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A cor da loucura

A COR DA LOUCURA

 

 

POR: Fábio dos Santos

 

Estava se sentindo perseguido o pobre Bombom, como era conhecido por todos. Bicho desconfiado que era, parece que nascera assim. Quando ia fazer alguma coisa olhava tudo em volta, os olhinhos miúdos mas atentos contra possíveis suspeitos. Ele sabia que o mundo vivia rodeado de espiões. Mesmo que fosse ao banheiro tirar a água do joelho, não se descuidava facilmente, era um soldado, e com toda cautela verificava por trás de cada porta. Se houvesse espelho no banheiro, encarava-o sisudamente como quem dissesse “aí tem, saia logo detrás, cabra, que estou lhe vendo!” Era mesmo prevenido esse Bombom. Conhecia todo tipo de escutas, tecnologias de espionagens e até componentes avançados de computador. Como um cão farejador procurava com o olho atento, a orelha de pé e o faro apurado, por todos os cantos, debaixo dos vasos sanitários, por trás da caixa d’água, sobre os chuveiros, sob as pias e, não obtendo êxito resmungava: “ora, ora aí tem, saia antes que lhe pegue, cabra, que estou lhe vendo!”

Um fato imprescindível em Bombom era a sua eficiente memória. Na roda de amigos, os poucos que ainda lhe toleravam a mania de perseguição, era capaz de recontar todo o enredo dos principais filmes e seriados que mais gostava. Profissão: Perigo, por exemplo, não perdera sequer um episódio, pois a inventividade da qual lhe era característico adquirira ali, defronte à TV, os olhinhos pregados na tela. Sem falar nos capítulos de 007, pois assistira a todos, sem um pingo de sono. O pobre Bombom só não era bom em decorar nomes. Veja a alcunha que lhe deram, quando chegara por aqui, desnorteado sem saber quem ele próprio era e como se chamava, por ser bom contador de estórias, o apelidaram de Bombom. No começo ele não gostara, parecia coisa de boiola, mas depois foi se agradando, se agradando e como tal passara a ser conhecido.

Nos últimos dias o coitado parecia um pouco mais azoretado que de costumo. Antes de deitar-se ficava horas e horas escarafunchando o próprio quarto, cismado de algum golpe de traição ou coisa parecia. Caçava por mais de duas vezes por debaixo da cama, por trás das cortinas e do guarda-roupa, por sob a escrivaninha onde comumente escrevia seus relatórios diários, e até por debaixo do próprio lençol, em busca nem que fosse de algum intruso disfarçado de escorpião ou barata. Outra noite, uma aranha de canto de parede invadira o seu mundo. Coitadinha, fora esmagada pela chinela do Bombom.

E não encontrando mais nada do que reclamar, cismava quando apagavam as luzes e tudo ficava sob um inquietante breu. Bombom não conseguia pregar o olho, como ele iria avistar o provável impostor, caso este se decidisse invadir seu quartel general? “Aí tem, aí tem, acende essa luz, não tem coragem de me enfrentar às claras!” exclamava decidido e firme. Mas ninguém acendia luz nenhuma e nem invadia quarto nenhum.

De manhã, com aquele par de olhinhos miúdos e penetrantes, avermelhados e inchados de passarem à noite insones, olhava o teto em busca de alguma sombra perigosa, mesmo só pressentindo os tímidos raios de sol através da janela, era quando alguém lhe batia costumeiramente à porta e com voz cavernosa e cuspida:

“Está na hora do banho, Bombom! Deixa de frescura e sai logo desse quarto.”

Eram os técnicos disciplinadores que, exatamente às seis da manhã, acordavam os pacientes para o rotineiro banho matinal. Bombom vestia-se devagar analisando cada peça de roupa. Vai que alguém lhe tenha enfiado uma peçonha nos bolsos e bastava uma única picada mortal e, pronto, empacotaram o Bombom – pensava ele, paranóico.

Depois do banho, o café ruidoso e agitado no refeitório, onde cento e tantos outros pacientes também faziam o mesmo. Calmamente, Bombom aguardava que os outros terminassem primeiro que ele e esperava cerca de quinze minutos e caso ninguém dentro desse tempo estimado não passasse mal, ele podia alimentar-se tranquilamente. Tinha toda a cautela para não ser envenenado. Aliás, fora treinado para isso. Era o momento ideal para reclamar das coisas erradas daquele lugar.

“Ô da beca branca” – vociferava ele para um dos técnicos disciplinadores – “vê se captura o dragão dos olhos de fogo que me espreita e toda noite me perturba. Estou cansado de perder o sono. Onde já se viu!”

A maioria dos clínicos daquele lugar sabia que era a hora da medicação quando um paciente se exaltava sem motivo. Um deles se aproximou do Bombom:

“Tá na hora do medicamento, rapaz.” – ordenou ele, o olhar de ameaça.

“Esses azuis eu não quero” – reclamava o Bombom, sem erguer a fronte.

“Por quê?”

“Eles me fazem ver cavalos de fogo. E também não tomo mais os verdes. Estes me tiram o sono e ainda entopem o quarto de dragões feios.”

“Mas de que forma pretende melhorar, Bombom? Tome os vermelhos, então.”

“Também não posso. Eles criam dentro da minha cabeça um monte de homenzinhos que mais se parecem com cobras e ratos. Não quero morrer envenenado nem de má fama.”

“Mas dessa maneira vai acabar amaluquecendo. O que vai ser, então?” – insistia o clínico.

“Quero os comprimidos pretinhos. Estes me fazem dormir à beça. Peraí que me lembrei de que não posso dormir, tenho medo de ser assassinado à covardia. Já imaginou a vergonha de amanhecer morto somente de cuecas?”

“Falando sozinho de novo, Bombom?” – era a voz firme do Dr. Maneca Gado, diretor e psiquiatra do manicômio. Este era o único a quem Bombom obedecia e respeitava, por quais razões somente a loucura é capaz de responder.

Bombom engolia todas as pílulas e comprimidos, com toda a desconfiança do mundo, mesmo sabendo que por trás de cada cor estava um olho lhe vigiando. E todos os olhos que lhe espiavam estavam dentro dele, perscrutando cada entranha, vendo cada detalhe de sua estrutura óssea. Depois da overdose de medicamentos era só viajar na maionese.

“Você precisa se livrar desses caras que lhe espionam, Bombom” – aconselhava o colega de loucura. “Toda vez que você inventa esses personagens, parece que emerge um fantasma da tumba. Cansei dessas suas histórias, desse jeito você acaba me confundindo a cuca. Olha, você quer mesmo sair desse hospício, para viver em sociedade, poder andar nas ruas e de roda gigante e tomar banho de mar?”

“Quero. Quero sim” – respondia Bombom alucinado.

“Pois não inventa mais isso que já estou ficando com medo”.

Pois estava aí uma coisa que Bombom desconhecia a cor da voz que o perseguia. E se conhecesse o seu dono, talvez, desconfiasse dela:

“Aí tem, aí tem...”    

( escrito em março de 2010 )

 

 

     

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Fábio dos Santos ESCRITO POR Fábio dos Santos Escritor
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