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A menininha serelepe: com um parafuso a mais!

Era apenas uma menininha serelepe, de olhos pretos e vivazes. Imersa em seus devaneios pueris, estava ela sentada à porta de uma das residências vizinhas à sua simplória casinha de número 285. Distraía-se com os transeuntes que driblavam as crateras abertas para o saneamento da rua? Ou projetaria um sofá com caixa de fósforos para a sua bonequinha de plástico repousar? Talvez estivesse a cogitar uma nova travessura que pudesse transpor às limitações do seu ir e vir impostas pela companhia de saneamento que esburacara, além da rua, toda a extensão do comprido corredor de sua modesta casinha. E, nesse ínterim, estava ela a fazer circular, gostoso e avidamente, um parafuso em sua boquinha semi-banguela, achado sabe-se lá onde – quiçá ainda houvesse alguns resquícios da “fase oral” – será?! É isso mesmo: UM PARAFUSO! Estaria este estranho objeto a parodiar a função de um pirulito de laranja?

A casa em que morava era conjugada com outras e não tinha muro na frente, a guisa das residências daquele bairro de classe média-baixa. Continha uma pequena sala de visita, que se ligava à sala de jantar, à cozinha e a um pequeníssimo banheiro, aos fundos, através desse comprido corredor onde se acomodavam dois quartos, do lado direito, sendo que o primeiro era ocupado pelos pais e o segundo, por si e pelo irmão do meio. A mobília era o indispensável às necessidades mínimas da família, decerto adquirida, em grande parte, de segunda-mão. Para a menininha, o auge dessa parca mobília, era a eletrola telefunken, porquanto fazia soar suas músicas prediletas, sendo a mais marcante uma das reproduzidas por The Fevers: “Você bem sabe/que não lhe prometi o mar de rosas/nem sempre o sol brilha...”. Por pouco a agulha da eletrola não furou o vinil, de tanto que tocava essa música!

A menininha, com cerca de seis anos de idade, à época, era a primogênita de uma família de três filhos. Aliás, seu mais novo irmão acabara de nascer e, por isso, demandava farto tempo e atenção de sua jovem genitora.  Ademais, o bebê branquelinho e careca nascera de parto “cesariana”, donde se infere que alguns cuidados, físicos e emocionais, seriam requisitos para o pronto restabelecimento da mãe. Disso a menininha não entendia e, destarte, não imunizava essa mãe das suas grandes brejeirices! Afinal, na menininha, o lúdico já se plantara com as sementes da aventura. Destaque-se que seu irmãozinho era de fato extremamente branco. Manter-se nessa afirmação rende-lhe, até os dias atuais, a alcunha de “filhote de urubu”, eis que sua grande exposição ao sol dissipou-lhe todo o resquício da pele branca com que nascera, o que ele teima em querer tentar provar através da cor do seu bumbum.

A vinda desse irmãozinho não fora programada pelos pais. Mas o seu nascimento fez com que a espevitada menininha pudesse expressar a face maternal latente na quase totalidade das mulheres e transparente desde a mais tenra idade, seja no acalento das bonecas, nas “paneladas” ou nas brincadeiras de “papai e mamãe”. Respondia-lhe aos balbucios, também, com voz de bebê e, no momento oportuno, ajudara-lhe nos seus primeiros passinhos, entrecortados de numerosas quedas – é claro! Não se olvide que até seu nome, fora ela quem o escolhera, após votação democrática iniciada por uma de suas tias, ainda na maternidade.

Sua singela casa vivia, então, em profusa turbulência: choro, preparo de mamadeiras, troca e lavagem de fraudas (e de pano!), além, é óbvio, dos naturais entreveros entre essa traquina menininha e seu irmão do meio... Tudo isso e muito mais era submetido imperativamente à administração de sua mãe. O fardo era enorme e o tempo indolente.

O parafuso que rodopiava na boca da menininha escapulira, então, goela abaixo. Aliás, antes essa passagem tivesse sido sem escala. Mas não foi! A sensação era de sufocamento e de morte iminente, porquanto o instrumento perfurante, indubitavelmente alheio àquela utilidade, ficara-lhe preso na garganta tempo suficiente para que a menininha chegasse à sua casa, irrompesse no quarto de seus pais e provocasse pânico em sua mãe, que, naquela ocasião, docemente aplicava tampinhas nas costas do seu irmãozinho a fim de que este regurgitasse mais facilmente após a ingestão do gogó. Sem entender o sucedido, a mãezinha implorava: pelo amor de Deus, minha filha! O que lhe aconteceu, minha bonequinha? O que você aprontou dessa vez? O que faço com essa menina, meu Deus! Hum, hum, huuumm! Aahhh! Com árduo custo, a menininha deglutira o parafuso e fora capaz de lhe narrar o ocorrido, não, sem receio de receber uma reprimenda pelo malfeito.

Nada, porém, poderia fazer a desarvorada mãe naquelas circunstâncias, senão rogar ao Bom Deus que o intruso parafuso tivesse destino certo no pinico (urinol é mais bonito!) sem, no entanto, provocar danos maiores aos frágeis órgãos internos ou, nem ousava pensar, que sua menininha se transformasse em anjo. Não havia telefone em casa, o pai estava ausente, não havia com quem deixar seu irmão ou sequer atravessar a rua em busca de um taxi na principal, face às prefaladas crateras dispostas na rua.

A mãe aflita e ávida da graça de Deus, em obséquio à sua tranqüilidade, rotineiramente rogava que a menininha examinasse o piniquinho, visto que não estaria presente em todas as sessões de “descarrego”. A menininha, por sua vez, cheia de nojos e pudores, desde então – quem a conhecesse disso não duvida - não se prestara a fazer um mais acurado exame nos seus excrementos diários. Inexoravelmente, chega-se a inusitada conclusão: a menininha serelepe produziu mais peraltices, cresceu, adolesceu – mais outras traquinagens - casou, perpetuou – filhos à sua semelhança, NÃO!... Quase madura está, mas sempre a viver com UM PARAFUSO A MAIS!

Simone Moura e Mendes

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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
Maceió - AL

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