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TER OU NÃO TER - Tchello d'Barros

TER OU NÃO TER
Tchello d’Barros

 
Entre os vivos, meu autor predileto é José Saramago. Já lia suas obras antes dele ter recebido o Prêmio Nobel de Literatura, no caso, o primeiro autor de nosso idioma a ser homenageado com essa honraria da academia escandinava.

Pois tive o privilégio de conhecer o escritor português pessoalmente, quando veio ao Brasil receber o título de Doutor Honoris Causa, da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis. De seu discurso, lembro de uma frase, que mais tarde encontrei em uma de suas obras:”O único progresso possível é o progresso moral, todo o resto é uma mera questão de acumular mais ou menos bens.” Eis aí um desafio e tanto neste terceiro milênio que já começou excessivamente consumista e exacerbadamente capitalista.

Talvez possamos considerar essa reflexão à luz de alguns exemplos extraídos do cotidiano. Há o caso de uma certa escola que foi visitada por dois poetas, que explicaram numa palestra diferenças estilísticas entre poesia visual, sonetos, haicais e outras formas fixas de poemas. Em certa altura da conferência, um aluno levantou a mão e com muita naturalidade, perguntou que tipo de poeta ganha mais dinheiro, se o dos poemas visuais ou o dos poemas mais convencionais.

Depois temos o caso daquela moça, que para sobreviver e sustentar o filhinho, fazia ponto numa esquina à noite. Um ator de teatro que se dirigia para a abertura de uma exposição de arte, ao passar por ela, estarrecido diante de exemplo vivo de mazela social, convidou-a para ir com ele ao evento, ver a vida sob outro prisma e quem sabe motivá-la a mudar sua realidade. Ela respondeu que não poderia ir, pois isso significaria perder algum freguês que talvez passasse por ali, portanto não valeria a pena arriscar e perder um tempo precioso.

Finalmente, lembro de uma moçoila, já balzaquiana, à procura de marido, dessas que tem bem claro quais atributos o pretendente deve ter. Ao ser apresentada para um artista desses que faz retratos na praça, no caso, um moço bem apessoado e muito culto, ela primeiro deu uma boa olhada no candidato, esboçou um sorriso um pouco nervoso e jogou todo seu destino em uma só frase, perguntando sem cerimônias, quanto ele ganhava com aquele tipo de trabalho...

São três recortes do dia-à-dia, anônimos, é verdade, mas são também sintomas de uma sociedade onde o ter está acima do ser. Uma escala de valores que privilegia a posse e a obtenção de capital. Uma sociedade onde a moeda de escambo é o ter, em detrimento dos valores éticos e da mais espiritualizada moralidade. O progresso moral é solapado pelo estímulo ao consumo, enquanto que a aquisição de bens materiais, a maioria desnecessários para se viver bem, têm sido uma meta em si, criando uma sociedade mais que consumista, verdadeiras vítimas da mídia e das necessidades impostas por um mercado de interesses obscuros e excusos.

Na contramão disso tudo temos a nota dissonante de Saramago, que nos avisa de um progresso possível, passível de uma mudança de nossas atitudes, que esperamos, não sejam tão passivas.

 

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