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A SORTE DO DESASTRADO

 Por Jabs Barros


E lá se vai mais uma xícara de porcelana chinesa da coleção de dona Alfreda. Tudo fruto de muito trabalho, não pago em dinheiro por sua ex-patroa, que sempre atrasava o seu salário.

- Ai, meu Deus! Essa era a última – gritou dona Alfreda sem hesitar.
- Prometo pagar, mamãe! – disse o filho meio choroso.
- Vai fazer programa? Seus estudos e nada são a mesma coisa. Não posso nem ir ao supermercado com você, porque toda vez algo tem que cair e acabo pagando mais do que deveria. Dinheiro mal investido.

Esse investimento que dona Alfreda faz questão de mencionar, foi a compra de um caderno com dez matérias e duas canetas, uma preta e outra azul. Caneta vermelha ou verde era luxo.


- Mas pagarei tudo isso. Prometo – fez questão de enfatizar.

A criatura que tudo derruba chama-se Godofredo, recebeu esse nome por vingança de sua mãe. Era o desastre personificado. Ele não era feio, até agradava quando estava paradinho, sem tocar em nada. O seu nome significa “protegido por Deus”, mas parece que algo não se encaixava em tudo isso. Ele era mais conhecido como “mão de sebo”. Tudo caía de suas mãos e, como isso era bem previsível, ninguém confiava nada em seus membros superiores.

Ele era uma pessoa muito boa, mas não bastava. As empresas logo percebiam a maré de azar que era confiar documentos importantes em suas mãos. Demissão? Essa palavra não mais o assustava. Poucos eram os amigos que convidavam Godofredo para as festas mais badaladas.

A única coisa com a qual ele se dava muito bem, eram suas cartas de amor. E ele era bem ciente disso. Só que as mulheres se apaixonavam pelo escritor e quando o conheciam pessoalmente, era um pouco decepcionante. Pode até parecer antiquado diante de tanta tecnologia, mas quando ele gostava de uma garota, sua jogada de mestre era escrever e escrever. E ele fazia questão de enviar pelos Correios com o nome “carta social” na parte superior para pagar apenas um centavo.

Sua última namoradinha chamava-se Camylla, isso mesmo, com “ípsilon” e dois “eles”. Sabe que filho de rico é João, Maria e José. Já o de pobre é Wellington, Stephany e Washington.

- Uma carta? – Perguntou Camylla abismada perante aquela substância constituída por elementos fibrosos de origem vegetal e fora de moda.
- Sim.
- Mas... Godofredo, não se usa mais carta. Os Correios só servem mesmo para entregar presentes, faturas de cartão e compras do Mercado Livre. Eu tenho MSN Messenger*, Orkut*, Facebook*, Twitter*, celular*... tudo que se precisa para manter uma comunicação emergencial. Já ouviu falar em email? Agora entendi o motivo de seus namoros relâmpagos.

Ela não tinha lido, pois o susto foi grande ao pensar que fosse uma brincadeira de mau gosto. Abriu a carta e leu na frente do seu autor. Lágrimas, ela não derramou, mas ficou bem emocionada. Godofredo fazia questão de colocar no final de todas elas: “De seu namorado, Godofredo”. A palavra namorado dava um poder a ele, um sentimento de posse e de direitos dominava o seu ser.

Algumas semanas se passaram, as cartas ainda eram frequentes e cada vez mais fervorosas. Camylla estava feliz com o relacionamento, mas estava sendo pressionada pela família que queria uma atitude mais adulta por parte do namorado. A irmã mais nova dela tinha catorze anos e um filho. Camylla, já com dezesseis anos, era bem madura e moderna e achava um absurdo ter um filho na flor da idade. Vivia reclamando com sua irmã por ter sido mãe tão cedo. Sua meta era ter um filho quando estivesse bem mais velha, de preferência, aos dezessete anos, mas não estava vendo muito futuro com o parceiro. Tinha medo de envelhecer e ficar pra titia.

Godofredo trabalhava com vendas no Benedito Bentes, bairro onde mora desde a sua concepção. No dia do seu nascimento, houve uma festança no bairro, é que foi época eleitoral e um grande comício acontecia com uma banda muito famosa. As vendas, única atividade de renda dele, nem sempre eram muito boas. Ele vendia flau* numa caixa de isopor e, sempre que chovia, as vendas caíam consideravelmente.

A pressão era grande para o casório e a relação já não era a mesma. Ele mal levava Camylla para comer tapioca na orla da Pajuçara, atividade bem comum entre maceioenses que se amam. Mesmo assim, diariamente as cartas chegavam à residência de sua namorada. Sempre no mesmo padrão: “De seu namorado, Godofredo”. Foi quando ela começou a magoá-lo tocando em assuntos que despertavam ira no coração puro daquele que poderia ser o homem de sua vida.

- Desocupado!
- Eu vendo flau!
- Desastrado!
- Há três dias não derrubo comida sobre mim.
- Não quero mais comer tapioca de coco. Quero a mais cara, quero camarão!
- Já comecei a espalhar currículos por aí. Segunda-feira irei a uma entrevista de emprego. Se gostarem de mim, ganharei mais.
- Doce ilusão. Quem te contrataria? Vai morrer vendendo flau. Se conseguir uma promoção, venderá sorvete.
- Vou provar o meu sucesso a você.
- Sabe de uma coisa? Vou a uma lan house* olhar a minha caixa de email. Aproveito e vejo se a Kathlyn* deixou um recado pra mim.
- Mas ela é sua vizinha.
- E daí? Gostamos do Orkut.

Naquele momento, Godofredo se sentiu trocado por um ambiente virtual. Local onde as relações pessoais são deixadas de lado, distanciando as pessoas. O contato olho no olho não mais existe, agora é olho na “cam”*. Pessoas que mal se conhecem trocam informações sigilosas e comprometem situações em suas vidas. Tudo isso era muito pesado pra ele, um fardo que ele não queria carregar. Até o dia da entrevista, ele insistia em falar com Camylla, mas ela se afastou definitivamente dele.

A relação realmente acabou. Meses depois, Godofredo e sua mãe mudaram-se para outro bairro próximo às barracas de tapioca na orla. A fama dele se espalhou e todos comentavam nos arredores do Biu, nome carinhoso do bairro Benedito Bentes, mais precisamente os comentários vinham da Grota da Alegria, local onde ele morava. Camylla tentou de todas as formas contato, mas Godofredo realmente sumiu. Nem na união calorosa dos ônibus do Benedito Bentes ele era visto. Até os cobradores sentiram a sua falta, já que uma pessoa a menos pulava a catraca todas as manhãs.

Certa vez, o carteiro aparece com uma carta, dessa vez não tinha o nome “carta social” na mesma, foi paga normalmente. Ao abrir, ela reconheceu a letra, esbanjou um leve sorriso e pensou em voz alta para os pais, tios, irmãos, cunhados e sobrinhos que moravam na casa de dois cômodos. Claro, sem esquecer dois agregados que nada eram da família:

- Mãe! Saí do buraco! Ele não resiste a mim.
- Que bom, filha! Aproveite e diga pra esse fujão que o gás acabou e estamos cozinhando a lenha. Aproveita e pede uma grana extra, porque comprei um perfume na revista da Avon e a mulher não pára de cobrar na minha porta. Ah! Também tem o prestanista* que me vendeu aquela panela que já amassou. Uma porcaria!
- Não se preocupe, mãe! Ele vai pagar tudo isso hoje. Inclusive a minha obturação. Sábado já vou comer tapioca com dente novo.

Rapidamente ela abre a carta e começa a ler:

“No corre-corre do dia-a-dia, quase não se tem tempo para uma boa alimentação: cachorro-quente, pastel, torta, bolo, esse é o cardápio. A preocupação de chegar atrasado ao trabalho é sempre constante e essa pressa pode causar situações desagradáveis. O pastel, que já estava frio numa bandeja, estava no ponto para degustação, o problema é que não dava pra encontrar o recheio. Para complementar a iguaria de sabor duvidoso, achei propício acrescentar grandes dosagens de um molho bem famoso, o “catchup”. Mas o alimento possuía um orifício em local estratégico que direcionava todo o molho para um local não apropriado: minha camisa branca. Mas isso é totalmente previsível quando se é desastrado.
Não havia mais tempo. Fui trabalhar. Antes de entrar onde se encontravam os companheiros de trabalho, passei no banheiro e tentei tirar aquela mancha da camisa. Não obtive sucesso. A sujeira tornou-se mais suave em alguns pontos e mais evidente em outros. Era o fim. O que diria meu patrão? Acho que a imagem da empresa ficaria comprometida. Talvez se eu não trabalhasse com atendimento ao público, o transtorno fosse menor, mas não deixaria de ser um transtorno.
Quanto mais eu dava bom dia, mais olhares a mancha recebia. Uns discretos, outros mais alvoroçados. Era perceptível a curiosidade das pessoas perante a horrenda sujeira. Um corajoso se aproximou e quis saber o que era aquilo em minha roupa. Eu, gaguejando e sem encontrar uma resposta convincente, tentei fazer rodeios. Mas ele logo complementou a pergunta, dizendo que tinha visto uma pintura semelhante numa exposição europeia à qual tinha ido.
Era uma brincadeira. Ninguém consideraria algo daquele tipo como uma obra de arte. Não foi algo intencional, não houve o depósito de nenhuma emoção, nem conhecimento técnico ou intelectual sobre a mancha. Ele chegou a dizer que causava arrepios e boas lembranças ao observar a camisa. Será que a beleza estaria no olho de quem vê e não no objeto, como propôs Marcel Duchamp e Andy Warhol? Seria possível ter alguma impressão estética perante aquilo? Estava comprovado, era uma brincadeira. Como eu não tinha o que perder no joguinho, resolvi entrar na dança. Confirmei que era uma pintura, mas que era de um único dono, eu mesmo. Em poucos dias, minha fama era notória. Todos na empresa passaram a expressar suas emoções perante a melequeira causada pelo molho de “catchup”, que me concedeu uma promoção e ficou eternizado como slogan da empresa.

De seu ex-namorado, Godofredo.”

Usar o termo “ex-namorado”, depois de muito tempo seguindo o mesmo padrão, melhor que o sentimento de posse, foi libertador para ele. Até hoje, Camylla vende flau no Benedito Bentes e acessa o Orkut numa lan house todos os dias para jogar Colheita Feliz*. Godofredo e sua mãe Alfreda deram entrada na Justiça para mudança de nome. A partir de agora ele se chamará Alfreda e ela Godofredo. Um detalhe importante é que a cirurgia de mudança de sexo não será paga pelo SUS*. Ele, ou ela, agora tem muito dinheiro.

DICIONÁRIO que ajudará, em uma linguagem clara e concisa, a descobrir significados das palavras encobertos pelos meios de comunicação de massa.

*MSN: É um programa de mensagens instantâneas, muito usado por pedófilos para raptar criancinhas.

*Orkut: Site de relacionamento onde todos sabem de sua vida.

*Facebook: Site de relacionamento que quer ser como o Orkut, mas está longe.

*Twitter: Rede social que permite saber da vida das pessoas em tempo real.

*Celular: Fala sério! Até meu cachorrinho tem um.

*Flau: Um tipo de sorvete vendido em saquinho. Todo alagoano já chupou um flau.

*Lan House: Estabelecimento comercial onde pessoas pagam para ter acesso à internet e para acessar sites pornôs, já que não pode fazer em casa, pois o histórico de acessos denuncia.

*Kathlyn: Nome de pobre. Como já dito, Maria é que é nome de rico.

*Cam: Abreviação de “webcam”, câmera de vídeo de baixo custo que capta imagens, transferindo-as de modo quase instantâneo para o computador. Serve também para se exibir sem roupa quando se quer conseguir namoro.

*Prestanista: Na verdade, prestamista, mas as pessoas insistem em falar com “n”. Em Alagoas, mais precisamente no Benedito Bentes, é aquele que vende produtos à prestação. E quando você não paga, eles contratam fortões para te bater ou te levam para fazer um “tour” em um canavial.

*Colheita Feliz: É um jogo para Orkut para construir uma fazenda, plantar e colher, criar animais e decorar seu próprio ambiente. Em outras palavras, um jogo para desocupados. Por falar nisso, preciso colher minhas laranjas e tirar o leite da vaca.

*SUS: Sistema Único de Saúde. Quer me enrolar dizendo que nunca precisou?




Por Jabs Barros

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