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"O PAPAGAIO" (Adaptação de 'O Corvo', de Poe) - Cordel de Tchello d'Barros

"O PAPAGAIO"  (Adaptação de 'O Corvo', de Poe)

Tchello d'Barros  

 

 

Leonora é o meu nome

Sofro um mal que me consome

Porque um dia amei demais

Depois que ele partiu

Minha alma se feriu

E não sara nunca mais

 

Nesse desgosto profundo

Para esquecer do mundo

E aliviar minha dor

Venho à praia deserta

E com a ferida aberta

Tento esquecer esse ardor

 

"O Corvo" é o poema

Que estou lendo e esse tema

Me é esclarecedor

Pois fala de uma paixão

Como a do meu coração

Padeço deste temor

 

Meio-dia e sol a pino

Amargando meu destino

Num dezembro abrasador

Meu rosto recebe o vento

Como se fosse um alento

Nua ao sol sou só suor

 

O sol reflete nas águas

Vai queimando minhas mágoas

E eu passo um bronzeador

A rede no coqueiral

Nessa praia tropical

Vai melhorar meu humor

 

De repente ouço um ruído

Será gente ou o cupido

Que causou esse rumor

Olho por trás das folhagens

Nada vi nessas ramagens

Não achei o causador

 

Só um silêncio total

E ninguém vi afinal

Nessa tarde de calor

Pra quebrar a quietude

Gritei alto quanto pude

O nome do meu amor

 

Ouço o eco pelo mar

Cujas ondas vem beijar

Areias de branca cor

E ouvindo o marulho

De repente outro barulho

Me causa agora um pavor

 

Pode ser um animal

Ou gente bem imoral

Que momento assustador

Eu disse é melhor parar

Pode se apresentar

Seja lá quem você for

 

Não apareceu ninguém

Pra rede voltei também

E li o texto do autor

Depois meio cochilando

Estava quase sonhando

Mas vi um vulto voador

 

E rápido como um raio

Vi pousar um papagaio

Num totem aterrador

Carranca de artesanato

Feita de xaxim do mato

Pelas mãos de um escultor

 

De onde terá surgido

Pássaro tão colorido

Senti um certo estupor

Pois era a natureza

Mostrando sua beleza

Que momento encantador

 

E ficou ali me olhando

Eu na rede balançando

Na sombra dos coqueirais

Só pra ver se ele some

Eu perguntei o seu nome

E ele disse: _Não, jamais!

 

Me espantei nessa hora

Pois respondeu sem demora

Com gestos tão cordiais

Nunca tinha visto isso

Parecia um feitiço

Desses bem originais

 

Devia ter escapado

De algum dono descuidado

Quem sabe de que locais

E uma frase decorada

Na memória gravada

Com palavras sempre iguais

 

Parecia estar sabendo

Deste mal me corroendo

Com dores sentimentais

Perguntei-lhe se um dia

Também me abandonaria

E respondeu: _Não, jamais!

 

Eu senti um calafrio

Quando a ave repetiu

Com olhos angelicais

Uma resposta correta

Parecia um profeta

Dos seres elementais

 

Mostrou me compreender

Como se fôssemos ser

Amigos muito leais

Na resposta que me dera

Da pergunta tão sincera

Quando disse: _Não, jamais!

 

E assim estremecida

Fiquei na rede estendida

Com calores infernais

E o pássaro me olhando

Como se adivinhando

Os motivos dos meus ais

 

Eu nessa melancolia

Tentei ver se entendia

Tais enigmas astrais

Pois isso não é comum

Não se dá com qualquer um

Neste mundo dos mortais

 

E parei de perguntar

Pra ver se ele ía falar

Outras coisas de valor

Mas o animal alado

Ficou quieto e calado

Vendo meu interior

 

Então naquela altura

Ele sobre a escultura

Com olhar acusador

Seus olhos em mim fixava

E perguntas esperava

Num jeito provocador

 

E nessa hora parada

A brisa inesperada

De um vento acalentador

Incensou o ar de odores

Eram perfumes de flores

Senti na pele um rubor

 

Perguntei ainda pasma

Se algum anjo ou fantasma

Seres espirituais

Tramaram em lhe enviar

Só para me consolar

Disse a ave: _Não, jamais!

 

Mas pelo amor de Deus!

Diriam até os ateus

Invocando o Criador

A ave ao me responder

Pareceu sentir prazer

Ô bicho caçoador!

 

E eu já sem duvidar

Tornei a lhe perguntar

De minhas dores fatais

Se um remédio acharia

Pra sarar minha agonia

E repetiu: _Não, jamais!

 

Mas que bicho mais danado!

Meu coração disparado

E no corpo um tremor

Persistiu em me encarar

Decidido a provocar

Mais sofrimento e dor

 

Quis saber se eu veria

Meu amado algum dia

Ao menos uma vez mais

Em sonho ou no paraíso

Ou no dia do juízo

Disse apenas: _Não, jamais!

 

Ave Maria santíssima!

Ave cheia de malícia!

És um caluniador!

Volta para o mato adentro

Pare de causar tormento

Neste peito sofredor

 

Da rede me levantei

Chorando quase gritei

Você já falou demais!

Sobre meu pobre destino

Minha vida eu mesmo assino

Ele avisou: _Não, jamais!

 

Mas ele não obedece

Da carranca ele não desce

E apesar de meu rancor

No totem permaneceu

E o sofrimento meu

Era um amargo sabor

 

E sua sombra profana

Na areia se derrama

Em desenhos surreais

E meu corpo entra no mar

Pra lágrimas derramar

E não sofrer nunca mais

 

 

 

 

 

www.tchello.art.br
[email protected]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Notas:

 

1) Essa é uma adaptação livre do poema mais lido da história da Literatura. Não é uma tradução, ou 'transcriação', embora tenham sido consultadas as traduções disponíveis (Fernando Pessoa e Machado de Assis) e os originais em inglês e ainda a rica versão em francês, na célebre tradução de Baudelaire.

 

2) Trata-se apenas de uma transposição da cena, um decalque, para nosso cenário tropical,

onde a personagem mencionada no original, é desta vez a protagonista, quase uma reencarnação. Pieguices à parte, aquela 'dor' por não se ver mais quem se ama, seja por morte ou por abandono, acontece ainda hoje, todos os dias em todos os lugares. É uma dor contemporânea.

 

3) Foi escolhida uma métrica da literatura popular, dos versos da poesia de cordel, com

heptassílabos em sextilhas do esquema AABCCB, onde as duas rimas principais, que percorrem todo o poema, são a terminada em "or", do bordão inglês never more e a terminada em "ais", das versões em português para o bordão "nunca mais".

 

4) Aos puristas, aquele abraço!

 

 

 

 

 

 

 

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