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O Contador de “Causos”

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 Prólogo

        Eu o conheci quando trabalhava em Águas Claras, uma pequena cidade as margens do Rio Torrente; apesar do nome, um manso rio de 500m de largura e emoldurado por uma deliciosa praia de areias finíssimas.

       Diziam os locais que essa areia era afrodisíaca, talvez por conta dos casos escabrosos que, segundo as fofoqueiras locais, ocorriam por lá altas horas da noite.

       Na verdade, o que posso dizer é que as areias eram excelentes para serem colocadas em uma panela de barro e estourarem milho oferecendo deliciosas pipocas. Isso é claro, após ter sido levada ao fogo.

       Pois bem! Nessa época, eu por ser solteiro, morava no Hotel Paraíso, um bucólico hotelzinho de interior que também oferecia pensionato. Apenas eu, e um senhor de uns setenta e cinco anos, éramos hóspedes permanentes. Os demais não demoravam mais do que três dias. Eram em sua maioria caixeiros-viajantes que vinham visitar os comerciantes locais. Vez ou outra aparecia um representante de remédios, interessado em que os médicos locais receitassem os produtos do seu laboratório.

      O hotel, de propriedade do Sr. Antônio Malaquias, era administrado por ele e por sua esposa, D. Joaquina, que funcionava como chef de cuisine, secundada por Afrodite, sim, era esse o nome, que cuidava do manter o fogão quente, cozinhava também, lavava pratos e panelas, servia e recolhia os pratos e limpava as mesas.  Sempre após o jantar, eu e o velho senhor, que atendia pelo nome de “Seu” Jeremias, costumávamos nos sentar em cadeiras de vime, na calçada em frente ao hotel, para prosear e olhar quem passava pela rua.

      Uma atividade até certo ponto desinteressante. Não pela prosa, mas pelas pessoas, quase sempre velhas senhoras que se dirigiam para a igreja.

      Algumas noites “Seu” Jeremias não se sentava à porta; dirigia-se para a Praça Cel. Jerônimo Bastos, um herói local que, segundo diziam, tinha enfrentado Lampião. Na verdade, segredou-me, o “Seu” Jeremias não tinha passado de grileiro e mulherengo irresponsável, com uma biografia que sua família muito se esforçou para enterrar. As homenagens são decorrência de cargos políticos ocupados pelos descendentes.

      “Seu” Jeremias quando não estava à porta podia ser encontrado na praça. Lá ele papeava, jogava dominó, gamão e se inteirava das notícias e fofocas. Ficava por lá até às vinte e duas horas, quando as luzes se apagavam e todos regressavam as suas casas.

      No outro dia ele durante o jantar já me dizia: – “Seu” Menino – era assim que ele me chamava – tenho novidades!

      Eu já sabia. Vinha um pacote de fofocas. E assim eu ficava sabendo quem era quem, e quem traía quem. Não escapava ninguém: o juiz, o escrivão, o delegado, o padre, as professoras do grupo escolar e da Escola Normal Frei Piedade, os médicos, bem como as enfermeiras. Enfim, não escapava uma só vivalma. A cidade era uma verdadeira Sodoma.

      O que era falso ou verdadeiro não sei. Pelo tamanho e quantidade das fofocas, creio que até eu era objeto delas. Não que fosse verdade, minha vida era um livro aberto, mas ninguém escapava das fofocas.

      Eu não seria exceção. Solteiro, chefe de escritório, motorizado, bom salário, bem-apessoado, era objeto de cobiça de moçoilas, desesperadas procurando alguém para se casar, viúvas, descasadas, e até casadas. Imaginem!

      Dava para sentir o interesse, quando apareciam no escritório oferecendo rendas, roupas ou perfumes.

      – Veja, essa renda é excelente para presentear uma amiga, uma irmã, sua mãe ou a “namorada”!

      A “comerciante” trazia uma aliança no dedo esquerdo, mas cheirava mais que a Primeira Dama da França e tinha um decote escandaloso. O sorriso também era muito oferecido. Claramente tinha segundas intenções. Quando se inclinava, para mostrar os perfumes, via-se perfeitamente os portões do inferno.

      Valei-me “São” Jeremias, me atualize. Dê-me a ficha dessa senhora.

      Era nesse cenário que eu vivia e foi nele que um certo dia o “Seu” Jeremias me disse:

      – “Seu” Menino, eu tenho quatro “causos” para lhe contar. São “causos” verdadeiros. Três eu presenciei e um foi me contado por meu pai. O primeiro é de uma botija. Eu juro, eu fui ver e vi que era verdade. O segundo é de um lobisomem que assombrou a minha cidade quando eu era jovem. Esse aí eu cheguei perto e vi a cara dele. O terceiro é de uma pessoa que tinha uma loja de roupas, era muito sortida. Vendia roupas masculinas e femininas, para adultos e crianças. O que o povo não sabia era que algumas das peças tinham sido tiradas de cadáveres. Bem, e o último dos “causos” é de uma jovem que quase foi morta para alimentar a família. Essa foi salva por meu avô e foi na seca do final do século dezenove. Eu cheguei a conhecer a pessoa, já bem velhinha, morando na casa de um de meus doze tios.

      – Se prepare que qualquer dia desses eu conto para você. Hoje não dá mais, porque “logo, logo”, a luz vai apagar.

      Dito isso ele pegou a cadeira de vime em que estava sentado, e sem dizer uma palavra, entrou no hotel.

      Eu estava com uma lanterna no bolso e não me incomodei. Fiquei olhando o céu estrelado e me deliciando com o espetáculo oferecido pela Via Láctea. Então me indaguei se algum dia o homem seria capaz de chegar até as estrelas. Será que eu veria esse dia?

      O sono chegou e foi a minha vez de buscar o aconchego do lençol e do travesseiro. Nessa noite eu me recolhi matutando. O que será que o “Seu” Jeremias vai me contar?

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Paulo C Freire ESCRITO POR Paulo C Freire Escritor
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