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O Trem da Poesia - Tchello d'Barros

O Trem da Poesia

 

“Não há trem que eu não tomaria, não importa o lugar para onde vá.”

Edna St. Vincent Milay

 

 

Aí estamos nós, artistas de Blumenau, amantes da poesia, em plena praça do Biergartem, posando nesta foto para uma reportagem do Jornal de Santa Catarina, que contaria sobre nossa participação em uma edição no Congresso Brasileiro de Poesia, em Bento Gonçalves. Creio que seja 1.996 d. C., ano da graça de Nosso Senhor. A participação dos catarinenses deveu-se ao ator Antônio Leopolski, que era professor do NuTE – Núcleo de Teatro e Escola, no Teatro Carlos Gomes. Conheci-o quando interpretou alguns personagens na peça shakespeareana Macbeth, dirigida numa versão vanguardista e experimental pelo Alexandre Venera dos Santos.

 

Leopolski era também adepto do Teatro de Bonecos, e com seu Bando Neon, apresentava-se em diversos circuitos culturais com suas performances e intervenções. Para esse congresso convidou vários teatreiros para interpretar e declamar poemas de autores da cidade na programação daquela semana poética que ocorreria na serra gaúcha. Participaram ainda a cantora Nana Toledo e seu violão mágico, o artista visual Tadeu Bittencourt, com seus slides do projeto Projetando Poesia, a pintura performática do Alex também se fez presente, o jovem diretor de teatro Sílvio da Luz e ainda o poeta Marcelo Steil, que participaria declamando seus poemas. Este relator foi convidado também, para declamar poemas próprios e para realizar naquela cidade uma nova versão do Bombardeio Poético, intervenção urbana que realizei em Blumenau no dia do cinqüentenário das bombas atômicas. A ação constituiu-se em decolar num teco-teco no aeroporto Quero-quero - no caso, o mesmo monomotor do qual eu saltava de pára-quedas com o pessoal do Clube de Paraquedismo Vento Sul – e sobrevoar a cidade, despejando aviõezinhos de papel com meus poemas impressos. Para esta ação, convidei os poetas Dênnis Radünz e Marcelo Steil, que com seus respectivos poemas, ajudaram-me a bombardear Blumenau.

 

Depois de uma reunião com o poeta Lindolf Bell, que nos deu uma cópia do poema A Geração das Crianças Traídas, o qual lemos no evento posteriormente, lá se foi a animada trupe poética em direção ao Rio Grande do Sul, em ônibus “de linha” convencional, passando por Lages e depois trocando de carro em Caxias do Sul. Lá pelas sete da matina, chegávamos na rodoviária de Bento Gonçalves, onde para nossa surpresa, fomos recebidos pelo poeta Pedro Fontoura, declamador de poesia gauchesca, sendo que já foi nos saudando com uns versos improvisados e umas cuias quentes do mais tradicional chimarrão, antes de nos encaminhar ao alojamento.

 

Foi uma ótima semana de atividades literárias e artísticas, com vasta programação cultural, onde todos participamos com muitas declamações, leituras e performances nos vários espaços onde se realizavam os eventos, especialmente nas escolas e espaços culturais. É claro que “os catarinas”, como os gaudérios nos chamavam, fizeram bonito, participaram com entusiasmo das atividades e representaram muito bem nosso Estado barriga-verde. O evento era também um festival de sotaques, pois estavam lá poetas de diversos Estados e alguns de outros países, como França, Itália, Portugal, Cuba, Argentina e Uruguai. Como na época eu já expunha em Blumenau uma parte de minha incipiente produção em Poesia Visual, foi para mim uma alegria conhecer no evento dois ícones dessa modalidade de expressão poética experimental, o uruguaio Clemente Padin e o português Fernando Aguiar, com os quais mantenho correspondência até hoje. E por falar em Poesia Visual, não poderia faltar por lá o maior conhecedor do assunto no Brasil, o mineiro Hugo Pontes, que na ocasião realizava a curadoria de uma mostra internacional de poemas visuais. Lá eu conheceria ainda o escritor viajante Aírton Ortiz, que escreve livros com relatos de suas aventuras mundo afora. É o autor de Passagem para a índia, onde relata suas aventuras pelo país de Gandhi, viajando exclusivamente em trens.

 

Tudo corria muito bem, quando na sexta-feira, penúltimo dia, o poeta Ademir Bacca, coordenador do congresso, me disse que seria impossível realizar o Bombardeio Poético na manhã seguinte, como estava previsto, pois os técnicos do aeroporto da região informaram que um fenômeno climático caracterizado por nuvens baixas impediria que o avião fizesse o percurso combinado. Normalmente uma notícia dessas nos deixaria de baixo-astral, no entanto, depois de uma semanada de poesia, de confraternização com poetas dos mais variados naipes, de autênticas vivências culturais, nada poderia abalar a moral. Mas o fato é que lá estava eu com um saco repleto de poemas impressos. Sim, a poesia às vezes enche o saco! O fato é que na manhã seguinte, em pleno sábado, com a cidade movimentada, com eventos cívicos na praça da prefeitura, o Tadeu Bittencourt e eu fomos escalados para dar uma entrevista numa rádio, na rua central, sendo que o estúdio ficava no último andar do prédio. Entrevista dada, contamos depois aos radialistas que naquele horário deveria estar acontecendo o tal bombardeio, quando o Tadeu, com sua experiência de marinheiro, percebeu na janela que a direção do vento dava para a praça da prefeitura onde aconteciam os desfiles e havia uma multidão na rua. Então o pessoal da rádio liberou para que fôssemos ao teto do prédio e de lá fomos soltando os poemas, que ao sabor do minuano, chegavam até o povo na rua central. De início pensavam tratar-se de panfletos políticos, no entanto, ato seguinte havia mesmo uns grupos que disputavam os poemas que lhes vinham chegando pelo ar.

 

Bem, essa intervenção não foi assim aquele bombardeio todo, como previsto no projeto original, entretanto, de uma maneira improvisada e meio que subversiva até, fizemos com que a poesia chegasse até as pessoas. A atividade causou um certo burburinho, o que chamou a atenção de uma equipe da TV Futura que estava na cidade, e por conta disso acabei sendo convidado para a gravação de uma matéria onde três poetas brasileiros e três estranjeiros fariam declamações de poemas aos passageiros do trem Maria Fumaça, um dos mais tradicionais passeios turísticos de Bento Gonçalves. Como ainda havia muitos poemas impressos, tratei de levá-los também, e assim que a Maria Fumaça se pôs em marcha, tratamos de invadir cada vagão, onde cada um dos cerca de quatrocentos turistas recebeu em mãos um poema de meu livro Olho Nu ou do recém lançado Palavrório. Como nesse trajeto estavam programadas algumas atrações da cultura gauchesca dentro dos vagões, os passageiros pensavam que os tais poemas estavam inseridos nessa programação, onde acabei fazendo papel de gaúcho, sem querer, um gaudério de araque, sem sotaque nem bombacha, ainda que neto do maestro gaúcho Frederico Klein. De qualquer forma, a panfletagem literária serviu de preparação para o que viria a seguir. O grupo entrava em cada vagão e após uma breve apresentação iniciava-se um sarau de poesia, onde os poetas se revezavam nas declamações. Ao final de cada vagão, nos despedia-mos sob aplausos acalorados e muitos agradecimentos.

 

Ao final de nossas tertúlias improvisadas, depois de gravações e entrevistas, ficamos no último vagão, em assentos reservados para nós e seguimos viagem, agora na condição de passageiros normais, digamos assim, no famoso Trem do Vinho, como também é conhecido. Nos vinte e três km do trajeto, passamos por diversas estações, que eram paradas estratégicas, onde os passageiros desciam para degustar produtos da culinária regional como queijos e salames, sempre bebericando vinhos e espumantes. Interessante que à cada estação o povo estava mais alegre! Numa delas houve apresentação de um grupo de jovens senhoritas, com trajes típicos italianos, que dançaram uma coreografia da cultura de seus antepassados colonizadores, uma simpática forma de preservar as tradições locais, assim como existem os grupos folclóricos alemães, em Blumenau. Noutra estação, entre um e outro copo de cabernet, descobrimos uma fonte dos desejos, dessas em que se faz um pedido e, à maneira da Fontana Di Trevi, em Roma, joga-se por sobre o ombro uma moeda. Voltar ali foi o desejo pedido, que num futuro não muito distante, foi plenamente atendido. E seguimos viagem, passando pelos arredores das cidades de Carlos Barbosa e Garibaldi, apreciando as belezas dos pampas, com seus verdes cor de erva-mate, capões e pradarias do Vale dos Vinhedos, como é conhecida a região.

 

Mas as apresentações culturais não aconteciam apenas nas estações. Dentro dos vagões, em pleno movimento, a cada rodada de vinho, diversos artistas apresentavam-se. Havia desde músicos apresentando a típica canção nativista até poetas declamadores dali da região, que improvisavam no ato suas sextilhas rimadas, semelhantes aos repentistas nordestinos. Havia também um esquete com teatro de comédia e mais tarde um grupo de dança de Tarantela, onde os dançarinos após uma demonstração, convidavam os passageiros para dançar com eles. A moça que me tirou para dançar era tão linda, mas tão linda, que cheguei a pensar mais tarde que fosse a Giselle Bündchen antes de ficar famosa. Depois descobri que a übermodel vivia em outra cidade.

 

Agora degustando uma taça de chardonnay, contemplava o céu azul daquelas querências, no agradável e leve sacolejo ritmado da Maria Fumaça. Estava nesses devaneios quando lembrei que não cheguei a viajar no trem de Blumenau. Mas não era exatamente a primeira vez que andava de trem, quando criancinha teria viajado no trajeto de Piratuba à Marcelino Ramos, percurso que hoje também existe nos mesmos moldes turísticos do trem em que me encontrava. E também havia percorrido pequenos trechos nos arredores de Lages, numa locomotiva da RFFSA, um trem militar do 1º Batalhão Ferroviário de Engenharia Militar, onde prestei o serviço militar na condição de voluntário. E o que o soldado 884 do sexto pelotão estava fazendo ali? Ora, descarregando os vagões com as sacas de cimento, onde cada uma pesava cinquenta quilos! Bah, prefiro o romantismo do trem da serra gaúcha, tchê!

 

Enfim, a última parada foi na fábrica Tramontina, onde os turistas desceram para visitar o show-room da tradicional empresa. Optei por ficar no vagão, curtindo os efeitos da equação poético-etílica, quando para minha surpresa, as moçoilas da apresentação de dança, pensando não haver ninguém nos vagões, foram para o outro lado do trem, e com seus vestidos de trajes típicos, na maior farra, dançavam um animado Can-can! Mais tarde lembraria com nostalgia dessa Maria Fumaça. Foi no trajeto do Canal da Mancha, a bordo do ultra moderno Eurostar, onde sob uma velocidade de 150 km/h em poucas horas se faz o trajeto Londres-Paris. Na ocasião, uma funcionária tentava me vender um suco de laranja no vagão claustrofóbico, abaixo do nível do mar. Naquele momento trocaria toda aquela modernidade européia pelo romantismo nostálgico, o bom vinho, os poetas e o sorriso de uma musa naquele dia distante, no trem da poesia.

 

 

 

 

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