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ENTRE O LIMBO E O JARDIM: Ou, Karla & Camila no mundo “eternecido” apesar de tudo

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                                                                                                                                        Ricardo Maia[1]

 

            No livro A Conquista da Razão, o lingüista Alberto Merani (1972, p. 43) diz que “[...] as palavras novas exprimem coisas novas, fatos, idéias, sentimentos, ou são modos novos de tornar tangíveis coisas velhas”. Afinal, como ele mesmo pergunta: “O desenvolvimento de palavras novas, as mudanças de significado, própria da evolução das línguas, sua diferenciação, acaso tudo isso não corresponde a mudanças que afetam o pensamento de um povo, sua maneira de sentir, de agir, e as etapas históricas de sua práxis e gnoses?” [grifo nosso]

            E, em seguida, ele próprio responde afirmando: “Tôda [sic] mudança lingüística, de qualquer ordem que seja, fonética, morfológica, sintática, lexicográfica, tem por origem uma ação pessoal ou coletiva que revela uma mudança nos indivíduos, porque para que tenha futuro exige que a ação, o pensamento da sociedade, se tenham também transformado. Não é outra a origem e destino do neologismo.”

            Ora: “Eternecer” é um neologismo verbal e paradoxalmente dinamizante que, por sinal e não por acaso, intitula a delicada exposição de fotografias produzidas por Camila Cavalcante e Karla Melanias. Uma delicadeza que segue, à risca, a orientação guevarista de que haveremos de “endurecer sem jamais perder a ternura.” Pois vem na certa deste preceito, ou desta orientação, o objetivo político cultural das duas fotógrafas de “Visitar o limbo”. Um “limbo” potencialmente micro-revolucionário que seria “aquele dos afastamentos, seja do ponto de vista emocional ou social.”

            A visita a este limbo “inspirou”, por sua vez, outro objetivo do projeto micropolítico da mostra: “[...] procurar uma fotografia sem rosto que se esconde, talvez, nas camadas sobrepostas do nosso mais íntimo e, ao mesmo tempo, distante cotidiano.” O resultado desta procura são 36 “impressões fotográficas”, entre as quais se vê, na primeira sala da exposição, gente humilde, mestiça e/ou nativa posando de costas, para as duas fotógrafas, numa atitude simbólica tão performativa quanto contestatória. Atitude, no entanto, ironicamente “emoldurada” bem ao estilo retrô do kitsch burgo-artistocrático do século XIX, indicado por molduras douradas com passe partout branco.

            O branco é a cor simbolicamente hegemônica na sala que se interpola, entre as duas outras já mencionadas, como um marco territorial arruinado. Um fálico marco idêntico àquele, em forma de obelisco, de um velho engenho de açúcar fotografado por Camila numa plantação de cana no interior do Estado alagoano. Ali, este “branco” ― outrora de-marcante e pregnante ― encontra-se hoje nostalgicamente inscrito numa instalação misteriosa e pós-modernista. Uma instalação concebida e construída manualmente por Cavalcante & Melanias para homenagear Chico e Zequinha”, seus respectivos vovôs. Aqui é interessante notar que tal instalação nos faz lembrar do filme Avatar, de James Cameron. Mais exatamente de um cenário deste no qual os exóticos habitantes do planeta Pandora contatam, ritualmente, seus antepassados religando-se a estes através de uma grande e estranha árvore de copa delgada e luminosa.

            Esta, na certa recriada ali por Cavalcante & Melanias como o símbolo de uma arborescente “cultura do sentimento” que produz “O mistério” (Maffesoli, 1995, p. 17). Mistério que este teórico define, em sua “sociologia sonhadora” (1987, p. 11), como sendo “aquilo que se partilha com alguns e que conseqüentemente serve de cimento, reforça o sentimento de pertença e favorece uma nova relação com o ambiente social e com o ambiente natural.” Relação esta, aliás, que o psicanalista Félix Guattari (1992, p. 20) denomina por sua vez de “ecosofia”; ou seja: uma “ecologia generalizada ― ambiental, social e mental” para se repensar a vida humana a longo prazo.

            Assim sendo, na instalação referida um detalhe merece toda a nossa atenção: o contato religador com Chico e Zequinha (“Pai da mãe e pai do pai”) é feito através de suas imagens, fixadas em fotos 3X4. Ou seja, através de artefatos de memória iconográfica embutidos em monóculos de galalite branco que, ainda hoje, podemos encontrar em praças e feiras de cidades interioranas do nordeste brasileiro. “Rostos revelados num tempo infinito. Vazio que tenta ser preenchido. Apenas dois retratos nas lacunas como imagens permanentemente interrompidas”, escrevem comovidas, num sensível texto de parede, as duas fotógrafas criativas.

            Na Pinacoteca Universitária da UFAL, onde podemos visitar a excelente mostra de Cavalcante & Melanias, até 8 de novembro próximo, os pontos de vista “emocional” e “social” se encontram esteticamente representados cada um em sua respectiva sala. Por exemplo: na primeira, as duas fotógrafas dispõem o “social” (esfera da historicidade objetiva e pública) e na terceira e última o “emocional” (esfera da historicidade subjetiva e privada). O social, representado por uma espécie de “limbo” (ou lumpemproletariado?), e o emocional, sócio-construído na dimensão subjetiva da realidade eurocentrista de um romântico século XIX, configurado por uma espécie de jardim do Éden burgo-aristocrático. “Se eternecer é a tentativa de fazer coabitar aquilo que se faz eterno e o seu oposto”, nos explicam Cavalcante & Melanias (2011), “esquecer é o não permanecer.” E acrescentam: “Aqui, nos rosados, na velha casa ressurgimos no sorrateiro imaginário, no baú sem cadeados, empoeirado.”

            Nesse ressurgimento psicossocial estariam implicadas as seguintes ações (auto-)afirmativas que são metodicamente objetivadas, por Cavalcante & Melanias (2011), no projeto estético da exposição; a saber: 1) “Trazer à tona nas impressões disformes buscando o primeiro chão sob os pés, os rostos quase lembrados, o toque delicado do antigo filó, o lugar de onde se veio e onde se presume permanecer”; 2) Guardar os ruídos; 3) Encontrar o pássaro de madeira na falsa grade; enfim, 4) “Ver o dentro tão de perto e tão fundo, que ver é mais que olhar, prender o fôlego e respirar lentamente. É ser.”

            Esta arquitetura operativa, que só à primeira vista faz referência apenas à velha dicotomia epistemológica que separa radicalmente o sujeito da realidade objetiva, na verdade reflete e revela também a histórica divisão de classes sociais antagônicas do modelo marxista. Muito embora, como se vê, sem descurar da dimensão subjetiva da realidade socialmente construída, diversa e complexa. Daí o objetivo micro-revolucionário de “Inclodir” (i.e., implodir eclodindo subjetivamente) ao invés de explodir com o “eternecer” ― que “apesar do tempo, permanece em nós” e “apesar de nós, permanece no tempo”... Esta inclosão, uma explosão portanto subjetivada, implicaria um movimento (auto-)afirmativo “Tão para dentro e tão fundo,” de acordo com Cavalcante & Melanias (2011), “que para se ver sendo o que se é, é se fazer silêncio, recuo. Ato descontínuo. Contemplação partida cheia de impressões esvanecidas.”

            Daí porque o “social” testemunhado e registrado por Cavalcante & Melanias (2011) é aquele constituído pelos “lugares que ruem” das “nossas alheias Macondos” pós-coloniais. Já os ambientes naturais são povoados por atores sociais em suas atividades cotidianas nativistas. É neste sentido que percebemos a metodologia fotoetnográfica com a qual as duas artistas realizaram seus trabalhos. Nestes, elas constatam ― inclusive literariamente ― uma “Visibilidade que não se vê e escorre perene entre os dedos, na memória.” Pois como elas ainda acrescentam, diagnosticando e denunciando certa cegueira e amnésia sociais em relação aos setores esquecidos da sociedade: “Não vemos ou não conseguimos enxergar certos grupos sociais, lugares, coisas.” (Cavalcane & Melanias, 2011)

            Posto isso, a contemplação do mundo social eternecido (e, portanto, reificado/coisificado/naturalizado ou ideológico) já não tem mais tanta importância. É preciso então neste mundo, segundo elas, “Transmutar o tempo”... Ou seja, o tempo passado no tempo presente. Pois é este, sem dúvida, o principal objetivo. O objetivo mais radicalmente micro-revolucionário do projeto estético de Karla Melanias & Camila Cavalcante. Projeto este, aliás, onde elas concebem a atividade política como sendo transformadora da nossa sociedade amnésica: “Esquecemos”, constatam as duas fotografas justificando tal projeto. E continuam: “Todos estamos sujeitos ao que não permanece, ao etéreo que se desfaz um pouco a cada dia ou muito há um tempo que já não sabemos quanto.” (Cavalcane & Melanias, 2011)

            Tal atividade, do ponto de vista metodológico, implica para elas tanto na submersão densa daquilo que esquecemos quanto naquilo que lembramos. Ou, então, na penetração instantânea e imprecisa dos espaços côncavos da memória coletiva. Mas sempre, de modo intenso e dinâmico, olhando “para trás e para fora ao procurar vestígios daquilo e de quem ambiguamente esquecemos.” O que significa reconhecer que, em toda obra de arte ― especialmente na obra de arte pós-moderna ou contemporânea ―, não somente a consciência do artista protesta. Seu inconsciente também e sobretudo. Pois este, como asseveram Jameson (1992) e Deleuze (citado por Guattari & Rolnik, 1986), é político.

            Por tudo que até aqui observamos sobre a exposição de arte pós-moderna, de Camila Cavalcante & Karla Melanias, na Pinacoteca Universitária, podemos depreender que esta criativa mostra se recusa, terminantemente, a conceber a arte pela arte. Pois até mesmo quando as duas artistas expositoras se utilizam estrategicamente de uma “política da nostalgia” (Linda Hutcheon, 1991) (refiro-me ao discurso antiquarista da sala rosa-antigo), elas negam delicadamente a herança romântica e modernista do não-envolvimento criativo. E isto enquanto afirmam que o ideologismo (no sentido negativo deste termo) encaixa-se, inclusive e sobretudo, nas práticas e representações artísticas.

            Uma prova? No processo criativo de Karla Melanias & Camila Cavalcante, o “eternecer” é uma “ato descontínuo” que é, também, essencialmente contemplativo (“Contemplação partida cheia de imprecisões esvanecidas”). Seu caráter “descontínuo” é o exato indicador daquela “passagem de uma estética da re-presentação a uma estética da percepção” de que nos fala Maffesoli (1995, p. 35). Passagem esta, aliás, que produz um gozo visualista de “pura sensibilidade visual”. E isso através de um processo de “desconceitualização do mundo” (Jauss citado por Maffesoli, 1995, p. 35) que se opõe radicalmente, do ponto de vista do “estilo”, segundo ainda Maffesoli (1995, p. 35), à “uma concepção ‘ativista’ do mundo social”.

            Esse “ato descontínuo” das duas artistas expositoras, na construção da mostra, não só contradiz o objetivo micro-revolucionária do projeto estético desta. Ele também revela a estrutura tipicamente (auto-)contraditória do pós-modernismo por elas incorporado. Principalmente se consideramos o fato de que a totalidade do mundo social é sempre acompanhada pela linguagem que a produz e é por ela produzida.

            Nesta perspectiva, são bastante sintomáticas as belíssimas fotografias da série “Infância” ― verdadeiras obras de expressionismo abstrato. Mais sintomáticas ainda são as expressões verbais, encontradas nos textos de parede e do catálogo da mostra. Expressões estas que, por sinal, tendem a evocar sem auto-crítica o clima e/ou a dinâmica politicamente incorretos de uma sociedade injusta e violenta; por exemplo: “Explorar”, “provocação”, “afastamentos”, “apropriação”, “silêncio” e “permanência”... Esta última, por exemplo, produzindo um sentido paralisante e emudecedor na elaboração e consecução de três objetivos estéticos paradoxais (e, portanto, ideológicos no sentido marxiano); a saber: 1) “Encontrar o que continua permanecendo, apesar da não lembrança do outro”, visando 2) “Permanecer naquilo que apenas permanece.” E, além do mais, 3) “Dizer-nos silêncio.” (Cavalcante & Melanias, 2011, grifo nosso)

            É desse modo que Karla Melanias & Camila Cavalcante (2011) exploram, em seus trabalhos criativos, “as sinuosidades desse paradoxo” tipicamente pós-moderno. Mas cientes da poética pós-modernista que produzem, elas explicam tal “paradoxo” assim: “Essa é a provocação estética que nos impulsionou para o mergulho livre, assumido por devaneios pessoais que nos fazem trazer à tona impressões e interpretações sobre o que julgamos esquecido ou conscientemente ignorado.”

 

 

REFERÊNCIAS

AVATAR. Direção: James Cameron; produção: EUA / Reino Unido, Fox, 2009.

CAVALCANTE, Camila; MELANIAS, Karla. Catálogo de exposição em arte visual. Maceió: Pinacoteca Universitária. UFAL, 2011.

GUATTARI, Félix. Fundamentos ético-políticos da interdisciplinaridade. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 1, n. 108, p. 19-25, jan.-mar., 1992.

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 2ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1986.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

JAMESON, Fredric. O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo: Ática, 1992.

MAFFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

MERANI, Alberto. A conquista da razão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.



[1] É alagoano de Maceió, graduado em psicologia no CESMAC, mestre em psicologia social pela PUC-SP e, durante quatro anos, pesquisador no IHGAL no sobre o campo artístico alagoano. É interessante notar aqui que este ensaio já foi publicado, em novembro de 2011, no portal Tudo na Hora Alagoas, secção Artigos, e lá esteve até a curiosa extinção da referida secção. Tal instalação pertence à mostra Eternecer, das artistas multimídia Karla Melanias & Camila Cavalcante, inaugurada em outubro de 2011, na Pinacoteca Universitária (Centro Cultural da UFAL, Praça Sinimbu – Centro).

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Ricardo Maia ESCRITO POR Ricardo Maia Escritor
Maceió - AL

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