Tema Acessibilidade

Natal à tripa forra

Na casa escura em que nascera não se comemorava natal. Não por questões religiosas, mas por questões econômicas; o pai era um sovina registrado, achava besteira comemorar o aniversário de quem ele nem sabia se tinha nascido mesmo e naquele dia. Do mesmo modo que não gastava com roupas, da mesma maneira que já avisara que acabando o grupo escolar gratuito, nem sonhasse com escola paga.

Para manter as aparências, iam à missa do galo e só. Sendo comerciante a freguesia (naquele então não havia clientes, mas fregueses) tinham que pensar que era religioso e crente no nascimento do menino-Deus. Mas a volta para casa era triste, muito triste.

A mãe calada para sempre ao casar com aquele homem sem coração, não tugia nem mugia. Ela, menina, era para ser vista, não ouvida e ele, o grande falador, a indignar-se com os gastos das pessoas, suas roupas novas, suas ceias que via pelas janelas, nunca fechadas naqueles tempos tranquilos:

- Olha só o Severino de Luzia. Tá com uma continha pendurada lá na venda, mas taí todo prosa de sapato novo. Veja só dona Margarida, fazendo festa, mas semana passada reclamou do preço do feijão. Que enxirimento da Dalvinha, toda prosa de vestido novo, mas o pai só trabalha quando quer.

Por mais que ela fizesse força para não ouvir, ouvia. Por mais que ela se mostrasse indiferente, ardia-se em indignação. Naquele ano, especialmente, uma pessoa cruel havia dito na sua cara.

- Teu pai é a pessoa mais sumítica que eu já vi! Vai morrer de boca aberta, o desgraçado. Sovina, cruel e miserável.

Como de costume ficara calada, mas no fundo se dua alminha, o prazer daquelas pelavras eram confeitos que derretiam doces. Passou a aodrar em silêncio aquela criatura que verbalizara o que ela não poderia.

Mas, os anos passam, e os sovinas não podiam ecomonizar a vida, morriam, como todos os outros, por perdulários que fossem.

Aos quatroze anos assumiu a venda, depois que o sumítico, que havia deixado a mãe inutilizada pela opressão, morreu num ataque de fúria, por causa de um bendito ladrão que entrara na calada da noite e fizera um considerável roubo de mercadorias da venda.

Prosperou, cresceu, expandiu-se. Casou com um tímido rapaz que ficaria calado se ela não o exortasse a falar. Em sua casa o natal é comemorado à tripa forra, com direito a convidado de fora, vizinho e mais. Vingou-se e todo ano, deixa sobre a cova do sumítico, um prato de ceia - costume já criticado por padres, pastores e espíritas, mas que ela não resiste - só para saber que ele - o sumítico, cruel e miserável - mesmo havendo, conforme predito, morrido de boca aberta, jamais poderia comê-lo.

Copyright © 2010. Todos os direitos reservados ao autor. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.
0
1 mil visualizações •
Denuncie conteúdo abusivo
Nádia Dias ESCRITO POR Nádia Dias Artista
Maceió - AL

Membro desde Setembro de 2009

Comentários