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O céu dos Escritores

• Atualizado

Conto classificado em 1° lugar em concurso literário da cidade de Palmeira dos Índios AL. Uma iniciativa da Academia Palmeirense de Letras, Ciências e Arte.

             Paulo Honório, de São Bernardo, estava zangado no céu apesar de não ser muito permitido isso por lá. Estava zangado com Graciliano Ramos que dera a ele uma vida tão difícil, uma vida tão sofrida, um destino infame.  “Quem ele pensa que é para determinar o meu destino? – conversava com São Pedro que andava de um lado para outro -  antes de determinar quem eu seria no livro, ele deveria ter me consultado para saber se eu queria ser aquele personagem ranzinza, capitalista, amante do dinheiro e que gostava de explorar as pessoas humildes. Antes de ele determinar que eu deveria esfaquear um e matar outro, deveria perguntar se eu queria ter feito essas coisas, ora! Até o nome que ele me deu, São Pedro, ele não me consultou para ver se eu  queria...”

            - Qual era mesmo o seu nome lá na terra? – pergunta São Pedro.

            - Paulo Honório.

            - É um nome até interessante, lembra dinheiro, lembra honorário, e honorário lembra dinheiro, por que você não gostava dele, dinheiro, quer dizer, honorário, não, meu Deus! Que confusão!?

            - Ora, São Pedro, Honório fala de honorário e honorário fala de dinheiro e dinheiro era a razão da minha vida lá na terra. Pelo dinheiro eu matava e morria. Tudo culpa de Graciliano Ramos, aquele velhaco. Deixa estar! Um dia ele vem parar aqui, se é que vem! Quando isso acontecer ele vai ter que me explicar direitinho o porquê de ter me personalizado dessa triste forma naquele bendito livro chamado São Bernardo.

            Acabado esse diálogo, Paulo Honório se afasta indo para as orações obrigatórias por ter sido tão mau lá na terra. Por pouco não vai para o inferno. Se não fosse a intercessão de São Paulo por ele, tinha ido queimar no fogo do inferno.

Tendo saído de perto de São Pedro, eis que aparece um outro personagem de Graciliano Ramos no livro Angústia, o Luiz da Silva.

            - Como vai Luiz? Já se curou daquela angústia? – quer saber São Pedro.

            - Estou fazendo esforço para me curar, São Pedro. Na terra fui um homem muito reflexivo, em tudo eu refletia. Acredito que toda aquela minha angústia era porque eu pensava demais. Meu idealizador colocou em mim um sentimento profundo de existência. Eu observava tudo, tudo me tocava, me ofendia. Naquela oportunidade que eu ia me casar com Marina, eu era um homem de bom coração. Infelizmente Marina não me quis, me trocou por Julião Tavares, aquele bandido!

            - Olhe! Cuidado, aqui não é permitido sentir ódio.

            - É mesmo, desculpe, ainda estou nas orações de remissão de pecados.

            - Eu era um homem até bom quando era vivo, meu defeito foi ter matado Julião Tavares, e quase não consigo chegar aqui no céu por causa disso. Se eu não tivesse me arrependido quando estava na cadeia, creio que teria ido para o fogo do inferno. Apesar de na terra eu ser um sujeito introspectivo, eu gostei do personagem que eu fui. Espero um dia me encontrar com o meu criador, o Graciliano Ramos. Será que ele também virá para o céu?

            - Pelos registros dos nossos livros, Graciliano Ramos não parecia muito acreditar em céu e em inferno. Ele ainda era criança e já duvidava acerca da existência de inferno e de céu. Creio que só a Providência é quem pode julgar o caso dele. – Responde São Pedro.

 

Tendo saído de perto de São Pedro, eis que aparece um outro personagem de Graciliano Ramos no livro Angústia, a Marina.

            - Ah Marina, Marina, como foi difícil você conseguir estar aqui, não!?

            - Sim meu bom Santo! Foi muito difícil, tive que ficar no purgatório quase dois meses remindo os pecados. Culpa daquele fumante inveterado, o bicho era tão ruim que nem sequer dava um bom dia direito ao povo. Conta-se que não gostava de música, de rádio, de campainhas, se aborrecia com vizinhos, e odiava quem falava alto.

            - Ah, Marina, aqui nos autos do céu diz que ele não gostava de quem falava alto era porque o pai dele costumava dar-lhe grandes pisas quando criança e sempre gritava muito com ele. Sofrera muito, o pobrezinho; vida rude, vida severina.

            - Mais isso não é desculpa, São Pedro. Eu não gosto dele porque ele fez de mim no livro como sendo uma personagem ambiciosa, vaidosa, aproveitadora, pobre, calculista e fria. Eu não queria ser assim, ora! Quem deu liberdade a ele para determinar esse tipo de personagem para mim? Não o perdôo por isso. Nesse momento houve um grande rebuliço no céu. Fortes trombetas soaram. Anjos voavam em polvorosa. Espanto geral. Logo em seguida, um grande silêncio, e as nuvens começaram a se abrir como uma porta. Fortes luzes irradiavam daquela abertura no céu... de repente, saiu dessa abertura uma imagem de um homem e de uma mulher, acabaram de chegar ao céu sem passar pelo purgatório.

            - Fabiano, Sinhá Vitória!!? Admira-se um anjo.

            - Sim, a Providência resolveu deixar-nos entrar. Achou que na terra sofremos muito com a seca e pelo inferno já tínhamos passado. A Providência decidiu que éramos inocentes, vitimados pela seca e pelos maus políticos daquele país que vivíamos. A Providência viu as noites de fome e de sede que passamos e se apiedou da gente. A Providência viu também que os homens de decisão de onde eu vivia roubaram muito o dinheiro dos pobres, e que pobre assim como eu não mereceria o inferno, muito menos precisava de purgatório. O purgatório, disse a Providência, foram os anos de fome, de sede, sem uma casa para morar, sem uma cama decente para dormir, sem dinheiro para comprar a comidinha dos meninos. Nossos pés rachados, nossas mãos calejadas, nossa pele rústica são nossos testemunhos que fomos sofridos. Apesar de eu ter sido lá embaixo um sertanejo fugitivo da fome, vivendo na miséria, tendo dificuldade de comunicação, adorei ser Fabiano lá na terra, porque vivi meus dias numa região que, apesar de seca, é cheia de sertanejos de bom coração. E a paisagem do nordeste quando a chuva bate vira um encanto. E o sertão ainda vai virar mar, já dizia Euclides da Cunha no livro Os Sertões.

            Interessante o céu! – admira-se Mário de Andrade! – Lá na terra esse Fabiano no livro Vidas Secas era calado, quase não abria a boca, aqui está até bem falante e sabe até citar coisas da literatura!

            - Quer dizer então que você gostou de ser um sertanejo fugido da seca criado por aquele Graciliano? – quer saber Paulo Honório que se aproxima.

            - Claro que gostei, ochente! Por que eu num ia de gostar?

            - Você é burro mesmo né, Fabiano! Graciliano bem que poderia ter dado a você um destino melhor, e não criar em tu um homem miserável da seca. Por que ele não te criou um dono de empresas ou tudo o mais?

- Cale-se, Paulo do dinheiro! Você está condenado a mais 1892 padres nossos e 1953 ave-marias. Já para a solitária rezar! – ordena zangado o delegado do céu.

            - Ora, se eu gostei é porque gostei, ochente! A única coisa que fiquei de coração partido foi porque eu tive que matar minha cachorrinha Baleia, pobrezinha! Bem que nessa parte ele poderia ter dado um destino diferente ao bicho. Ela era de estimação, tinha nascido ali, diante de nossos olhos, perdê-la foi muito doloroso. O mundo de preás que Graciliano Ramos desejou a pobre da cachorra depois da morte, que Deus tenha dado a ela esse mundo.

            - Vejo que és sentimental, Fabiano! – Observa o anjo Gabriel. Se o homem na terra tivesse pelo menos 20% do teu sentimentalismo, não teria destruído tanto a natureza por lá. As doenças na terra surgirão à velocidade da luz, o homem pagará pela agressão contra a natureza. Porque o homem não teceu a rede da vida, ele é apenas um dos seus fios; e o que ele fizer à rede da vida, estará fazendo a si mesmo.[1]

            Após esse diálogo todos foram se concentrar na praça da paz celestial para as orações. Um anjo deu uma rasante baixa com um cálice vermelho na mão. Simbolizava tragédias na terra. Logo em seguida, outro anjo surgiu do vácuo trazendo um cálice azul, simbolizava a vinda de mais um para o céu. Outro anjo apareceu do vazio com um cálice preto. Tristeza no céu. Todos se ajoelharam e choraram. Mais uma alma tinha ido para o inferno. A comoção foi geral.

 

INTERROGATÓRIO.

 

            Infelizmente, o dia do velho Graça tinha chegado também. Morrera de problemas no pulmão. Também! Três maços de cigarro Selma por dia não é brincadeira! Chegara ao purgatório e ia ser interrogado:

            - Seu nome terreno, por favor? – pergunta o inquisidor celeste.

            - Graciliano Ramos.

            - Idade e altura:

- 61 anos e tenho um metro e setenta e cinco.

Bem, senhor Graciliano Ramos, vamos ver aqui nos autos o que é que consta sobre o senhor... aqui diz que o senhor fumava muito, três carteiras por dia. Diz também que o senhor gostava de aguardente. Diz que o senhor não gostava de música. Diz que o senhor era...era...ateu!!? É verdade, senhor Graciliano!? Isso é grave!

- Não é verdade! Eu acreditava em Deus, só que de forma diferente do jeito de crer das outras pessoas. Se o senhor olhar bem aí no livro, vai ver que em quase todas as minhas cartas eu falei o nome de Deus!

- Humm! Deixe-me ver... é verdade, o senhor usou muito o nome da Providência! Isso pesa a seu favor. Vamos continuar. Foi preso por ser comunista!

- Senhor, posso me explicar. Fui comunista sim. Acreditava que o homem vivia explorando o homem e eu achava que o comunismo era que podia dar uma vida mais igualitária aos homens.

- Humm! Isso pesa a seu favor também, pensava nos semelhantes. Mas deixe-me continuar. Fala aqui nos autos que o senhor gostava muito de criança. Que bom! Aqueles que gostam de crianças se aproximam do reino dos céus. Consta também que o senhor odiava a burguesia e era indiferente à academia. Percebo que o ódio não é boa coisa, mas odiar a burguesia mostra que o senhor não era alienado, e ser indiferente à academia, mostra que o senhor era humilde. Bom... vamos ver mais, deixa-me ver... quando prefeito daquela cidade dos índios fez uma brilhante administração, não se corrompendo como a maioria dos políticos se corrompe. Mas o senhor gostava de palavrões escritos e falados, seu Graciliano, isso não é lá boa coisa não!

- Falhas humanas, senhor! Peço que me perdoe.

- Bem, seu Graciliano, para terminar, encontro aqui a prova que o senhor foi um cristão de verdade: o seu livro preferido para leitura era a santa Bíblia. E o senhor está absolvido dos seus pecados terrenos. Entre para a glória eterna. Desfrute dos prazeres invisíveis aos humanos na terra, entre para a vida eterna.

Assim, Graciliano Ramos chegou ao céu. Mas alguns lá dentro iam tomar satisfação. Marina e Paulo Honório estavam uma fera com o velho Graça.

Novo rebuliço no céu, as nuvens se abrem novamente e eis que aparece ele diante de todos. Graciliano Ramos entrou definitivamente no céu. Recebeu as boas vindas de todos, menos do Paulo Honório e da Marina. Fabiano, o vaqueiro de Vidas Secas, e o Luiz da Silva ficaram felizes em ver, materializado, o seu criador terreno.

- Saudações, mestre Graça! – Fala Luiz da Silva

- Como vai, Luiz?

- A vida aqui é maravilhosa, Seu Graciliano. Não sinto mais a angústia que sentia quando morava na terra. Logo se aproximou Fabiano:

- Como vai, mestre Graça. Não sinto mais sede nem fome aqui. A seca não mais existe. Nisso Paulo Honório se aproxima meio desconfiado, ressabiado; ainda não fora para as penitências obrigatórias:

- Não podia ter feito para mim uma personagem melhor não!? Ora, que personagem triste você colocou em mim, devia perguntar antes de determinar o que seus personagens seriam, quem já se viu determinar o destino das pessoas? Nisso um anjo chegou muito interessado na conversa. O anjo gostava de escritores, sempre parava para conversar com grandes escritores como Vitor Hugo, Machado de Assis, Voltaire, Charles Dickens, Dostoievski, Mário de Andrade, Eça de Queirós entre outros. No céu não existem vários idiomas, mas apenas um único idioma, assim, escritores famosos de todos os países puderam se encontrar nas mansões celestes e colocar os assuntos em dia em uma única língua, o celestês.

- Quer dizer que você é o famoso Graciliano Ramos!? O autor de estilo indecifrável? O autor de Vidas Secas, São Bernardo, Angústia, Viagem?

- Sim, fui eu que escrevi aqueles trabalhos medíocres! – responde Graciliano.

- Medíocres!? Ora, não seja modesto; o Brasil adora seus livros, você está sendo lido até no exterior, Graciliano. O problema é que alguns dos seus personagens que aqui também estão, reclamam muito por você  ter dado a eles um tipo que eles não queriam.

- É isso mesmo! Por que me criou grosseiro daquele jeito!? – quer saber Paulo Honório, o mais enfezado.

- Ora, Honório, eu escrevi aquilo que você era. Mas minha intenção era generalizante. Aproveitei seu personagem para utilizar como denúncia social. Eu queria mostrar o capitalismo e sua ideologia destrutivista para o homem. Quando você reflete no final do livro, aquela reflexão era a idéia que eu tinha do fim do capitalismo. Eu escrevi você daquele jeito porque com certeza os homens iam pensar melhor acerca da futilidade das coisas da vida. Eu queria denunciar que a ambição materialista e capitalista não preenchiam o vazio existencial do homem. Aí me veio a idéia de criar a Madalena que seria o oposto de você. Você representaria o capitalismo explorador do homem e Madalena representaria o oposto a você, ou seja, ela seria comunista. “Ouviram-se aplausos do anjo literato”.

- Não vejo graça nenhuma. Eu fui a cobaia, então! – completa o Honório.

- Não, Paulo, você ficou famoso porque fez muita gente entender que ser materialista apenas, não vale a pena, que temos que ser solidários com as pessoas. “Ouviu-se novos aplausos”.

- Agora quero ver como é que você vai se sair explicando a personagem desgraçada que eu fui. – Emenda Marina muito aborrecida.

- Marina, minha boa Marina. Você representa a mulher sertaneja e brasileira vítima do machismo do homem naquele começo de século. Eu coloquei em você características da mulher nordestina sofredora. Na verdade, você representaria no livro milhões e milhões de pobres mulheres sofridas do nosso antigo Nordeste brasileiro. Vocês não tinham direito a votar, não participavam das conversas do marido, e viviam apenas para cuidar dos filhos e do esposo. Eu quis mostrar em você, o universo humano da mulher nordestina sofredora.

- Viche nossa senhora! Tudo isso! – Marina já começa a ver as coisas de forma diferente.

- Na verdade, em todos os meus livros eu procuro denunciar a triste realidade dos homens sertanejos vítimas do descaso governamental. A seca no Nordeste, meus amigos, não é apenas por problemas climáticos, é acima de tudo um problema político. Se eles colocarem água para o povo em abundância, como conseguirão ganhar votos se eles enviam os carros pipa para abastecerem as comunidades nas vésperas de campanha? O sofrimento do povo do Nordeste do Brasil tem causa não apenas climática, mas acima de tudo política.

Ouvem-se novos aplausos no céu, é o anjo literato.

- Puxa saco! – fala baixinho Paulo Honório de si para si mesmo. Não foi ele que ficou longas noites em meditação! Não foi ele que teve de ficar várias noites em claro tentando entender o sentido da vida! Não foi ele que teve de ficar acordado várias noites porque o pio daquelas malditas corujas não deixava ninguém dormir.

- Paulo, tá na hora das suas penitências. Vejo que você ainda tem muita malícia no coração e precisa  se isolar em contrição ao Soberano. – Conclui o anjo.

Novo grande estrondo se fez ouvir no céu, apesar do terrível barulho não chegar a ferir os tímpanos de ninguém; era estranho, ninguém reclamava do barulho. Falanges de anjos agora passeavam em todos os cantos; saíam de todos os lados. Anjos azuis e brancos traziam taças nas mãos, de cores variadas, representando coisas diferentes. Novamente o céu se abriu e surgiu um cidadão nascido em Itabuna, Bahia, no ano de 1912. Estamos falando do nosso querido Jorge Amado de Farias, o compadre do Mestre Graça. Escritor famoso, escreveu nada mais nada menos que Gabriela cravo e canela, Dona flor e seus dois maridos, Tenda dos milagres, Tieta do Agreste entre outras obras antológicas. O céu todo o saudava.

- Não acredito, é você, Jorge? – Admira-se Graciliano.

- Claro que sou eu meu bom e velho Graça. Acha que eu iria para o inferno?

- Quer que eu fale a verdade?

- Ora, mas claro!

- Não acreditava muito não que você alcançaria o céu! Você era muito apegado às divindades do candomblé e cultos afros lá na Bahia. Eu achava que o céu não compactuava com essas crenças.

- Nem te conto a penitência que tive de passar, meu velho, nem tanto pelo tipo de adoração que tinha, e sim pelo sujeito enjoado que eu fui.

Nesse momento, Graciliano Ramos observa ao longe uma figura feminina que o observa atentamente. Ela tem os olhos bonitos, pele suave, cabelos levemente cortados, parece exalar o aroma das deusas... algo o intriga naquela mulher. Alguma coisa parece estranha. Deseja uma aproximação, assim o faz, aproxima-se um pouco mais, mais um pouco, de repente, não acredita:

Heloísa está a sua frente. Tinha sido sua esposa na terra. Ele não conteve as lágrimas que principiavam em cair suavemente. Um filme começava a passar em sua memória ainda não totalmente celeste. Fragmentos de memórias terrenas ainda estavam presentes naquele aspirante à vida eterna. Tais fragmentos de memória terrenos responsabilizaram-se em trazer à lembrança do Mestre Graça, em flashes, resquícios de um passado: lembrou do padre Macedo, do jornalzinho O Índio; do primeiro encontro dele com Heloísa na igreja, lembrou das cartas, da prefeitura de Palmeira dos Índios, lembrou de suas viagens... estava chorando. Alguma coisa inexplicável estava acontecendo com ele. Enquanto olhava para Heloísa, milhares de slides passavam pela sua cabeça; uns, bem rápidos, outros, mais lentos. Lembrou da mãe, dona  Maria Amélia, e veio-lhe à lembrança de um sertão distante, quente e árido que muito contribuiu para sua formação ideológica; veio-lhe à mente Buíque. A casa de comércio do pai. Viu o pai passar diversas vezes naquela visagem, severo, rígido, decidido. Teve medo, medo da rusticidade do pai, dos gritos... visualizava naquele momento de transe uma pracinha simples e pobre de uma cidadezinha interiorana, Quebrangulo, via a casa branca encostada na praça, casa em que nascera naquele longínquo ano de 1892. Onde estavam todos? Cadê Teotoninho Sabiá, Padre João Inácio, O Moleque José, Chico Brabo, cadê Chico Brabo? Não estava entendendo nada. Estava vivo? Morto? O que estava acontecendo? As visões continuavam. Agora via homens condenados pela justiça trabalhando na construção de uma estrada. Viu uma máquina de escrever e um homem eneblinado em fumaça de cigarro, escrevia um relatório, precisava dar satisfação ao governador do estado. Foi transportado a outro país. Viu-se vagando solitário pelas ruas gélidas de um país vestido de branco; da boca, saía fumaça; do espírito, esperanças. Aquelas pessoas estavam felizes, muito felizes naquele país, afinal, lá tudo era comum. Eis que ouve uma voz fugidia: “Graciliano, ô Graciliano”! – não consegue se fixar nesse chamado. As impressões continuam. Via agora meninos barrigudos e sujos num país seco e tórrido... de água e de espírito. Entristecera. Estava ficando louco? O que era aquilo? O que lhe estava acontecendo? Por que aqueles meninos barrigudos lhe apareciam assim? Chupando aquela chupeta encardida pendurada em um pano imundo?  Ouvia agora um choro de criança, o lugar estava escuro, apenas um resto de vela insistia em manter-se acesa. Uma mulher se levantava, lívida, prestativa, paciente. Consolava um menino chorão, seu filho. Percebeu que o choro da criança se mesclou em vozes chorosas, graves, sérias, taciturnas. Vozes de adultos em aglomeração taciturna, pesada, solene e triste. Fora transportado agora para outro lugar. Via agora um esquife teso deitado num caixão. Pessoas choravam a sua volta. Mulheres sérias, de preto. Homens que tiravam o chapéu em sinal de reverência, também usavam preto. Tenta aproximar-se para ver quem era aquela figura deitada naquele triste caixão. Sente temor... a morte é algo tão deprimente! Sente medo. Um cheiro de flores vencidas ajuda a petrificar o ambiente, sente um frio mórbido e gélido na espinha. Deseja aproximar-se para ver quem é aquela triste figura deitada, precisa de coragem. Aproxima-se...aproxima-se... de repente, dá um grande e terrível grito. O céu sente aquele grito sobremaneira. “Sou eu”! “Sou eu”! Sou eu”! – cai em pranto e desfalece. Acorda instantes depois, está sozinho numa sala imensa de paredes azuis. Em cada parede milhares de quadros ilustram cenas de suas obras e de sua vida. Agita-se um pouco, agita-se muito, devaneia. Sente-se perdido, distante da realidade. Será tudo um sonho? Agita-se ainda mais, mais, mais...

- Calma Graciliano, você está passando por uma fase de limpeza da memória, era necessário que você revivesse todas essas cenas da sua fase na terra – Intervém um anjo.

- Mas percebi que não fui enterrado na terra em que nasci. Era um outro lugar muito diferente daquele em que fui criado. Por quê? Por que fui enterrado numa terra estranha às minhas origens?

Heloísa se aproxima e comenta:

- Você ficou famoso Graciliano, acharam melhor enterrá-lo na cidade que enterrou os grandes da literatura e...

- Mas todos sabem que eu era indiferente à Academia, trabalhava não para a glória própria e sim para sustentar-me e sustentar a família. Acho que um homem deve permanecer fiel às suas origens até o último dia.

- Ninguém duvida que você era assim. Você realmente foi uma alma que não gostava de grandes alardes, conclui a ex-esposa.

- Nisso chega Paulo Honório um pouco mais calmo.

- Pensando direitinho, Graciliano, acho que...quer dizer... pensando por outro lado... acho que entendi o porquê de você ter criado uma personagem tão miserável quanto eu...é... acho que entendo agora. Da próxima vez, todavia, vê se arruma outro para ser o capitalista explorador. Não quero mais ser o Paulo Honório; contento-me em ser, talvez, numa outra escala da vida, uma pessoa melhor. Nisso entra Luiz da Silva dizendo que apesar de ter gostado de ser o Luiz introspectivo de Angústia, gostaria mesmo de ser era o Lobisomem, seu vizinho no romance Angústia.

- O [2]Lobisomem!? Tem certeza? – admira-se Graciliano. Por que gostaria de ser O Lobisomem?

- Ora, O Lobisomem é o ser mais consciente que já conheci em seus personagens.

- Ainda não entendi!

- Não entendeu? Como não entendeu? Afinal você cria um personagem e não sabe o porquê dele existir? Então se não sabes eu sei, meu caro! Certamente você o criou não levando em conta as razões implícitas no estilo de comportamento adotado por Lobisomem.

- Bem, então nos explique. Aproximam-se alguns escritores e o anjo literato para ouvirem o que Luiz da Silva tem para dizer. Começa:

- Lobisomem leu quase tudo que a ciência literária produziu, digo de mais relevante, claro. Passaram-lhe pelas mãos verdadeiras lendas da literatura brasileira e mundial. Descobriu os recônditos da literatura espanhola de Cervantes e seu [3]Dom Quixote. Descortinou o mundo inglês com Charles Dickens e suas obras de cunho social tais como As aventuras do Sr. Pickwick, A Loja de Antiguidades entre outros. A literatura alemã também lhe veio com o senhor Goethe e seu romance Werther, obra terrível que influenciaria muitos jovens literatos brasileiros a viverem esperando as virgens sonhadas que nunca se materializavam. Achou Machado de Assis um romancista fenomenal e sua literatura misteriosa. Quem diabos poderia provar que Capitu traíra Bentinho em Dom Casmurro?

Cuidado com as palavras, Luiz! – Admoesta-o o anjo.

- Perdão, meu anjo!

- Mas continue, continue, estou achando interessante! –Completa o anjo. Todos estão abismados da sabedoria de Luiz da Silva. Ele continua.

- Lobisomem, Graciliano, era muito diferente do perfil que a sua-nossa velha sociedade dos anos 20 e 30 traçava dele. Era um homem culto, muito culto. Como eu estava dizendo, Lobisomem vivia anestesiado pela literatura. O mundo italiano também veio até ele através de Leonardo da Vinci. E o que dizer do mundo francês? O mundo francês trouxe-lhe grandes lições com o escritor e filósofo Voltaire e seus livros filosóficos. Quem diab... desculpa, aliás, quem poderia explicar por que o livro Cândido desse escritor também se chamava O Otimismo, se ele só narrava desmantelos sociais? A mente de Lobisomem fez inúmeras viagens pelo mundo da literatura, buscava respostas escondidas, respostas para o propósito da vida, respostas irrespondíveis, proibidas para o homem. O isolamento de Lobisomem, e sua aparência descuidada, era porque ele vivia mergulhado quase o tempo todo em livros. Não tinha tempo para as frivolidades dos meios sociais.

- Quer dizer que ele queria saber qual o propósito da vida?- quer saber o anjo?

- Exatamente! – responde-lhe Luiz.

            - E ele conseguiu a resposta?

            - Deve estar ainda procurando.

            - Mas ainda não morreu? – continua o anjo.

            - Ele sim, mas muitos [4]Lobisomens ainda estão por aí.

            - Como assim, Luiz? - pergunta Graciliano abismado com seu personagem.

            - Existem vários tipos de seres humanos, dentre esses, poderíamos citar dois tipos de pessoas em especial: [5]as que vivem com intensidade e as que simplesmente vão levando. As primeiras são firmes consigo mesmas, aproveitam as oportunidades, nunca se sentem confortáveis por muito tempo. As últimas jogam com segurança. Nunca se forçam. Um ano se emenda no outro, porque os anos são na verdade a mesma coisa. Dessa forma, Lobisomem estava, ideologicamente, anos-luz na frente de seu tempo, porque os poetas, escritores e pensadores, apesar de viverem em épocas específicas, não pertencem àquela época. Pertencem a uma dimensão incompreensível aos humanos comuns.

            - Nossa, Luiz, que bonito, adianta-se um dos ouvintes. Faz-me lembrar a fábula da cigarra e da formiga de La Fontaine. Enquanto a formiga trabalhava pesado, a cigarra cantava. Durante todo o dia via-se as formiguinhas sábias suando penosamente para juntar o pão de cada dia; enquanto isso, a cigarra se ocupava apenas da boemia. Vivia a curtir os arroubos da época boa. Cantava e cantava. Mas como tudo na vida passa, a época favorável passou, foi embora o verão da existência. Um inverno tremendo se aproximava, ameaçador, terrível. As formigas não sentiram nem um pouco aquela época das dores e das grandes dificuldades, afinal, passaram a vida toda a ajuntar mantimentos, a garantir a espécie...

            - Epa! Isso é papo furado! – Adianta-se Paulo Honório. – Eu também passei a vida toda para conseguir a fazenda São Bernardo, toda a minha vida. O que consegui com isso? o que consegui? Me diga, vamos? Consegui meia dúzia de rugas na cara, mãos esfoladas, perdi  Madalena, filho, amigos, perdi a vida toda em viver só para ajuntar. Esqueci de viver.

            - Silêncio, Paulo, deixe nosso amigo continuar a sua narração.

            - Bem, como eu estava dizendo, as formigas não tinham mais o que temer, porque estavam bem abrigadas com os provimentos. Agora é a vez da cigarra, chegou para ela o inverno da existência e, não tendo provimentos nem moradia, dirige-se ao formigueiro e bate-lhe à porta para pedir abrigo e ajuda.

            - E o que as formigas fizeram? Deram abrigo a ela. – Quer saber um ouvinte.

- Que abrigo que nada, morreu de frio e de fome. Ah ah ah...

Todos ficam em silêncio, ninguém achou graça.

- Ora, vocês não acham que foi justo o comportamento das formigas? – pergunta o contador de histórias.

Paulo Honório, arrependido do que fora em vida, aproxima-se do homem e pergunta:

- Morrendo uma formiga, faria alguma falta? – questiona Paulo Honório.

- Ora, mas claro que não, afinal elas são muitas e...

- Mas suspeito que todos sentiram a falta do canto alegre e mavioso da cigarra, quando as formigas novamente voltaram ao trabalho, não acha?

- Bem, é verdade, isso é verdade! – conclui o contador de histórias.

- Entendeu a moral da história? – pergunta Graciliano.

- Ainda não!

As cigarras são os poetas da vida, aqueles que sabem viver a vida de forma intensa, sabem usufruir a brevidade da vida; as cigarras não vieram ao mundo a negócios, e sim a passeio. O mundo todo sentiu a falta do canto da cigarra e isso fez o mundo mais triste. Da mesma forma, os homens sensíveis, os poetas e escritores, quando morrem fazem falta; os homens comuns, não fazem falta a ninguém; só a família, talvez, e por pouco tampo.

Ouviram-se aplausos no céu. Graciliano continuou.

- As formigas, apesar de serem sinônimos de trabalho, representam as pessoas que vivem no mundo como se ele fosse eterno, vivem apenas para o trabalho, e não conseguem ver beleza nas flores, nos pássaros, na natureza. As formigas representam o capitalismo desenfreado, um capitalismo que envereda pelo mundo do trabalho especulativo, deprimente, hediondo. Um trabalho que não enaltece o homem, mas o escraviza. Vocês sabiam que as formigas trabalham em tempo integral? Isso seria exemplo de vida? Não, senhores, prefiro o silêncio dos loucos, o silêncio dos pensadores, o silêncio daqueles que se encantam com  as flores sem despregar os olhos nas oportunidades de crescimento. Devemos sonhar com os pés no chão; afinal, não se vive só de poesias, mas de alimentos também. Conciliar coração e razão é o segredo dos sábios.

Mais aplausos são ouvidos no céu.

- Espere aí, mas estávamos falando do lobisomem. O que tem a ver Lobisomem com tudo isso? – quer saber  o anjo literato, protetor dos literatos.

- Ora, meu protetor, tem tudo a ver. Lobisomem representa o homem inconformado em viver sem respostas para as grandes perguntas da vida, tais como quem eu sou, de onde venho e para onde vou? Dessa forma, vivendo em seu mundo particular, longe de se assemelhar com os homens comuns, tinham-no por louco e insensato.

- Ah!!! Agora entendi. Concorda o anjo.

Nesse mesmo instante, um barulho tremendo de prato caindo faz o homem acordar assustado e suado de longas oito horas de sono. Era o dia 11 de janeiro de 1930, precisava redigir o 2º Relatório de sua administração na prefeitura de Palmeira dos Índios e enviá-lo ao Governador  do estado de Alagoas. “Que sonho profético”, estranhou. Aproximou-se da janela e olhou para o céu. As nuvens estavam em seus lugares, deslizavam tranqüilas; as pessoas passavam normalmente para mais um dia de trabalho. Tudo estava normal, tudo estava como sempre, com exceção de um bode que comia as plantas do jardim de uma inquilina valente no outro lado da rua. Todos passavam e diziam “bom dia”, ao que respondia, bom dia! Tinha sido apenas um sonho, todos tinham sonhos, ora!. Não tinha por que se preocupar; afinal, sonhos são sonhos! Mesmo que sejam repletos de realidade.

 

Erisvaldo Vieira da Silva

Palmeira dos Índios, julho de 2002.

                                          

           

 

 

 

           

 



[1] Frase citada por um índio amerciano quando consultado acerca da venda das terras índias para o governo americano no século XIX.

[2] Lobisomem, personagem introspectivo de Graciliano Ramos no livro Angústia. Era um ser estranho vivendo particularmente um mundo estranho, só seu, individual, solitário. Por essa opção de estilo de vida era tido como alguém suspeito de ser louco ou alguma coisa qualquer de caráter deprimente e repugnante pela sociedade.

[3] Dom Quixote – romance do espanhol Miguel de Cervantes. O romance procura confrontar fantasia e realidade no confronto ideológico dos personagens principais. Dom Quixote, representando a fantasia; Sancho Pança, a realidade.

[4] Lobisomens - aqui figura como todos aqueles que não se contentam em viver uma vida medíocre na terra, ou seja, aqueles que acham que viver é apenas acordar, escovar os dentes, se perfumar, ir para o trabalho, se cansar e dormir; repetindo-se tudo no outro dia com pequenas variantes de monotonia.

[5]Trecho em itálico extraído do livro “O que vale a pena”, de Wendy Lustbader, editora Alegro, ed. 2ª.

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Erisvaldo Vieira ESCRITO POR Erisvaldo Vieira Escritor
Palmeira dos Índios - AL

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