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Os sonâmbulos se denumciam

Imersa nas reflexões suscitadas a partir da leitura do livro ”A Vida do Bebê – 2ª Parte – De 40 Para Frente”, da autoria do mineiro José Cláudio Adão, não houve como não valsarem em sua memória fatos da história de sua mãe, que, de certo modo, lhe repercutiram consequências; velhas reminiscências de remotíssimos episódios - um passado recalcado, tanto quanto possível, por entender ser mais alvissareiro cantar os logros, as conquistas femininas a ficar lamentando o longínquo período do “capitis diminucio” da mulher, de que não fora vitima e nem seria presa fácil.

Nos idos dos anos 80, assistiu ao renascimento em sua genitora do afã de retomar os estudos, desvirtuados desde o tempo em que os encantos da mulher eram aferidos por quanto fosse prendada nos afazeres domésticos. O pouco apreço pelos livros da parte desta, a segunda de quatro irmãos, fez com que a mãe, a custo de lágrimas e muito suor, a mantivesse em escola particular, diferentemente do que pudera proporcionar aos demais, que frequentaram a escola pública - diga-se, numa época em que dela se projetavam os melhores alunos. No entanto, casou-se aos 17 anos e, logo aos 18, desentranhou-lhe – a primeira de três filhos. E os estudos? O marido o entendia inconciliável com a vida de casada. Asseverava em alto e claro som: “mulher minha não estuda, nem trabalha!”.

Se é mesmo verdade que a vida começa aos 40, lembra que, não fosse pela incapacidade de superar os percalços, a de sua mãe - aliás, reconhece-a como uma providente mãe, porquanto sempre incentivadora do seu progresso educacional e o do seus irmãos - poderia ter (re)começado bem antes dessa idade; na oportunidade em que, se sentindo emburrecida, aviltada, amordaçada por um casamento opressor, ainda, no ventre da existência, ameaçou guinar o seu futuro: retornou aos estudos, na esperança, certamente, de chegar à faculdade através do curso supletivo, pleitear um emprego, e, assim, desvencilhar-se das garras inexoráveis do marido, que não lhe admitia sequer transpor o umbral da portal, exceto por raríssimos motivos, tais como comprar frutas e verduras no Zé da Banana ou ir ao supermercado, levar os filhos ao médico – coisas desse naipe.

Evoca, então, imagem da figura de sua mãe, dando pernadas pelo pequeno apartamento: “Nabudonosor II, filho de Nabupolassar, conquistou a Fenícia, a Síria..., promoveu a primeira Diáspora Judáica, fazendo cativo grande número dos habitantes de Jerusalém; restaurou templos, agradou sua mulher erguendo os Jardins Suspensos da Babilônia...”. Nas datas aprazadas, usufruindo da cumplicidade dessa filha, no pórtico da adolescência, sua companheira e álibi, seguia de ônibus, do Pina ao bairro de Tejipió, a fim de convalidar seu aprendizado por meio da prestação de exames.

Conseguiu nota 9,0 em História – transformou-se em pura felicidade. Estudava para a prova de matemática, sua maior algoz; não chegou, porém, a prestar-lhe o exame. Revolvia-se na cama em estado sonambúlico, e as poucas palavras inteligíveis que proferiu, foram captadas e mal deglutidas pelo irascível marido. No alvorecer do dia, obteve a irrecorrível sentença: “de hoje em diante, você está proibida de sair de casa sem a minha companhia”. “Por que, homem? O que eu fiz de mais? “Você se denunciou no sonho e, portanto, esqueça a equação de qualquer grrrrrau!” – com dentes trincados.

Com a respiração suspensa, enxergara-se, a partir daí, inibida de realizar sonhos por si mesma. Quando liberta pelo divórcio, conquanto estivesse em idade de fazer a hora, não pensou senão em esperar que o que lhe acontecesse viesse de fora, alguém lhe fizesse acontecer. Portou-se tal qual um passarinho que, longo tempo engaiolado, não se evade quando lhe abrem a porta, pois não sabe o que fazer com a liberdade. Assim foi sua mãe, assim são as tantas pessoas que se rendem às ameaças tempestuosas e fazem-se cativas de si mesmas. O impossível é a sua mais assídua interpretação.


Simone Moura e Mendes
(Crônica publicada na Gazeta de Alagoas, edição de 27/05/2011: http://gazetaweb.globo.com/v2/noticias/texto_completo.php?c=233352)

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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
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