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Plenitude

 

 

Chovia.

Meu pai levantou-se da cama, e passou assobiando pelo corredor da casa em direção ao banheiro. Os pingos da chuva tamborilavam rítmicos, quando o sino da Igreja Matriz começou a tocar. O cheiro do café coado invadiu a casa e Analice se pôs a cantar com suavidade uma canção que falava em estrelas que haviam percorrido o céu em busca de outros mundos. Pulei da cama. Outros mundos! Essas coisas me exigiam aprofundamento e continuidade. A idéia de outros mundos, tornava o meu, reduzido e vulnerável, a mercê de catástrofes e invasões vindas do espaço.

Àquela época os marcianos começavam a povoar o imaginário popular. Marte surgiu como um dos outros mundos habitados. Olhar o céu deixou de ser apenas olhar o céu. Eu vasculhava entre a lua e as estrelas, naves espaciais e a possibilidade de esclarecer mistérios. Apareceram as grandes dúvidas existências, em perguntas meio assustadoras, que povoaram a minha cabeça, de quem sou eu, de onde vim e para onde vou. Em casa, as pessoas emitiam opiniões, baseadas em suas convicções religiosas, em certezas frouxas que resvalavam em respostas também frouxas, que me desapontavam.

Meu pai notou que não me convenciam as respostas e me alertou para o perigo de se enlouquecer quando se procura entendimento, para coisas que não podem ser respondidas. Vencida pelos adultos, entendi que as suas palavras, objetivas, sentenciavam o encerramento do assunto, e de alguma forma possuíam um efeito salvatério, momentâneo, me arrancando de um intrincado labirinto. Melhor mesmo era olhar formigas a caminho do açucareiro, em fila indiana, sobre a mesa da sala de jantar.No outro dia a chuva voltou a cair e as mesmas perguntas me assaltaram, antes mesmo que eu levantasse da cama. Estranhamente, sem que eu me desse conta, se me havia rompido o mundo íntegro, conhecido e perfeito, em dois.

Estabeleceram-se dois lugares de mim mesma: um de dentro e um de fora. Movida pelas perguntas, as dúvidas me ocuparam e não pude mais me livrar delas. Fui mordida pela serpente simbólica, que me exigiu o preço, à leve ainda, expansão da consciência sobre as coisas. Os dias iguais, os pingos da chuva e até mesmo o assobio matinal do meu pai, deixaram de ser signos do meu cotidiano perfeitamente estável e bom. Outros mundos... Remoí em silêncio, as galáxias, o Universo infinito, a morte, Deus e eu mesma, em meio a isso tudo e vi-me cercada por conflitos interiores. Os mistérios cresceram, tomaram forma, saíram de meu mundo interior, varreram os meus brinquedos, trouxeram um gosto amargo aos doces caseiros, aos ventos quentes da tarde, às orações para dormir, e tornaram o colo da minha mãe estranho e pouco acolhedor.

Saí da infância, como se me houvessem empurrado pra fora do meu melhor lugar de estar, e amedrontada, comecei a compreender, que havia perdido o paraíso, a inteireza e a perfeição que a inocência permite à vida. Eu era alguém no meio dos outros. Mais tarde, haveria de tornar a inquietar-me com as mesmas perguntas, agora, de maneira mais elaborada. Em lugar de quem sou eu, de onde vim e para onde vou a pergunta se fez mais direta: Qual o sentido da vida?Estou longe da perfeição inconsciente da infância, mas irei juntar-me novamente. A dualidade me trouxe o conhecimento dos opostos e os opostos me exigem totalidade e equilíbrio para serem integrados. Só assim serei de novo uma única pessoa. Tudo estará dentro de mim e em seus devidos lugares. O sentido da vida é a resposta que eu der à Vida e aos seus mistérios.

É partir-se em dois, para depois unir-se. É ser pleno.

 
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Goretti Brandão ESCRITO POR Goretti Brandão Escritora
Maceió - AL

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