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Das coisas óbvias

Quando o telefone tocou Luciana pulou. Não para atender, como seria óbvio, mas por que o telefone a colocava num estado de nervos difícil.

Ai! cada vez que ele tocava, ela sabia que não escutaria a voz que amava. A voz forte e serena de Lucas. Em vez disso sabia, é óbvio, que não era ele, que implorava sua volta, que suplicava por uma palavra sua.

Os nervos embolados de Luciana precisavam do pente da voz neutra e sem graça do marido para se desembaraçarem. Não por que o amasse, como seria óbvio, mas justamente por que não o amou nunca.

O tempo da escolha já se havia passado e ela, como seria óbvio, não havia escolhido o homem que amava, mas aquele outro, presença neutra em sua vida, sem mais expressão do que os móveis de cozinha, que escolhera indiferentemente, já que não pretendia passar pela cozinha a não ser para dar ordens displicentes à empregada.

Fora fácil escolher o que não queria, o que não tinha importância, o que não interessava. Por razões óbvias.

Quando conhecera Lucas, o homem que amava com uma paixão tão louca e desumana, por quem seria capaz de matar, de morrer e se degradar até a mais baixa condição, Luciana sentira o perigo iminente daquela paixão.

Como era que podia acontecer com ela um vôo cego assim? Logo ela, uma criatura tão pé no chão, tão “realista” dizia a mãe ao referir-se a ela, usando o termo realista como o mais triste dos defeitos humanos.

-         Luciana é uma pessoa tão realista, coitada!

Quando o viu pela primeira vez, sentira um frio no estômago e uma pontada no coração. Quando ele lhe sorrira foi como se o chão lhe fugisse dos pés e ela soube que, por aquele sorriso, ela iria até onde ser humano algum ainda fora.

E ele se chamava Lucas, o nome que queria para seu filho, quando o parisse, e que havia escolhido desde a adolescência. E ele era moreno claro, com os olhos muitos verdes, como achava atraente num homem, e ele tinha um corpo forte sem ser atlético, como sempre sonhara em um homem, e ele tinha um sorriso devastador, como sempre soubera que ele teria.

E por razões bem óbvias, Luciana o amou no momento seguinte em que ele a olhou, e o desejou com loucura no próximo segundo, um desejo tão intenso e carnal que a assustou.

Ela ouvia o som da respiração dele e podia saber, com certeza, se ele estava triste, ou alegre, ou excitado.

Ela ouvia suas passadas pelo assoalho e sabia para onde ele estava indo hoje e se o que tinha de fazer era fácil ou difícil.

Sabia de antemão qual camisa escolheria, que prato ele ia pedir no restaurante, e qual caminho usaria para chegar ao destino. E o que diria quando estivessem na cama.

Aquilo para Luciana era uma coisa nova...nova demais, assustadora demais. Lera em algum lugar, num livro maravilhoso de contos que ele lhe presenteara, uma frase que lhe chamara a atenção “... por que talvez fosse a cota que o coração agüentasse”... e sentiu que seu coração não agüentaria perder aquele homem que lhe vinha como um presente de Deus. Ou do diabo.

E uma sensação óbvia de urgência, de perigo iminente, começou a alertar Luciana, dando claros sinais que, se Lucas morresse, sumisse ou simplesmente dissesse:

-         Não te amo mais.

Ela, Luciana, não iria resistir.

Não que morresse...Ela era forte demais para isso, era pior que isso. Seria destruída, e de tal modo que não haveria força alguma para faze-la voltar a viver, seria para sempre um fantasma, uma sombra, uma boneca de papel pintado e com movimento, incapaz de amar, de sentir ou enxergar outras pessoas.

Ficaria, para sempre, como um mutante, incapaz de novos movimentos como se houvesse adquirido uma deficiência sentimental....

E por razões óbvias o medo se instalou no peito de Luciana, com uma força terrível e devastadora e um dia, depois do fantástico amor que faziam, ela levantou, banhou-se, vestiu-se e avisou, peremptória:

-         Tou saindo de tua vida hoje, Lucas, definitivamente. E não vou voltar.

-         Mas, meu amor... – retrucou ele cheio de surpresa infeliz – que foi que eu te fiz?

-         Nada, Lucas – disse ela apanhando a bolsa – você é um homem maravilhoso.

-         Mas então porque está indo embora, e definitivamente – disse ele com uma ironia magoada – dizendo que não vai voltar?

-         Por razoes bem óbvias, creia.

E foi embora sem mais aquela e naquela mesma noite foi homiziar-se, como só uma criminosa o faria, num sítio de uma amiga, um lugar bonito, porém ermo e deserto. Ficou por lá duas semanas, três semanas, um mês, chorando tudo que tinha que chorar, trancando-se com uma garrafa de pinga, num quarto escuro para, estranhamente, beber sua dor como a um morto.

Neste meio tempo Lucas andava chorando nos braços de todos que o abraçavam, dizendo haver perdido a mulher da sua vida! Chorando inclusive nos braços da mãe dela, que o amava como a um filho e que só a desesperados pedidos dele, não a rejeitou para sempre.

-         Fazer isso, com essa criatura tão boa! Fazer isso com esse homem maravilhoso! É uma louca essa minha filha – sentenciava, raivosa.

Depois de uns três meses, onde sua vida quase terminara de todo, Luciana voltou, fria como um mercenário. Mais realista que nunca e com duas marcas visíveis de dor nos punhos.

Casou-se com aquele homem que jamais teria nada a ver com ela e nem com sua vida, de quem pariria filhos que não se chamariam Lucas, de quem seria sempre uma companheira perfeita, fria e ideal.

Mas o seu coração – o traidor – zombava dela, e ria se contorcendo em dores atrozes, e para tortura-la, fazia-a recordar cada gesto, cada palavra, cada beijo e cada toque de Lucas.

Luciana nunca mais teve paz. Por óbvias razões.

 

Para Maria Cris – por razões óbvias.

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Nádia Dias ESCRITO POR Nádia Dias Artista
Maceió - AL

Membro desde Setembro de 2009

Comentários

Cida Lima
Cida Lima

Sabe que sou tua fã, adoro seus contos. Beijussssssssssss