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130 CABEÇAS DE CRISTO EM TREZE TÍLIAS - Tchello d’Barros

130 CABEÇAS DE CRISTO EM TREZE TÍLIAS

Tchello d’Barros
 

 

Certas cidades são como certas mulheres, belas, encantadoras, mas sabem permanecer discretas, longe da fama, dos holofotes. Nesse nosso país continental, me pergunto se alguém no Piauí já ouviu falar da pequena notável Treze Tílias, escondida no oeste de Santa Catarina, essa unidade da federação conhecida como Mosaico Étnico, cujas cidades foram povoadas por imigrantes de tantos países. Mas não faz mal, a maioria dos catarinenses também ainda não conhece esse pedacinho da Áustria no Sul do Brasil.

 

 Pois ao se chegar na bucólica Treze Tílias, que recebe seu nome em função das Tílias, árvores cujas sementes os colonizadores austríacos trouxeram dos vales europeus, logo se tem a impressão de estar de fato num vale europeu, tamanho o impacto da arquitetura típica num viajante mais desavisado. Para quem não sabia que existe essa comunidade austríaca no Brasil, esse impacto se amplia ao se percorrer as ruas e ir aos poucos se familiarizando com uma cidade que parece de brinquedo, de tão bem cuidada, com jardins prodigiosos, floreiras nas janelas, e a simpática receptividade desse povo loiro e de olhos azuis.

 

É claro que não se entende uma palavra do que eles falam entre si, pois cultivam o idioma de origem, mas quando se está num de seus restaurantes típicos, eles explicam com a maior paciência, num português de sotaque muito carregado, de quê são compostos os pratos que aparecem nos cardápios com nomes praticamente impronunciáveis para nós tropicais tupiniquins. Menciono isso pois considero o quesito culinária/gastronomia parte importante do processo de se conhecer uma nova cultura, ainda mais em restaurantes onde se ouve as valsas de Strauss com a mesma naturalidade que se ouve Zezé di Camargo e Luciano em Goiânia ou Calypso em Belém do Pará.  

 

Após um demorado, indolente e relaxante banho nas águas termais, é hora de vestir roupa quente, com luvas, gorro de lã e cachecol, para caminhar pelas ruas e ficar boquiaberto com as fachadas arquitetônicas no estilo Enxaimel. Claro que não poderia deixar de visitar os inúmeros ateliês de artesanato em madeira, que tanto caracterizam a cidade. Já existe um pequeno fluxo de turistas que visita a pequena e escondida cidade dos artesãos que expressam nos entalhes detalhados, diversas figuras. A mais tocante sem dúvida é a reprodução das Edelweis, florezinhas brancas, que evocam o sentimento de saudades dos Alpes, que trazem uma nostalgia comovente à estes colonizadores, inclusive nas novas gerações, já nascidas no Brasil. Não se acha ali nenhum museu de arte moderna, contemporânea ou de vanguarda, que seja, mas pode-se encontrar mestres entalhadores, que trabalham grandes formatos, como um Don Quixote em tamanho natural, e encontram-se até mesmo gente que foi pra Europa estudar design para adaptar essa tradição para a produção de mobiliário com estilos inovadores.

 

Mas a peça preferida, ou mais produzida, são as cabeças de Cristo, cinzeladas diretamente no nó do Pinheiro, aquela árvore também conhecida como Araucária. Isso porque o nó, onde o galho do pinheiro sai do tronco, tem mais ou menos o tamanho de uma cabeça, então bastam uns entalhes aqui e ali e pronto, está feita mais uma cabeça, pra alegria dos turistas, que por uns trocados levam as tais cabeças pra suas casas. Haja cabeças! O problema é que os artesãos põem a própria cabeça numa espécie de imaginária linha de montagem, pois o entalhador faz todas elas parecidas, diria até mesmo iguais, não fosse a textura da madeira, que diferencia uma de outra. E mais grave, praticamente não se diferencia o trabalho de um artesão para outro. Sim, e elas ficavam em exposição nos ateliês, cada ateliê tem aí uma meia dúzia, dez, uma dúzia de cabeças. Quando passou de cem, parei de contar, não quis por em dúvida minha fé.

 

Colei num grupelho de turistas que foi visitando um por um esses ateliês e ao final da tarde a monotonia das cabeças já estava tornando o passeio um tanto enfadonho. Meu estômago já avisava que estava perto da hora de retornar para o hotel para um lauto café colonial, com todas aquelas iguarias. Mas, eis que estava aí ouvindo a explicação de uma senhora que, enquanto entalhava, contava que aprendeu o ofício de seu pai e este do pai dele, de forma que ela já está também ensinando ao filho, relato que sensibilizou os turistas. Nessa altura fui bisbilhotar um velho armário, com algumas peças entalhadas bem envelhecidas, que já estavam ali há muito tempo. Eram uns brinquedos de madeira, mas entre eles uma peça diferente de todas. Diferente de tudo. Tratava-se de um macaco sentado sobre uma pilha de livros, olhando fixamente para uma caveira humana, em sua mão direita. A mão esquerda no queixo. Esse macaco pensativo imediatamente me evocou a figura do Pensador, de Rodin, mas também Hamlet, em sua antológica cena com a caveira.

 

Arte pode ser a visão de mundo de um artista, filtrada por um tema escolhido, expresso mediante uma técnica específica com a função de causar uma reação no outro, preferencialmente uma emoção estética. Acho que aquela senhora não pensava em nada disso quando esculpiu essa curiosa figura de uns quinze centímetros de altura, pois quando interrompi a explicação dela aos turistas, para saber sobre a inquietante peça, ela comentou que ela à teria esculpido há muitos anos, mocinha, quando vinha ao ateliê de seu pai para aprender o ofício. Naquele dia ela tinha aprendido na escola que os humanos descendem dos macacos. Então nos contou que ficou perplexa com isso e ninguém soube lhe explicar porque uns evoluiram e outros não, pois permaneceram no estágio de mero macaco. Era mais ou menos isso que aquele chimpanzé estava se perguntando ao olhar tão inquisitivamente para a caveira humana em sua mão.

 

         Não quis me vender a peça por preço nenhum. Primeiro porque o "bonequinho" é hoje um brinquedinho de seu filho e também porque só lhe interessava ficar conhecida com os entalhes das tais cabeças. E continuou a fincar o cinzel em mais uma delas. Antes de sair dali, julguei ter notado uma das cabeças penduradas ter rapidamente piscado para mim. Mas hoje acho que foi apenas o reflexo do sol daquele fim de tarde, na idílica Treze Tílias.

 

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