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As caras e bocas de uma criativa penetra

Detentora dos mais diversos matizes. Um ser singular com desenvoltura plural, visto que exerce, notadamente, com incomum afinco, os misteres de mãe, esposa, servidora pública, estudante de jornalismo, dona de casa... É cronista, nos instantes mortos de seus dias elásticos, que os ressuscita com indizíveis perorações de um espírito sublime, impoluto, tocado pela essência divina. Diz-se feminista, mas somente até a hora da sopa.

Cultora da poesia, das artes plásticas, da música, da dança... Regateia com o esposo e os filhos raríssimos momentos de liberdade para presentear-se com a assistência de apresentações artísticas, quando sua cidade lhe oportuniza. Esposa vinculada ao imperativo atribuído à mulher de César - que não somente deveria ser, mas também parecer ser honesta – encontra em seu filho uma prazerosa companhia, um poderoso álibi para seus deleites culturais, uma vez que o marido aprecia gostos diversos, como, por exemplo, o de procurar o claustro onde cria encantadoras esculturas em madeira.

Naquela noite, carregaria insuperável frustração, caso não aceitasse o convite de sua cunhada para um evento musical no Teatro Gustavo Leite. Não poderia, contudo, dispor da companhia do filho, que se reservara aos jogos de vídeo-game com os coleguinhas de sua idade. Em consideração ao arrimo da cunhada, não encontrara qualquer óbice na manutenção do decoro, com o que não se lhe opunha o marido. Suspirava ao imaginar a majestática noite de músicas, à altura de sua erudição.

Sossegado no maleiro, dormia o seu traje de festa, à guisa dos que punha somente em ocasiões merecedoras da honra de uma presença marcante, diferenciada, em completa dissonância com a trivialidade dos seus hábitos cotidianos. Compunha-se de uma calça pantalona, apta a exclamar todo o seu it; uma blusa de elegante corte ornada de paetês; perfume francês, a competir, vitoriosamente, com o cheiro da naftalina, sistematicamente renovada desde os anos 90; adornos feminilizantes a espargir a elegância de dama da noite; maquiagem a realçar a efervescente ansiedade de não ser meramente uma presença incógnita.

O inexorável escoar das horas não lhe permitira encontrar a cunhada no local combinado, que, por essa razão, lhe deixaria os convites com a atendente do consultório onde clinica. A falha de comunicação com o porteiro do prédio destituiu-lha da posse do convite, privilegiado a apenas destacadíssimas personalidades da sociedade maceioense. Como, então, acessaria o pretendido recinto? Todo o seu substancial investimento na aparência não ficaria em vão – decidira, com o vigor de dar consecução ao alentado desiderato. Rumara, portanto, ao teatro. Ao chegar à porta, jogando um charme singularizado por caras e bocas, dissera ao porteiro, sem qualquer pudor, que estava sem convite, mas esperaria estoicamente até que alguma alma generosa auscultasse seus anseios e a convidasse a adentrar no auditório. O porteiro, por sua vez, não preparado para lidar com tanta resolução, respondeu-lhe, galantemente, que jamais vira uma penetra tão criativa e que, por tal razão, seu acesso estava devidamente autorizado.

Exuberantemente, descera a escadaria do teatro, sem furtar sua aparição de quem quer que fosse da seleta platéia. Empavonado o seu corpo com distinguidas vestes, alimentaria seu espírito com a arte dos seres de emanações divinas.

Simone Moura e Mendes

( www.simonemouramendes.com )

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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
Maceió - AL

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Comentários

Nádia Dias
Nádia Dias

Muito interessante! Gostei. um abraço.