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Presentes enamorados

Um beijo suave, apaixonado, recondutor ao estado de vigilância; um ósculo eficaz, capaz de aquecer, inclusive, o espírito, numa manhã chuvosa, preguiçosa, aquela que, descaradamente, convida ao ócio, ao corpo mais tempo permanecer nos braços permitidos de Morféu – filho de Hipnos, deus do sonho. Um abraço enamorado fê-lo acompanhar, com sabor à guisa dos vinhos envelhecidos.

Abstrai-se do presente. Faz uma breve divagação. Lembra-se de um dos dias de comemoração do santo casamenteiro, em que, adolescente, se rendera à prática das adivinhações, insuflada pelas amigas. Confiada na destreza juvenil, pulou um muro alheio, numa tentativa frustrada de introduzir a faca numa bananeira. Mas havia alternativa a ser perseguida com nenhum risco advindo do invadir uma propriedade privada. Pingou vela numa bacia. A letra que se formou era o “C”, a inicial maiúscula que selaria sua vida.

Dia dos namorados, então. Mais um de sua história com o “C” adivinhado, naturalmente, calcada num romantismo de quase 25 anos de convivência conjugal, forjada com os arroubos da paixão, consolidada pela convicção do amor. Algo que muitos rotulariam como “demodê” – talvez os incautos que, ainda, não hajam experimentado um passeio no Pegasus e tocar as estrelas, sem um trago numa das drogas da moda. Quiçá alguns que não se permitem abrir as frestas da alma a fim de viabilizar a entrada sublime da luz do amor, em sacrifício, em escárnio à própria felicidade; seja como forma de defesa, por mutilações emocionais pretéritas ou, simplesmente, por um ato de bater continência ao profano consumismo, que enxerga a arquitetura corpórea, de toda fugaz e perecível, antes mesmo de contemplar o brilho dos olhos.

“Bom dia, meu amor! Feliz dos Namorados, querida! Saiba que eu te amo muito”! Cumpre-se, pois, o ritual esperado, mas de cujo fascínio o tempo é insusceptível de desbotar. O cartão, em face dos olhos já afetados pela inexorável presbiopia, reclama os óculos, escrito com letras talhadas pelo ritmo das batidas do coração, afetuosamente, desenhadas no silêncio da madrugada, como sói acontecer em todas as datas comemorativas, vai sendo sorvido com uma plácida avidez; é lido, entusiasticamente, como se fora o primeiro.

Em seguida, um após outro, os laços de fita das embalagens de presente vão sendo desatados. Desta feita, dois lindos vestidos, que ficam, milimetricamente, assentados no corpo, porquanto, escolhidos por quem conhece bem a geografia, a despeito da avultada, inclemente multiplicação das ousadas células adiposas. Além deles, um aparelho celular a fim de substituir àquele que lhe vem acompanhando anos a fio, cumprindo sua função de fazer e atender chamadas, embora já reduzido de uma das teclas – mais uma constatação de seu descaso com a vaidade. Frise-se que não foi vencida pelas gozações dos amigos, que diziam: “minha amiga, você merece um celular novo, esse só serve ao lixo!”. (Um parêntesis para a observação da filha mais nova: “mainha, esse celular é touch, a senhora não vai saber usar! – rsrsrsr)

Uma mão recebe o presente, a outra o oferta. Ao longo do tempo, esse escambo jamais fora interpretado como uma mera troca material, uma sujeição servil aos apelos da sociedade capitalista. São mimos que, obviamente, o dinheiro permite comprar; contudo, embalados num amor efervescente, típicos de quem ama e sabe e gosta de cuidar; são eles indignos de cópia por qualquer tentativa de manufatura; nas gôndolas das lojas não os cabe.

Segue adiante o casal, no seu confortável e plácido casulo, insurretos ao pensamento, quase sempre reproduzido, de que “Dia dos namorados”, “Dia das mães/dos pais” e outras tantas datas foram criadas para robustecer o consumo nas economias capitalistas. Pode ser, e não se duvide das intenções subjacentes nas criações! A vida, todavia, reclama culto aos símbolos, sejam eles partidários de qualquer que seja a ideologia. Com vênia, as opiniões contrárias, cada um tem o livre arbítrio de seguir a sua.

As datas, portanto, são criações simbólicas, revelam a face de uma cultura. Ficar infensos a elas não purga outros pecados, nem imola a salvação, nem credita um ser senão por suas boas condutas e, mais, por seus propósitos anímicos. Senão presentes, enamorados, deem-se uma flor surrupiada num jardim e não queiram racionalizar as competências do coração! Optar por ser feliz, quem sabe?

 

Simone Moura e Mendes

(Publicada em O Jornal, edição de 26/06/2012)

www.simonemouramendes.com

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Simone Moura e Mendes ESCRITO POR Simone Moura e Mendes Escritora
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