleza, com seus quase 14 anos era “uma mulherzinha’’ muito séria. Única presença feminina da obra que fica próxima aos capitães da areia. Representa o carinho e o afeto dos quais os meninos eram extremamente carentes, sendo “mãe”, irmã e amiga dos adolescentes, desperta neles a emoção e a receptividade.
Em seguida a narrativa vai contando as aventuras destes personagens e suas perdas e avanços em relação ao crescimento pessoal, pois o autor opta por mostrar que os meninos têm recuperação e às vezes necessitam de um apoio para desenvolver suas vocações, como é o caso do personagem Pirulito, que ao ser levado para o seminário pelo padre José Pedro torna-se frade e passa a ensinar o catecismo às crianças pobres.
Também o personagem Professor que, graças ao seu talento, vê um homem se interessar por seus desenhos, vai estudar artes e torna-se um pintor renomado. Assim, Jorge Amado, busca romper com a visão vigente na sociedade baiana de que é necessário maltratar de forma desumana para educar os adolescentes em situação de risco. O autor as mostra apenas como crianças socialmente desamparadas.
Embora de maneira imersa em certa tradição realista do romance de 30, o autor mostra que há também aqueles que permanecem na marginalidade como o personagem Volta-Seca, que era afilhado de Lampião, e se torna um dos bandidos mais temidos do bando, tem o prazer de torturar os soldados antes de matá-los. E o personagem Gato que se torna um dos maiores vigarista da Bahia.
O autor acredita que a mudança deste destino é possível e que pode haver vários caminhos para isto; tal posição se revela através dos personagens que no inicio da narrativa são apresentados com comportamentos hostis; ao longo da narrativa, tornam-se esperançosos como o personagem Pirulito, que tinha sido o mais agressivo do grupo e se torna frade, acreditando que a mudança virá do amor, pela bondade que está presente nos corações dos homens.
Já, o personagem Sem-Pernas burla os demais meninos moradores do trapiche, exceto Pedro-Bala. Aquele, dotado de um ódio permanente decorrente de seus dramas, acredita que somente o ódio pode mudar a sociedade. O líder dos capitães da areia acredita que “nem o ódio, nem a bondade. Só a luta” (2007, p.255) era capaz de mudar os destinos daqueles meninos abandonados.
Sendo produto do meio em que viviam, os meninos, que apesar da pouca idade tinham comportamento de homens, com atitudes adultas, já que a “escola da rua” obriga à maturidade logo cedo para garantir a sobrevivência. Ou seja, apesar de se comportarem como adultos, isso não altera o fato de que são apenas crianças com necessidades características dessa fase da vida, que é uma das mais belas, e responsável pela construção de nossas forças e traumas. No capitulo “As luzes do carrossel” podemos observar que estes meninos são capazes de si emocionar.
Neste momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora tinham o carinho e conforto da música. Volta Seca não pensava com certeza em Lampião neste momento. Pedro Bala não pensava em ser um dia o chefe de todos os malandros da cidade. O Sem – Pernas em se jogar no mar, onde os sonhos são todos belos. Porque a música saía do velho carrossel só para eles e para o operário que parara. E era uma valsa velha e triste, já esquecida por todos os homens da cidade (AMADO, 2007, p.55)

Arte poderosa em tocar os sentimentos, a música sensibiliza estes meninos e os faz sonhar. Eles se emocionam ao ouvir uma valsa antiga de carrossel. Os sentimentos infantis e suas carências permeiam toda narrativa onde a ausência materna aumenta ainda mais a necessidade afetiva. Isso se concretiza com a chegada da personagem Dora, que no início é vista como mulher, e todos a desejam. Com o decorrer do tempo, ela passa a ser vista como mão amiga, representação de ternura. A presença feminina vem expor de forma clara toda falta de afeto bem como a falta de assistência que sofreram a vida toda. Como podemos observar abaixo:):
[...] porque o que faz a crianças é o ambiente de casa, pai, mãe, nenhuma responsabilidade. Nunca tiveram pai e mãe na vida da rua. E tiveram sempre de cuidar de si mesmos, foram sempre os responsáveis por si. Tinham sido sempre iguais a homens.( AMADO, 2007:244)

O narrador relata a falta de um lar, e consequente necessidade da figura materna e paterna que contribuísse para formação de caráter, pois também se educa por exemplos. Assim toda criança deveria ter como referencial da moral e da ética os próprios pais. Mas àqueles faltava base. Ele ainda salienta a importância do lazer nessa faixa etária e a liberdade para vivenciá-la.
A partir dessa situação apresentada na obra, o autor propõe uma mudança de atitude da sociedade marginalizadora que forma as diferenças sociais alimentando um sistema excludente.
Na obra, a reflexão realizada pelo personagem Pedro Bala (2007, p.97) em relação ao que padre José Pedro dizia, prometendo que os pobres iriam para o céu, onde Deus trata todos iguais, a razão do jovem acreditava que não havia justiça nisto. Mas, que mesmo lá “a balança sempre pende para um lado”. Assim, o autor denuncia as diferenças sociais presente na sociedade brasileira.
Portanto, por tratar de uma temática tão relevante é que até hoje se torna fascinante adentrar a obra Capitães da areia, pois, o narrador nos faz apaixonarmo-nos por cada personagem mostrando o oposto da visão dominante em relação a eles: que os mesmos não estavam condicionados aos seus destinos, mas que estes tinham sonhos, ambições. E necessitavam ser inseridos na sociedade para se tornarem cidadãos de direitos.
Conhecido pela perífrase: “Literatura das Cinzas”, a obra publicada em 1937 foi palco de inúmeras polêmicas. Apesar de ser, hoje, uns dos livros mais apreciados de Jorge Amado, sua primeira edição foi considerada pelas autoridades da ditadura uma forma de expandir o ideal marxista e foram incinerados na frente da escola de Marinheiros 808 (oitocentos e oito) exemplares desta edição na cidade de Salvador, Estado da Bahia, página, três, em 17 de dezembro de 1937:
Foram incinerados vários livros considerados propagandistas do credo vermelho. aos 19 dias do mês de novembro do ano 1937, em frente à Escola de Aprendizes Marinheiro, nesta cidade de Salvador e em presença dos senhores membros da comissão de busca e apreensões de livros, nomeada por oficio número seis, da então Comissão Executora do Estado da Guerra composta dos senhores [...], foram incinerados por determinação verbal do Sr.[...] comandante da sexta região militar, os livros apreendidos e julgados como simpatizante do credo comunista, a saber: 808 exemplares de Capitães da Areia[...].

Alegando que o livro fazia propaganda do comunismo, esses livros foram incinerados e julgados de tal forma. O que instituiu um estigma sobre não só esta obra, mas também em outras produções de Amado, como subversivas, literatura de “palavrões”, por trazer em suas produções a linguagem do nordestino de baixo estrato social, de forma quase documental. Além de denunciar as práticas sociais em relação a crianças e adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade, mostrando que estes não são vilões e sim meras vítimas do descaso social.
Assim, este ato demonstra a força da obra capitães da areia, que ressurge das cinzas e permanece até hoje a representar uma sociedade que exclui e abandona suas crianças deixando-as à margem da sociedade tornando-as marginalizadas e consequentemente carentes de afeto, de um lar. Como descreve o autor, através da voz do narrador:
(...) crianças abandonadas que viviam do furto. Nunca ninguém soube o número exato de meninos que assim viviam. Eram bem uns cem e deste mais de quarenta dormiam nas ruinas do velho trapiche. Vestidos de farrapos, sujos semi-esfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, e, eram, em verdade, donos da cidade, que a conheciam totalmente, os que totalmente, os que totalmente a amavam, os poetas (AMADO, 2007, p. 21).

Nesta década em que a obra foi publicada, foi revelada a visão da sociedade baiana que considerava as crianças carentes marginais, que deveriam ser presas, molestadas para serem reeducadas.
Tornar protagonistas crianças que fugiam os padrões burgueses, mostra a audácia de Amado em romper com academicismo literário, o que fez da obra uma bandeira de luta contra a discriminação de jovens e adolescentes marginalizados pelo sistema opressor e a crítica a um estado excludente que não dá assistência necessária, mas quer através da força manter a ordem social.




2. O PERSONAGEM DE FICÇÃO: CONCEITO E ORIGEM

Ser de existência comprovada, apesar de surgir da imaginação humana, tendo como base o real, o histórico e atuar na materialidade textual, o personagem de ficção constitui um dos elementos mais importante da narrativa de ficção, pois é em torno deste que a ação e o enredo se desenvolvem.
Considerado por alguns críticos literários “edifícios de palavra”, para analisar esse ser de ficção é necessário adentrar na construção do texto para descobrir a maneira como o autor criou sua criatura dando-lhe vida própria sob as palavras. Sendo o personagem inerente à formulação ficcional, ao espaço narrativo em que habita, ele é diferente da matéria e do espaço real do ser humano, apesar de as duas realidades se relacionarem.
Com as mudanças históricas, filosóficas, sociológicas, houve também alteração sobre a compreensão do que é o personagem de ficção, sendo esta modificada através dos tempos, já que o mesmo é produto da ficção literária que tem uma estreita relação com a sociedade, pois a produção literária é social, logo, é destinada a um público, condicionado no determinado tempo, tendo gosto e preferências característicos de uma época. Pois o ser humano é um ser histórico. A concepção de personagem na idade média era compreendida como fonte de aprimoramento moral, ou seja, representava o modelo humano moralizante, servindo aos ideais cristãos. Nos séculos XVIII e XIX, a concepção de personagem foi herdada de Aristóteles e Horácio entra em declínio sendo substituída por uma visão psicologizante que entende personagem como uma representação do universo psicológico de seu criador, como afirma Brait (1985, p.37):
Essa mudança de perspectiva se dá a partir de uma série de circunstância que cercam o final do século XIII e praticamente todo século XIX. É nesse momento que o sistema de valores da clássica começa a declinar, perdendo sua homogeneidade é sua rigidez. É também nesse que romance se desenvolve e se modifica, coincidindo com afirmação de um novo publico burguês- caracterizado entre outras coisas por um gosto artístico particular.

A criação do personagem se transforma através do tempo e nos séculos XVIII e XIX. Atitude psicológica que vai caracterizar esta criação submetida às transformações do tempo histórico e tendo no público alvo sua base para criação. É nesses séculos que o romance se entrega às paixões e sentimentos humanos, à crítica social e às intenções filosóficas. No século XIX, os seres fictícios não são mais vistos como imitação do mundo externo, mas como projeção da maneira de ser ao escritor. Brait afirma (1895, p.38) “é por meio do estudo dessas criaturas produzidos por seres privilegiados que é possível detectar algumas particularidades do ser humano ainda não sistematizada pela psicologia e pela sociologia”.
O personagem pode iluminar em nós espaços estranhos de nós mesmos; assim, em uma época onde as ciências sociais e da mente não estavam definidas, o personagem de ficção tinha uma utilidade além da arte, que era a de justificar ou identificar alguns comportamentos humanos. Assim, é necessário ressaltar que era um personagem bem construído pelos excelentes escritores que transcendiam ao romance, ou seja, possuía uma autonomia própria dentro do enredo da narrativa de ficção.
Desta forma a personagem continua sendo vista como ser antropo- mórfico cuja medida de avaliação é o ser humano, pois, até este momento, não havia uma teoria que possa estudar e entender o personagem e suas particularidades .No século XX, temos a gênesis do personagem problemático representando a figura humana diante de uma sociedade complexa, ao mesmo tempo liberal, que vive tramas psicológicos e sociais. Brait (1985, p.41)assim se coloca:
a nova concepção de personagem instaurada por Luckács apesar de reavivar o diálogo a respeito da questão e de fugir as repetições do legado de Aristóteles e o Horácio, submete a estrutura do romance e consequente a personagem, a influencia determinante das estruturas sociais.

A perspectiva dos formalistas russos (1955) ,segundo Brait (1985, p.48) ,mostra que a concepção de personagem se desprende das muletas de suas relações com o ser humano e passa ser encarada como ser de linguagem, ganhando, uma fisionomia própria. Assim, segundo essa concepção, o personagem adquiriu novas dimensões: elemento decorativo, agente da ação, porta voz condutor, ser fictício com forma própria de existência, sentir e perceber os outros e o mundo. Podemos dizer que o personagem Sem pernas é um personagem condutor da ação e um oponente do mundo burguês.
_ condutor da ação: personagem que dá o primeiro impulso à ação; é o que representa a força temática e pode nascer de um desejo, de uma necessidade ou de uma carência.
_ oponente: personagem que possibilita a existência do conflito; para antagonista que tenta impedir a força temática de se esboçar.
_ porta voz do autor: a personagem seria um amalgama das observações e das virtualidades de seu criador.
O texto literário é um lugar privilegiado para comtemplar os diversos tipos de personagem que tornar transparente a si mesmo, transformando o imaginário do leitor e ao mesmo tempo dando-lhe possibilidade de autorreflexão através desses seres que representam de maneira definida a condição e as angústias no mundo do ser humano. Para Candido (1984, p.15):
o extraordinário é que podemos, de certo modo, participar destas interpretações por mais que na vida real nos sejam contrárias, por mais que as combatemos na vida real. É evidente que há, nesta apreciação estética, limites. Ao que esta nem de forma tão transparente e seletiva que possamos perceber as motivações mais intimas, os conflitos e crises mais recônditos na sua concatenação e no seu desenvolvimento.

Sendo feito exclusivamente de palavras, o personagem nos dá a oportunidade de coparticipação na ação do enredo e de interpretação das atitudes da vida real, já que não há possiblidade de “congelar” as ações e os acontecimentos em nosso cotidiano, cujo tempo não é retornável. No texto literário, é possível perceber as motivações mais profundas no personagem e, ao mesmo tempo comtemplar, através deste, a plenitude da condição do homem.
Isso se dá porque o romance se baseia, antes de qualquer coisa, no homem manifestando-se através desta concretização verbal. Sendo um ser fictício, o personagem tem como parâmetro as pessoas reais que têm autonomia fora do contexto narrativo, mas o personagem só existe como tal se participar efetivamente do enredo, ou seja, atuando ou falando.
Assim, não basta ser mencionado na história, é preciso interagir com os demais personagens, direta ou indiretamente, interferindo no enredo contribuindo com o desenvolvimento do mesmo. Dessa maneira, percebemos que não só pessoas podem representar o personagem, mas bichos e/ou coisas, pois, o personagem define o enredo através de suas ações dentro do contexto.
Portanto, percebemos que apesar da narrativa ser constituída dos vários elementos característicos do gênero, a personagem possui uma relevância entre os demais, pois o texto de ficção é construído a partir da dela podendo ultrapassar as perspectivas que se propõe à história.













3 ANÁLISE DO PERSONAGEM SEM-PERNAS COMO REPRESENTAÇÃO SOCIAL

O Romance Capitães da Areia foi escrito em 1937, como já mencionado anteriormente, época em que o país vivia um momento de produção literária no terreno das ideias sociais e políticas, que são fruto do momento histórico que o mundo atravessava, em que a história e a literatura passava por grandes mudanças, segundo Candido (2000). Parafraseando este autor, nos romances produzidos nessa fase da nossa literatura, a humanidade singular dos personagens domina os fatores do enredo: meio social, paisagem, problema político. Essa característica do romance da época determina o caráter de movimento dessa fase de produção do romance, que aparece como instrumento de pesquisa humana e social.
É nesse contexto que Amado escreve Capitães da Areia, uma obra que trata da vida de crianças abandonadas que vivem nas ruas de Salvador. Narrativa inserida em uma tradição de cunho realista da representação social, retrata a vida de um grupo de garotos que vive em um trapiche abandonado e suas peripécias em busca da sobrevivência.
Esta análise se concentra em um desses garotos, o Sem-Pernas: menino franzino e coxo, cujo defeito lhe gerara o apelido. Inconformado com a vida de abandono, este personagem se mostra bastante complexo, pois é por meio de suas atitudes e réplicas que o autor representa em sua obra questões sociais que envolvem a sociedade brasileira e em especial a sociedade baiana, como o abandono de crianças e a exclusão, bem como a indiferença social de parte da sociedade, traçando, assim, o que seria a representação social da sociedade em que vive.

3.1 O PERSONAGEM SEM-PERNAS: Caracterização e sua importância na representação social da sociedade em que o narrador o insere.

Como já foi citado ao longo deste trabalho, a fábula do livro traz a história de dezenas de garotos que vivem nas ruas da cidade de Salvador, na Bahia, e que têm como abrigo e lugar de repouso um velho trapiche abandonado, espaço narrativo de grande significado, pois este os identifica socialmente: uma camada da sociedade excluída e marginalizada, sem acesso às necessidades básicas para uma sobrevivência digna e formação social como escola, moradia digna e lazer . Estes fazem parte de um clã, os capitães da areia, grupo que tem como líder Pedro Bala, moleque esperto e com espírito de liderança, filho de um “comunista” que foi morto em um movimento grevista por uma bala pedida, quando Pedro ainda era muito peque, hoje conta quinze anos.
O autor insere estes garotos em ambientes tipicamente excludentes como praças, portas de edifícios, avenidas, bares e feiras livres, locais onde eles podem não só praticar suas ações de marginalidade, como também servem de ambiente de fuga e repouso. São locais típicos de exclusão social, onde apenas as pessoas que não possuem uma família e/ou algum tipo de acolhimento por meio da sociedade são quem os frequentam.
São dezenas de garotos que vivem neste ambiente hostil, porém o narrador enfatiza apenas uns poucos. Todos os personagens são importantes na construção desse romance social, contudo é por meio do personagem Sem-Pernas que o narrador esquematiza toda a representação social da sociedade baiana, pois este se mostra insatisfeito e revoltado, trazendo consigo mágoa e ódio que são transbordado por meio do seu comportamento e da sua personalidade. Como afirma PORTUANDO (1979) “...a literatura é influenciada pela existência social e influi, por sua vez, sobre ela...”
Jorge Amado concretiza esta afirmação no romance estudado, cria um narrador que adere às causas das personagens e, por meio do recurso do discurso indireto livre, envolve o leitor e o induz a pensar como ele. Sem-Pernas era um menino franzino, com uma deficiência física em uma das pernas que o fazia mancar enquanto andava. Em sua obra, Amado descreve este personagem da seguinte maneira:
[...] voz estrídula e fanhosa, falava alto, ria muito. Era o espião do grupo, aquele que sabia se meter na casa de uma família uma semana, passando por um bom menino perdido dos pais perdido na imensidão agressiva da cidade. Coxo, o defeito físico valera-lhe o apelido (AMADO,2007, p 26).

Garoto que possuía um humor cáustico, ria dos problemas dos companheiros e da própria desgraça. Costumava arranjar confusão por qualquer coisa e vivia fazendo piada de mau gosto com todos com quem convivia no trapiche. Se chegava um membro novo no grupo, logo seria vítima de suas brincadeiras, e isso despertava a antipatia do recém-chegado, mas seus companheiros afirmavam que, no fundo, Sem-Pernas era um garoto bom. Este personagem trazia dentro de si um ódio que o fazia sobreviver em meio a tanta desgraça e era, paradoxalmente, nesse sentimento que ele encontrava forças para sobreviver; era agredindo a todos, de diferentes formas, que se protegia das agressões da sociedade. O menino gritava ao mundo, à sua maneira, que aquela não era a vida que ele escolheu, que não era a vida que ele queria levar, mas que sabia que não a tinha escolha, pois fora entregue a ela sem que tivesse chance de fugir. Mas, para onde, se toda a sociedade lhe virara as costas, já que era obrigado a perambular pelas ruas em busca da sobrevivência? Na verdade, ele queria ser cuidado, amado, protegido. É por meio deste personagem que Amado faz uma crítica social contundente, como é típico dos romances da época de cunho social, ainda que o romance seja mais cuidadoso na discussão dos conteúdos que na formulação literária.
Acerca dos nomes das personagens em geral, Reis e Lopes (1998) afirmam que:
No texto narrativo, a função primordial do nome próprio é a identificação das personagens. “Etiqueta” estável e recorrente, o nome próprio contribui de forma decisiva para a coerência do texto, assegurando a sua legibilidade: de fato, o nome próprio garante a continuidade de referencia ao longo do sintagma narrativo, já que através dele se mantém a identidade da personagem, suporte fixo de ações diversificadas [...].

Os autores afirmam ainda que no texto narrativo há outras formas de designar e identificar personagens para além do nome próprio: são os títulos, os termos de parentesco, as descrições definidas que remetem para certos papéis sociais. Jorge Amado nomeia seus personagens de acordo com suas principais características, contudo esses nomes, na obra, adquirem características de nomes próprios: são sempre escritos com letras iniciais maiúsculas, além de os personagens serem conhecidas socialmente, no enredo, por estes nomes.
Com relação aos personagens, como observam os autores citados, o personagem é uma...
Categoria fundamental da narrativa, a personagem evidencia a sua relevância em relatos de diversa inserção sociocultural e de variados suportes expressivos. Na narrativa literária (da epopéia ao romance e do conto ao romance cor-de-rosa), no cinema, na história em quadrinhos, no folhetim radiofônico ou na telenovela, a personagem revela-se, não raro, o eixo em torno do qual gira a ação e em função do qual se organiza a economia da narrativa; (.op.cit.1998)

Na obra em estudo, são os garotos que formam o clã capitães da areia e que conduzem toda a trama; assim, o personagem Sem-Pernas se mostra revelador. Em todas as suas ações, seja com o grupo ou individualmente, ele se vai revelando um ser complexo, inconformado com as injustiças de que se julgava vítima. Inconscientemente e por meio do recurso indireto livre, Sem-Pernas faz questionamentos a si mesmo buscando respostas que a vida não consegue lhe dar.
A primeira citação deste personagem se dá já no início da trama, no capítulo NOITE DOS “CAPITÃES DA AREIA”, quando os Capitães da Areia se reúnem à noite no velho Trapiche abandonado, é aí que temos sua primeira descrição:
Pelo trapiche ia um rumor de risadas, de conversas, de gritos. João Grande distinguia bem a voz do Sem-Pernas, estrídula e fanhosa. O Sem-Pernas falava alto, ria muito. Era o espião do grupo, aquele que sabia se meter na casa de uma família uma semana, passando por um bom menino perdido dos pais na imensidão agressiva da cidade. Coxo, o defeito físico valera-lhe o apelido. Mas valia-lhe também a simpatia de quanta mãe de família o via, humilde e tristonho, na sua porta, pedindo um pouco de comida e pousada por uma noite. Agora no meio do trapiche o Sem-Pernas metia a ridículo o Gato que perdera todo um dia para furtar um anelão cor de vinho, sem nenhum valor real, pedra falsa, de falsa beleza também (AMADO, 2007, p.26).

Com esta caracterização do Sem-Pernas, o narrador nos dá pistas da complexidade desse personagem e do importante papel que irá desempenhar em função da representação da sociedade que exemplifica. É sempre em suas falas que o autor insere problemas como abandono familiar e social, maus tratos sofridos por menores que vivem nas ruas, descaso social e sentimento de revolta. Sem-Pernas, sempre falando alto e com risadas estrondosas, na verdade, tentava esboçar uma falsa felicidade. E sua característica física de maior evidência, ser coxo, despertava a simpatia e a piedade das pessoas, pois ele utilizava esse defeito físico para praticar seus crimes mais ousados: aparecia como bom menino e infiltrava-se nos casarões para saber quais os objetos de valor e tudo mais que valesse a pena ser roubado; depois de dois ou três dias ia embora sem dar nenhuma satisfação. Essa atitude do Sem-Pernas lhe causava estranho prazer, pois a sensação que tinha era de vingança: de estar fazendo com alguém o que toda a sociedade sempre faz com ele. Tal atitude de vingança está presente em muitos romances do século XIX, como temática compensatória da exclusão; do ponto de vista narrativo, a vingança mobiliza a narrativa.
No último período desta citação, o narrador deixa transparecer a primeira manifestação do caráter do personagem: sentia prazer em ridicularizar o companheiro; tal caráter sádico do personagem nada mais é do que uma reação às agressões às quais constantemente ele é submetido, mas é também, uma configuração do projeto do autor. Ao longo da trama, esse personagem se vai apresentando e o narrador onisciente conduzindo sua história, dando-lhe voz e levando o leitor, pelo recurso do patético, a se comover. Ele vai ganhando vida ao longo da narrativa e vai tomando grandes dimensões, como afirma o próprio Jorge Amado em uma entrevista concedida em junho de 1981, acerca da personagem, ao então editor de Literatura Comentada, Álvaro Cardoso Gomes; o autor afirma que: “O personagem é quem faz o romance. Quando é o autor que faz o romance, o romance não presta.” E este personagem ganha vida a partir daí. Ao longo da trama, Sem-Pernas vai envolvendo o leitor ao ponto de causar comoção com relação às questões sociais que são apresentadas por ele, como a carência materna, o abandono e a própria marginalidade em que vive.
No mesmo capítulo citado anteriormente, o narrador nos apresenta um pouco mais este personagem que reafirma todas as apreciações feitas acima à cerca do personagem:
Ridicularizava tudo, era dos que mais brigavam. Tinha mesmo fama de malvado. Uma vez fez tremendas crueldades com um gato que entrara no trapiche. E um dia cortara de navalha um garçom de restaurante para furtar apenas um frango assado. Um dia em que teve um abscesso na perna o rasgou friamente a canivete e na vista de todos o espremeu rindo. Muitos do grupo não gostavam dele mas aqueles que passavam por cima de tudo e se faziam seus amigos diziam que ele era um “sujeito bom”. No mais fundo do seu coração ele tinha pena da desgraça de todos. E rindo e ridicularizando, era que fugia da sua desgraça. Era como um remédio (op.cit.p.30, grifos nossos).

E, nesta passagem, ao mesmo tempo em que descreve o jeito sádico e as ações cruéis do personagem, o narrador justifica seu jeito de ser atribuindo todo seu sadismo à vida excludente que lhe coube na sociedade. Ele inocenta o personagem de uma possível culpa das suas ações com o provável propósito de não despertar a antipatia do leitor para com a figura do personagem em questão e dos outros membros do grupo. O narrador procura demonstrar que as desigualdades sociais são que levam essas crianças, e em especial Sem-Pernas, ao crime e à marginalização e assim confirma a opinião dos que diziam que ele era um “sujeito bom”, apenas foi submetido àquela vida e esta é a única forma de sobrevivência, a única maneira de suportar os horrores de uma vida de abandono e exclusão social.
Como afirma Bakhtin (1981), “A língua elabora meios mais sutis e mais versáteis para permitir ao autor infiltrar suas réplicas e seus comentários no discurso de outrem”. Tratando-se de um romance social que busca a representação de ideais sociais e políticos, o autor utiliza-se do estilo pictórico, discurso de outrem, para infiltrar seus comentários.
O romance mostra os meninos marginalizados à mercê da própria sorte tendo que se virar sozinhos nas ruas de Salvador para conseguir comida e algum dinheiro. Crianças que têm de viver como adultos, “gente grande”, sem a proteção de um lar e sem o acolhimento da sociedade. O narrador, por meio das personagens e suas ações, sugere o contraste entre a humanidade e sensibilidade das crianças bem como a desonestidade e a indiferença das classes dominantes, mostrando toda uma inquietação crítica em meio às questões sociais. Por meio deste recurso, o narrador vai-se envolvendo com essas crianças ao ponto de se compadecer diante das mazelas que sofrem.
As ruas de Salvador formam o cenário perfeito para furtos e pequenos crimes, mas o narrador não demonstra apenas este fator da sociedade brasileira; estão presentes na obra, também, toda a cultura e misticismo da sociedade baiana, característica marcante do autor. Retratar seu povo, sua gente pobre excluída do sistema, a gente da Bahia, é característica marcante nas obras de Jorge Amado. Como afirma Candido (2000, p.67): “o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade (que o delimita e especifica entre todos), mas alguém desempenhando um papel social...”
O capítulo “FAMÍLIA” é a parte que fala da adoção do garoto por uma família muito rica, que morava em um bairro nobre da capital; nesse capítulo o autor se utiliza do narrador para inserir apreciações acerca da temática apresentada na obra. O garoto, como de costume, utilizava-se de sua frágil aparência de menor abandonado bem como da sua deficiência física, “pobre e órfão, aleijado e triste” (op.cit.p.112) e infiltrava-se nas residências para sondar e ver o que tinha de valor e assim facilitar a entrada dos capitães da areia na casa, depois desaparecendo sem deixar vestígio. Para o autor, (Op.cit,. 2007, p113):
Depois os Capitães da Areia invadiam a casa numa noite, levavam os objetos valiosos e no trapiche o Sem-Pernas gozava invadido por uma grande alegria, alegria da vingança. Porque naquelas casas se o acolhiam se lhe davam comida e dormida, era como cumprindo uma obrigação fastiosa.

Para o Sem-Pernas, essas senhoras que o acolhiam faziam-no por remorso, mas ele não percebia nessas pessoas um acolhimento sincero; por isso sentia repulsa e desprezo pelas senhoras. O autor materializa por meio da sua criação o caráter de falsa solidariedade e a hipocrisia, sentimentos que permeiam o núcleo da sociedade urbana e burguesa em que os valores que importam são aqueles que têm como base o dinheiro, riqueza, poder, prestígio e a ascensão social. Assim, ele constrói seu personagem tipicamente para fazer uma representação de uma camada social excluída, desprovida de valores éticos, morais e sentimentais, mas justificada em sua negatividade; o autor não o coloca como vilão e sim como vítima de um sistema opressor que empurra crianças e adolescentes para a exclusão.
Porque o Sem-Pernas achava que eles eram todos culpados da situação de todas as crianças pobres. E odiava a todos, com um ódio profundo. Sua grande e quase única alegria era calcular o desespero das famílias após o roubo, ao pensar que aquele garoto esfomeado a quem tinham dado comida fora quem fizera o reconhecimento da casa [...] (Op.cit.p113).

Como a ficção tem o poder da representação do real, Amado utiliza-se, em alguns momentos, do estilo pictórico¹ para fazer uma crítica ao social, ou, pelo menos, a uma camada social. Tal recurso permite ao autor infiltrar seus comentários no discurso do narrador e utilizando-se desta voz, mais uma vez justifica o ódio que o Sem-Pernas sente, “Porque Sem-Pernas achava que eles eram todos culpados da situação de todas as crianças pobres”, e assim o isenta de toda culpa de ser insensível, da culpa de mentir, enganar e trair a quem “o ajudou”.

Ainda neste capítulo o narrador leva o leitor a se sensibilizar com a causa do personagem mostrando que Sem-Pernas, desta vez, sente um certo remorso porque percebe que Dona Ester, a senhora que o adotou, é uma mulher boa. Ele sente carinho em sua voz, amor em suas ações. Sente que ela o acolhe e o quer verdadeiramente como a um filho e neste momento ele pensa no que seria um carinho de uma mãe. Por meio da verossimilhança o autor traz para sua obra a realidade dos milhares de órfãos do Brasil, que inúmeras vezes são adotados e outras tantas vezes são rejeitados pelas famílias que os adotam. O narrador deixa transparecer que é a única vez que Sem-Pernas se sente amado e este sentimento o incomoda, pois ele preferia que fosse como das outras vezes, assim sentiria o mesmo ódio e o gostinho de vingança, já que é nestes sentimentos que ele se apoia para sobreviver. É por meio deste sentimento de revolta apresentado pelo personagem que o autor, mais uma vez, atribui à sociedade todo o abandono e exclusão aos quais as crianças do nosso país são submetidas. E retira a possibilidade de o Sem-Pernas ser feliz porque lhe faltavam instrumentos psicossociais para amar e entender.
No capítulo “AS LUZES DO CARROSSEL” o narrador apresenta toda a sensibilidade, encantamento e inocência das crianças/ capitães da areia; em pequenos mas significativos momentos textuais, a noção de marginais se desfaz, resistindo a noção da infância. Volta-Seca e Sem-Pernas ajudam a montar o carrossel e logo mais trabalham ajudando Nhôzinho França nas noites em que o brinquedo funcionava. Esta atividade iguala as crianças a cidadãos comuns, isentos da marginalidade que lhes é atribuída:
Isso mesmo contou Nhôzinho a Volta-Seca [...] e ao Sem-Pernas naquela tarde em que os encontrou na “Porta do Mar” e os convidou para que o ajudassem no serviço do carrossel [...]. Não podiam marcar ordenado, mas talvez desse para tirar cada um uns cinco mil-réis por noite (op.cit.p. 56).

O fato de aquelas crianças serem remuneradas pelos seus trabalhos traz-lhes uma dignidade que a sociedade lhes tirara. O trabalho no carrossel também dá oportunidade às outras crianças/ capitães da areia, que vêm à noite, quando o parque está fechado, para passear com a autorização do proprietário, ou seja, sem que seja preciso atuar como marginais. O narrador, ao longo da narrativa, pela força da ficção e de seu poder de intervir criativamente na realidade, vai igualando essas crianças a todas as outras e a noção perdida de que são apenas crianças é reforçada neste capítulo com a figura do padre José Pedro, que convida as crianças do capitães da areia para passearem no carrossel, pois ele pagaria as entradas.
Diante da voz autorizada do narrador, é possível confirmar na figura do Sem-Pernas a representação social da sociedade brasileira que expõe, abandona e exclui crianças e adolescentes à marginalidade para que possam viver abandonadas à própria sorte tendo que se virarem sozinhas em busca da sobrevivência. Precisando agir como “gente grande” tendo que cometer delitos que assustam e chamam atenção de todas as classes sociais, quando, na verdade, esta sociedade deveria garantir-lhes aquilo que lhes é de direito, garantido apenas no texto legal, hoje, mas não na realidade viva das ruas.















4. NARRADOR E PERSONAGEM: Revelações do narrador por meio do personagem Sem-Pernas

O narrador, à medida que apresenta a personagem Sem-Pernas, vai se posicionando, sensibilizando-se e tornando-se cúmplice dos personagens bem como das suas ações ao longo de todo o enredo. Temos, então, um narrador que descreve, narra e argumenta atuando linguística e ficcionalmente com a intenção de causar efeitos de interpretação no leitor e de leva-lo à comoção social. Como afirma Romariz (2011, p.8, grifos da autora):
O narrador dá-nos o tom, a perspectiva, a versão dos fatos narrados, positiva ou negativa, verossímil ou fantástica, idealista ou materialista, conforme a visão do mundo do autor ou seu projeto para aquela obra.² Irônico, poético, sublime, grandiloquente, trágico ou eivado da materialidade sensível e libertária do texto popular, o tom do narrador sugere a posição, a cumplicidade ou o afastamento do que conta das criaturas e dos objetos imaginados, espécie de ângulo da perspectiva do narrador sobre os dados romanescos.

No fragmento retirado do capítulo NOITE DOS “CAPITÃES DA AREIA”, o narrador apresenta alguns personagens por meio de suas ações. Acerca do personagem Sem-pernas, por meio de uma descrição relativamente longa, o narrador tenta conduzir o leitor a se sensibilizar com a condição psicológica e social do personagem. Ele também revela seu envolvimento emocional com a condição marginalizada do personagem, como é possível constatar mediante a leitura de um fragmento deste capítulo, que descreve uma cena entre o personagem Pirulito e Sem-pernas na obra (AMADO, 2007, p.30):
O que ele queria era felicidade, era alegria, era fugir de toda aquela miséria, de toda aquela desgraça que os cercava e os estrangulava. Havia, é verdade, a grande liberdade da rua. Mas havia também o abandono de qualquer carinho, a falta de todas as palavras boas. Pirulito buscava isso no céu, nos quadros de santo, [...]. Mas Sem-Pernas não compreendia que aquilo pudesse bastar. Ele queria uma coisa imediata, uma coisa que pusesse seu rosto sorridente e alegre, que o livrasse da necessidade de rir de todos e de rir de tudo. Que o livrasse também daquela angústia, daquela vontade de chorar que o tomava nas noites de inverno.

Sem-Pernas representa todas as crianças abandonadas pela família e pela sociedade. E é por meio desta descrição cheia de impressões linguísticas que revelam a compaixão e o envolvimento do narrador com o personagem, que o leitor vai conhecendo Sem-Pernas através da ótica do narrador. Este busca sensibilizar o leitor, penetrando na mente do personagem, revelando seus traumas e anseios mais profundos, como o desejo que lhe foi sonegado: de ter uma mãe, uma família, um lar. E, assim, por meio da construção dos personagens e suas ações, o narrador vai tecendo a conjectura de uma sociedade até descrever de forma bastante verossímil toda a representação social da sociedade brasileira que coloca pessoas de diferentes níveis sociais em contato mostrando o contraste imenso e o abismo profundo que existe entre ricos e pobres, entre os menos favorecidos e os que têm demais, além do preconceito com pessoas que vivem às margens da sociedade sem nenhuma expectativa de uma vida melhor como se vê no excerto (AMADO, 2007; p. 30, grifos nossos):
Queria alegria, uma mãe que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera uma família.

Mais uma vez, o narrador revela uma burguesia preconceituosa que forma parte da sociedade brasileira, que age como se todos os que moram nas ruas fossem marginais, mesmo que sejam crianças, esses seres à parte, com direitos usurpados e sem acolhimento social. A população que compõe uma classe social hegemônica não enxerga as crianças do capitães da areia como o narrador as descreve, “simples crianças”. Julga que não passam de marginais, bandidos perigosos de quem a sociedade precisa se manter longe. Porém o narrador vai desconstruindo essa imagem de marginais justificando suas ações por meio da condição social em que esses garotos vivem e/ou por meio de outros personagens, como o Pe. José Pedro, por exemplo, que acredita na bondade e na inocência existentes no coração daquelas crianças. A reflexão feita por Sem-Pernas no fragmento transcrito acima comprova bem essa atitude do narrador, que transfere para seu lugar uma cumplicidade com o personagem.
Em suas ações, Sem-Pernas se mostra insensível à dor de seus companheiros. Segundo o narrador, esse foi o argumento encontrado por ele para se proteger das agruras da vida. É um mecanismo de defesa: a insensibilidade e, muitas vezes, a crueldade para com os que o cercam. Tratando-se de um romance social, Capitães da Areia traz consigo a temática de desigualdade social, do abandono de crianças, e por meio de seus personagens o autor fez uma representação da sociedade brasileira traduzindo seu olhar sob sua própria cultura. Ele cria para seu texto um narrador em terceira pessoa, mas que não é imparcial, pois ele se sensibiliza com os personagens e vai deixando marcas linguísticas, impressões textuais que projetam o leitor na realidade representada. Parafraseando Romariz (2011), o modelo de construção do personagem somos nós mesmos e somos referência, parâmetros na sua construção. Isso faz com que o leitor se sensibilize, identifique-se e/ou, até mesmo, projete-se em determinado momento daquela realidade.
Mesmo diante de todo ressentimento que possui, Sem-Pernas, por meio da voz do narrador, revela uma enorme carência e necessidade de afeição e afetividade materna, como já o dissemos. O narrador revela este desejo na passagem a seguir transcrita do mesmo capítulo analisado neste tópico:
Confusamente desejava ter uma bomba (como uma daquelas de certa história que o Professor contara) que arrasasse toda a cidade, que levasse todos pelos ares. Assim ficaria alegre. Talvez ficasse também se viesse alguém, possivelmente uma mulher de cabelos grisalhos e mãos suaves, que o apertasse contra o peito, que acarinhasse seu rosto e o fizesse dormir um sono bom, um sono que não estivesse cheio de sonhos da noite na cadeia. Assim ficaria alegre, o ódio não estaria mais no seu coração” (op.cit.p.23).

Aqui, o narrador também nos revela a imagem que Sem-Pernas tem daquilo que seria uma idealização da figura materna, do que é e de como seria uma mãe: “uma mulher de cabelos grisalhos e mãos suaves, que o apertasse contra o peito, que acarinhasse seu rosto e o fizesse dormir um sono bom” (op.cit.p23). É assim a imagem que o garoto tem daquela que seria uma mãe: de uma boa senhora, doce e amável que cuida, ama e embala seu filho no colo cobrindo-o de amor e afeição materna, e, acima de tudo, protegendo-o de todas as dificuldades que a vida oferece. O narrador revela para o leitor toda carência e sensibilidade daquela pequena e frágil criança que ficara órfã muito cedo, e que tinha motivos para agir com revolta; ele nos revela também que o que Sem-Pernas queria, na verdade, era ser igual às outras crianças, era ter uma família e que não entendia nem se conformava com toda aquela desgraça que o estrangulava. Sentia pena de todas as crianças que como ele também foram obrigadas a viver uma vida de abandono e miséria nas ruas das grandes cidades: “No mais fundo do seu coração ele tinha pena da desgraça de todos. E rindo, e ridicularizando, era que fugia da sua desgraça. Era como um remédio” (op.cit.p30).
Assim, o narrador apresenta este personagem sensibilizando o leitor por meio da complexidade psicológica da sua criação, do patético, categoria que possibilita e move a compaixão, o sentimento do leitor, que é apresentada por meio de suas reflexões. Ele nos faz entender que Sem-Pernas tem consciência aguda da sua condição social, mas que não se conforma, do contrário, se mostra revoltado e não aceita tanta miséria e descaso que a vida de exclusão lhe proporcionara. Sente uma enorme necessidade de afeto, de carinho, queria se sentir feliz, mas não sentir a falsa euforia, como a que sentia com a liberdade que tinha nas ruas.
uma coisa imediata, uma coisa que pusesse seu rosto sorridente e alegre, que o livrasse da necessidade de rir de todos e de rir de tudo. Que o livrasse também daquela angústia, daquela vontade de chorar que o tomava nas noites de inverno. (op.cit.p30).

Esta angústia, dor, inquietação que o personagem sente é um recurso utilizado pelo narrador para sensibilizar o leitor e conduzi-lo a pensar como ele; o narrador, atraindo para si a causa social vivida pelo personagem, expõe uma característica fundamental das obras escritas nas décadas de 1930 – 1945: uma literatura de cunho social e político.
No capítulo “AS LUZES DO CARROSSEL”, o narrador mais uma vez revela a carência e o sentimento de bondade que existe naquele personagem:
Depois vai o Sem-Pernas. Vai calado. Uma estranha comoção o possui. Vai como um crente para uma missa, um amante para seio da mulher amada, um suicida para morte. [...] Monta um cavalo azul. [...] Os lábios estão apertados, seus ouvidos não ouvem a música da pianola. Só vê as luzes que giram com ele e prendem em si a certeza que está num carrossel, girando num cavalo como todos aqueles meninos que têm pai e mãe, e uma casa e quem os beijem e quem os amem (Op.cit. p62.).

Sem-Pernas realiza o sonho de andar em um carrossel sem que seja enxotado a pontapés, mas este sonho vai muito além disso; pelo sonho, ele se iguala momentaneamente a todas as crianças e não sente ódio nem desprezo, sente que faz parte de uma família.

4.1. PERSONAGEM E ESPAÇO: Ícones da representação social em Capitães da Areia

O personagem Sem-Pernas tipifica, como já o dissemos, o meio em que vive, representando o espaço de grande parte dos seres ficcionais que compõem a narrativa, sendo as capitais brasileiras, e em particular, na obra, a capital baiana, o grande espaço de referência utilizado pelo autor na construção do enredo. O velho trapiche abandonado como “lar” constitui um cenário de abandono e exclusão social; lugar onde a degradação física e humana retrata uma realidade camuflada por uma sociedade hipócrita que fecha os olhos para questões sociais que vão além dos muros que limitam as camadas sociais. Ambiente hostil, morada de ratos e baratas, pouco iluminado ou quase sem luz alguma, é o espaço onde as crianças do capitães da areia convivem e têm como referência de convívio social. É para lá que um membro leva alguma criança com quem, inconscientemente, se identifica, oferecendo abrigo e a proteção do grupo, já que funcionam como uma obscura sociedade organizada com normas que devem ser seguidas por todos os membros do grupo, sobe pena de punição se ocorre a quebra de um regra ou descumprimento de alguma norma imposta pelo clã. Tal negatividade do espaço acentua o caráter crítico da obra, e explica parte da composição excluída do personagem.
Sobre o papel que o narrador desenvolve na construção do espaço, parafraseando Llosa (2008, p.59), o narrador é o personagem mais importante do romance e todos os outros elementos da narrativa dependem dele. Jorge Amado cria para seu romance um narrador onisciente que se compadece com a condição de vida dos personagens e, ao descrever o espaço, cumpre com sua função de comoção e envolvimento. Descreve o espaço de forma bastante minuciosa e envolvente, transportando o leitor para uma reflexão sobre a realidade cultural e social brasileira. Vai sendo construída toda a ideia de representação social da sociedade da qual a autoria de Amado é integrante.

O Sem-Pernas encostou-se junto a uma parede e deixou que o tempo passasse. [...] Depois o Sem-Pernas ficou muito tempo olhando as crianças que dormiam. Ali estavam mais ou menos cinqüenta crianças, sem pai, sem mãe, sem mestre. [...]. E o grupo era de mais de cem crianças pois muitas outras não dormiam no trapiche. Se espalhavam nas portas dos arranha-céus, nas pontes, nos barcos virados na areia do Porto da Lenha. [...] Por vezes morria uma de moléstia que ninguém sabia tratar. Quando calhava vir o padre José Pedro, ou a mãe-de-santo Don’Aninha ou o Querido-de-Deus, o doente tinha algum remédio. Nunca porém era como um menino que tem sua casa. O Sem-Pernas ficava pensando. E achava que a alegria daquela liberdade era pouca para a desgraça daquela vida(op.cit.p.38)

O fragmento transcrito é rico de expressões linguísticas que caracterizam esse narrador que se envolve com as causas daquelas crianças. Ele nos revela que apenas Sem-Pernas tinha uma pequena consciência do que era viver perambulando pelas ruas, já que este sempre se mostra inconformado e demostra sua revolta ao longo de toda a narrativa. Os demais garotos parece não apresentar tal preocupação, o que podemos comprovar quando o narrador diz que “o grupo era de mais de cem crianças pois muitas outras não dormiam no trapiche. Se espalhavam nas portas dos arranha-céus, nas pontes, nos barcos virados na areia do Porto da Lenha. Nenhuma delas reclamava”. (op.cit.p.38)
O excerto transcrito nos mostra que o narrador faz uso do personagem Sem-Pernas para ir tecendo a imagem da representação social da sociedade brasileira com suas diferenças sociais, de raça, de cultura e de crença. Assim, intencionalmente, o projeto autoral mistura ao clã capitães da areia tanto o padre José Pedro quanto a mãe-de-santo Don’Aninha e ainda Querido-de-Deus, pessoa sem nenhum escrúpulo e que era adepto do candomblé. Por meio do mágico poder da ficção, o autor une e iguala essas três figuras que estão unidas com um só propósito: ajudar de alguma maneira os Capitães da Areia e, mesmo representando espaços físicos e crenças religiosas diferentes, coloca-os ocupando o mesmo espaço social: o campo da solidariedade dos excluídos. Tendo como espaço ficcional a cidade de Salvador, a Bahia de Todos os Santos, o autor transpõe essa realidade para a obra. Os meninos do capitães da areia vão às festas do terreiro de Don’Aninha, recebem a presença do padre José Pedro e até pensam em ser um padre um dia, como é o caso de Pirulito, assim o autor materializa o sincretismo religioso, característica maior da sociedade baiana, e luta social do autor.
No capítulo “As luzes do carrossel” o narrador deixa transparecer toda a fragilidade infantil bem como todo encantamento das crianças por este brinquedo que encanta a todos. Também aqui, o autor utiliza-se do espaço físico para colocar pessoas de diferentes classes sociais em contato, pois na praça onde foi montado o carrossel, todos se encontram: ricos e pobres, as crianças que saem para passear com seus pais e aquelas que não têm pai nem mãe, as que podem pagar para andar no brinquedo e as que ficam paradas olhando e esperando que uma “alma caridosa” as convide ou lhes ofereça algum dinheiro. Assim, o narrador faz uma representação crítica da sociedade brasileira colocando pessoas de diferentes níveis sociais em contato, pois assim como as crianças, por meio da verossimilhança, os personagens ultrapassam fronteiras sociais, deixando-se envolver pela magia do brinquedo.
O personagem Sem-Pernas revelara-se de uma extrema complexidade, um ser questionador e inconformado com a própria sorte, que busca algo que o tire do seu inconformismo constante e que apague seu ódio de tudo e de todos fazendo-o, assim, sentir-se uma criança igual a todas da sua idade. Suas ações estão associadas ao espaço ficcional: do grupo, ele era o especialista em “infiltrar-se nas casas de alguma família rica” para facilitar a entrada dos capitães da areia na residência para praticarem furtos. Ele se passava por um “pobre órfão” para causar comoção à família com quem iria viver. Ficava na residência por dois ou três dias, no máximo, e depois desapareceria. Este era o espaço urbano de eleição, em que Sem-Pernas atuava breve e de forma marginal. Por causa da sua deficiência física, despertava os sentimentos de compaixão nas pessoas e tinha consciência disso, logo fazia deste artifício sua melhor e mais eficiente arma.
No capítulo “Família”, Sem-Pernas é adotado por uma família tradicional. Nas outras vezes em que estivera em outras casas, não sentira nenhuma comoção; ao contrário, sentia prazer em pensar na tristeza e na decepção que a família sentiria quando associasse seu sumiço ao furto. Sem-Pernas sentia prazer, porque era uma forma de responder à exclusão social, com as ferramentas poucas de que dispunha. Dona Ester o acolhera de início com piedade, mas, imediatamente deu a Sem-Pernas o tratamento que uma mãe daria a um filho. Olhou para ele com afeição e bondade, mandou preparar-lhe o quarto que era do filho morto, Augusto, e lhe deu roupas novas, banho quente e comida. A boa senhora deu a Sem-Pernas tudo que uma mãe dá a um filho, inclusive afeição e carinho. Foi a primeira vez em que o garoto se sentiu querido; as atitudes de dona Ester fizeram com que, pela primeira vez, o menino sentisse remorso em causar dor a alguém.
Aquela atitude da senhora assustava o garoto. Acostumado à indiferença, agora ele se sentia acolhido e amado, pois percebia verdade nas ações e nos sentimentos de dona Ester. Mas ele não podia esquecer sua missão: conhecer bem a casa e facilitar a entrada dos Capitães da Areia. Sem-Pernas sentia muita raiva, mas não sabia bem se era daquela senhora ou de si mesmo. Na verdade ele queria que aquela senhora o tratasse como as outras o trataram: não lhe desse roupa nova, colocasse-o para jantar na cozinha, ignorasse sua presença na casa; assim seu ódio era mantido e ele não sentiria nenhum remorso. Mas se sentia perdido. Aquela senhora era boa, o tratava como a um filho, chegou a dar-lhe um beijo de boa noite na face. Este gesto fez com que Sem-Pernas sentisse vontade de desistir de tudo, e até pensou como seria sua vida se ficasse para sempre naquela casa; por isso, o personagem demorou mais que o tempo previsto para fazer o reconhecimento do lugar para então voltar à convivência dos Capitães da Areia.
Nesse capítulo, o narrador, por meio das reflexões do personagem, mais uma vez tenta justificar suas ações, perdoar os atos marginais atribuindo seu caráter a seu lugar social de exclusão. Candido (1918), em Literatura e Sociedade, afirma que “neste tipo de romance, o mais característico do período e frequentemente de tendência radical, é marcante a preponderância do problema sobre o personagem. É a sua força e a sua fraqueza.”
Toda a revolta, todo ódio que estavam intrínsecos em Sem-Pernas não permitiram que o garoto se desse uma chance, uma oportunidade de ter uma vida digna longe de toda a crueldade e de todas as mazelas que a vida nas ruas lhe oferecera. E assim, mesmo com ódio pelo que estava fazendo, ele cumpre com a missão que o Capitães da Areia lhe concedido. Porém, é a primeira vez que Sem-Pernas esboça um sentimento que não é desprezo ou ódio:
Então os lábios do Sem-Pernas se descerram e ele soluçou, chorou muito encostado ao peito de sua mãe. E enquanto a abraçava e se deixava beijar, soluçava porque a ia abandonar e mais que isso a ia roubar. E ela talvez nunca soubesse que o Sem-Pernas sentia que ia furtar a si próprio também (op.cit.p.120).

E sai daquela casa em direção ao trapiche para nunca mais voltar. Aqui é revelada para o leitor toda a fragilidade, carência e sentimento de culpa vividos pelo personagem que, ao longo da fábula, vem mostrando consciência do seu espaço na sociedade, embora manifeste inconformismo e revolta. Sentindo-se culpado, ele cumpre com o seu papel, mas a partir deste momento Sem-Pernas jamais será o mesmo, tornando-se cada vez mais retraído, angustiado e aumentando o ódio que o fazia sobreviver a tudo aquilo.
O capítulo que narra sua morte é intitulado “COMO UM TRAPEZISTA DE CIRCO”. Como não podia ser diferente, o espaço caracteriza a condição de marginalidade e influencia aas ações deste personagem: depois de um roubo em uma casa localizada em um dos bairros de mais policiamento, o grupo do capitães da areia sofreu uma perseguição, todos conseguiram fugir, menos Sem-Pernas, que mantém seu sentimento de ódio. O autor traça seu destino, assim como o faz com todos os principais membros dos capitães da areia, e descreve a morte deste personagem, porém o faz de forma significativa, como fizera em todos os momentos em que o enredo trazia à cena a figura do Sem-Pernas:
Perto dali, na praça do Palácio, andavam muitos guardas, investigadores, soldados. [...] Pedro Bala e João Grande abalaram pela ladeira da praça. Barandão abriu no mundo também. Mas Sem-Pernas ficou encurralado na rua. Jogava picula com os guardas. [...] Sem-Pernas corria de um lado para outro da rua, os guardas avançavam. [...] Não deixará que o peguem, não tocarão a mão no seu corpo. Sem-Pernas os odeia como odeia a todo mundo, porque nunca pode ter um carinho. E no dia que o tivera foi obrigado a o abandonar porque a vida já o tinha marcado demais (op.cit.p.236).

Neste excerto, o narrador afirma que a culpa da marginalização deste personagem é da sociedade que o gerou, pois Sem-Pernas fora fruto de uma sociedade excludente que obriga crianças a viverem às margens praticando crimes, roubando, assaltando e, muitas vezes, ferindo e/ou matando em busca da sua sobrevivência: “Muita gente o tinha odiado. E ele odiara a todos.”
Com uma narração rica em elementos descritivos e com todo envolvimento característico ao longo do romance, o narrador segue conduzindo o leito ao local dos fatos dando ao Sem-Pernas a honra de uma morte digna de causar comoção ao leitor, criando para seu personagem uma dignidade que a vida e a sociedade não lhe deram. Isso sem deixar de cumprir com sua função de narrador envolvido com a causa do personagem:
Pensam que ele vai parar junto ao grande elevador. Mas Sem-Pernas não pára. Sobe para o pequeno muro, volve o rosto para os guardas que ainda correm, ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço como se fosse um trapezista de circo. [...] Sem-Pernas se rebenta na montanha como um trapezista de circo que não tivesse alcançado o outro trapézio (op.cit.p.238)

Mesmo narrando a morte do garoto, o narrador preocupa-se com caracterização de uma grupo social marginalizado que vive à mercê de uma sociedade excludente e preconceituosa com os menos favorecidos e, mais uma vez, utiliza-se da verossimilhança para fazer a representação da sociedade brasileira. E, assim, o autor constrói, destrói e redime pela morte sua personagem que se torna uma representação do sistema social excludente e assimétrico.
















CONCLUSÃO

Pensando em homenagear o grande romancista baiano, Jorge Amado, devido ao seu centenário, este trabalho propôs analisar uma das suas grandes obras: Capitães da Areia, tendo como foco de análise o personagem Sem-Pernas e sua importância para a representação social da sociedade brasileira, e em especial a sociedade baiana. Tratou-se de analisar um exemplo de romance social do século XX.
Diante das análises efetuadas sobre a personagem citada e o espaço da narrativa onde ela atua, instrumentos de representação da sociedade brasileira e de sua assimetria, que coloca classes sociais diferentes em contato, foi possível observar que o autor, através da composição do narrador, utilizou-se da personagem para fazer com que o leitor se sensibilizasse e refletisse a respeito de delicadas questões sociais que envolvem toda sociedade brasileira. O narrador desperta a consciência social do leitor por meio das falas e das ações das personagens da obra analisada e em especial do personagem Sem-Pernas. É como se o projeto de autoria, configurado no trajeto do personagem, representasse grandes e agudas questões sociais do país.
Este estudo, além da análise mencionada, procurou fazer uma breve apresentação biográfica do autor do romance aqui citado, em homenagem ao seu centenário, e uma breve apreciação dos estudos teórico-críticos sobre a personagem de ficção. A análise de um romance social permite-nos observar, através da linguagem literária, a representação de uma sociedade sob a visão verossímil da percepção artística. Assim, no romance estudado, vimos a sociedade representada pela ótica e formalização literária de um determinado autor, Amado. Daí a importância de um estudo mais aprofundado sobre aspectos da estrutura da obra em questão, já que uma narrativa literária é uma fonte inesgotável de estudos não só da arte em si, mas do conjunto da trajetória humana e histórica, dos indivíduos.


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Maria Alice Santos ESCRITO POR Maria Alice Santos Escritor
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