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UMA JOVEM REBELDE

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— Você se quiser que varra! Mas é nada, vou bem estragar minhas unhas! — declara Paula para a mãe em tom de deboche.

— Diachos, a gente bota filho no mundo e é isso que a gente recebe. Você tá pensando o que, hein, menina!? Você só tem treze anos e pensa que é...

— Olha, quer saber de uma coisa... Você que fique aí conversando sozinha, eu vou pra casa da Fabiana.

E foi mesmo, deixando a mãe engolfada de suor. A varrer, a passar, a limpar, a espanar e a cozinhar. Pelo meio dia ela, a Paula voltaria para almoçar, como sempre fazia.

Gertrudes, a mãe da Paula, era pau para toda obra. Dividia o tempo em arrumar a casa logo de manhazinha e logo em seguida ia trabalhar em casa de família onde ficava até as quatorze horas. Apesar disso, dessa árdua rotina, Gertrudes era estudada. Terminou o ensino Médio e fez o primeiro ano do curso de Letras, mas, um casamento às pressas a fez desistir da faculdade. Paula tinha nascido e não conseguiu conciliar faculdade com deveres de dona de casa. Durante tantos e tantos anos viveria apenas em função da filha. Paula precisava de um caderno novo e lá estava a mãe para comprá-lo. Paula precisava de uma sandalhinha nova e a mãe logo comprava. Paula reclamava de um celular novo e a mãe fazia das tripas coração e, lá estava Paula com um celular novo. A filha não tinha do que reclamar. O pai da menina, bem, o pai da menina ficou com ela até os três anos de idade, pois, encontrando outra mulher, não hesitouem deixar Gertrudes.Caberiaà mãe criar e educar a filha. Apenas um plano de saúde ele concedeu à menina, mas isso durou apenas uns quatro anos. Desabou lá para as bandas do Mato Grosso e só era visto uma vez por ano, quando na oportunidade voltava para ver a mãe. Digo, a mãe dele. Não se interessava para ver a filha e muito menos Gertrudes.

O tempo foi passando e Paula beirava os quinze anos de idade. Rebelde, desobediente, vivendo os arroubos da juventude. A maior parte dos dias passava na casa das amigas. Quando voltava para casa era para comer e assistir à televisão. Apenas isso.  Até os estudos tinha abandonado. Não tinha quem a fizesse estudar. Em nada aceitava as lições de moral que a mãe, vez por outra, tentava colocar na cabeça dela. Tudo resultava inútil. Sempre dizia: “Os tempos hoje são outros, mãe, a senhora faz parte da geração cafona”. Sempre numa atitude de senhora do seu próprio nariz. Isso com quinze anos de idade. 

Paula, apesar da precoce idade, aparentava ter seus dezessete ou dezoito anos, de larga envergadura, já parecia uma moça feita. Crescera mais que o normal. Não era bonita, também não era feia. O corpo sim, era bonito, bem arrumado, “sarado”, como se diz na gíria adolescente. E tanto era que não faltavam meninões na casa dela. Todos interessados. Certo dia, Paula foi encontrada pela mãe em casa, sozinha, com um garoto de nome Pedro. Esse rapaz não era bem quisto na sociedade. Todos suspeitavam de que ele fumava maconha e já ajudara outros delinqüentes a roubar motos. A mãe se desesperou, mas tudo que conseguiu foi ser humilhada pela própria filha dentro de sua própria casa. Recebeu respostas mal educadas da garota, para gozo comedido do Pedro. Era demais!

— Gertrudes, cadê a Paula? — Pergunta dona Germana, uma vizinha.

—Deve tá correndo mundo como sempre.

Dona Germana calou-se, como quem queria entender algo e dizer alguma coisa.

— Acho que você quer falar alguma coisa, Germana. O que é?

— Nada não! É que... você sabe... Eu nunca gostei de me meter na vida de ninguém, mas...

— Fala, mulher, pode falar... Qual é o problema?

—Tua filha!

— O que ela tem?

— Você sabe onde ela está agora?

— Já disse. Correndo mundo.

— Ela está na casa do Severino. — Enfatiza Dona Germana.

— E qual o problema?

— Mulher, o Severino é um homem que mora sozinho, é separado da mulher, e tua filha entra na casa dele oito da manhã e sai de lá pelo meio dia. Você acha isso normal?

— E ele é separado? E aquela mulher que vejo ele com ela de vez em quando?

— Ora, Gertrudes, abra o olho, aquela é uma das mulheres com quem ele anda. Não tem compromisso com ninguém.

— Nossa mãe, não sabia! Também, só vivo trabalhando... Vou chamá-la agora mesmo.

Já em casa:

— O que a senhora anda fazendo na casa do Severino?

— Ora, por que essa pergunta agora?

— Porque o Severino é um homem separado e que vive sozinho e não pega bem você, uma menina, viver socada na casa dele.

— Ora, mãe, mas que cafonice. Eu estava apenas jogando vídeo game com ele. Que tem isso de mais? Tem outras meninas que vão lá também.

— Eu não quero mais você lá, ouviu? Não quero!

— Ora, que besteira! Velha cafona! E saiu no modo mais natural do mundo em direção ao seu quarto. A mãe perdeu a paciência. Pegou-a pelo braço, jogou-a no sofá, tirou uma sandália. Paula apanhou pela primeira vez na vida. A mãe estava tão “louca” que não escolheu lugar para bater, deixando Paula com marcas por toda parte.

 Aproveitando que a mãe saiu, corpo ainda dolorido, chorando, deitou na cama e ligou direto para a amiga Fabiana.

— Alô, Fabiana?

— Que foi, amiga, você está chorando?

— Foi minha mãe. — E contou tudo.

— Nossa, Paula que mãe mais cruel. Se eu fosse você, aprontava uma com ela. Ficava sem comer, ficava sem falar com ela, passava uma semana saindo todo dia, sei lá!. Inventa alguma coisa. Essas mães de hoje acham que a gente somos umas bobonas. Eu mesmo até já fiquei com um homem casado e minha mãe nunca soube.

Passaram-se sete anos. Paula estava com vinte e dois anos de idade e cada vez mais rebelde. Tão rebelde que vinha a casa apenas algumas poucas vezes, pois o restante passava na casa de amigos e de amigas. Paula estava nem aí para mais nada. Não terminara os estudos, não queria trabalhar, não queria envolvimento sério com ninguém. Tornara-se uma maria-vai-com-as-outras da vida entre um barzinho e outro; entre um show e outro, entre um rapaz e outro. Foi nisso que se transformou sua vida: um carrossel de aventuras. Existia até quem dissesse que ela inclusive já abortara um filho. Tudo ficou na hipótese. Ninguém nunca provou nada quanto a isso.

 

Era Natal.

 

— Não vai visitar tua mãe, Paula?

— Aquela velha chata deve estar cheia de coisas para me dizer. Não vou.

Paula, tendo dito isso, saiu e sentou sozinha num banquinho da praça, como fazia de vezem quando. Osamigos de aventuras estranharam aquela atitude inesperada e foram até ela. Paula estava amarela, olhos fundos, ar de cansaço, aparência cadavérica.

— Gente, acho que não estou bem. Estou sentindo umas coisas estranhas, um calor, uma dor de cabeça de rachar. Nem bem terminou de dizer isso, e, dos cinco amigos, quatro deles alegaram imediatamente ter que ir fazer alguma coisa. Ficou apenas Fabiana, sua velha “amiga”.

— Que é que tu tem, mulher? Ora, deixa de frescuras Paula. Só porque eu falei em tu visitar a tua mãe...? Não quer falar nada, não? Tudo bem, já vou indo. Acho que você quer ficar sozinha. Paula estava tão mal que não conseguiu responder a amiga, pedir-lhe socorro, pois estava quase sem ar, arfando. A amiga, por sua vez, era insensível para entender que ela precisava de ajuda, o que entendeu foi que Paula estava com uma de suas crises de depressão e deixou-a sozinha, ali, naquela praça vazia de árvores e de sentimentos.

 Quinze minutos depois, estava Paula no leito de um hospital. Fora salva por um senhor desconhecido. Moribunda. Sem ninguém. Sem documentos. Ninguém sabia sua origem. Sabia apenas que ela estava doente, muito doente. Depois de tomar um paliativo, Paula começou a pensar na vida que até então tinha levado. Pensou nos estudos que não fez. Pensou nos amigos que agora sabia não ter. Pensou na vidinha sem graça que até ali tinha levado. Pensou também na violência que foi tratada pelo Severino, quando a queria beijar à força e ela não aceitou. Pensou que poderia morrer a qualquer momento, longe de tudo e de todos. Estava ainda mergulhada em pensamentos quando lembrou da mãe. “Se ela estivesse aqui, certamente jogaria um monte de coisas na minha cara”! De repente, lembrou que a mãe tinha lhe deixado na penteadeira, dias atrás, uma pequena carta. “Onde está a carta”? Forçou um pouco a memória e lembrou que a tinha colocado no bolso da calça.

— Enfermeira, por favor, dá pra pegar uma carta no bolso da minha calça? — pediu esforçando-se para articular as palavras.

— Tudo bem.

Cinco minutos depois, estava Paula naquele leito de hospital, exalando o cheiro de éter do ambiente ambulatorial, entre gemidos de outros doentes e a agonia de outros que se despediam desse mundo. Abriu a carta pela primeira vez. Tinha sido a mãe que escrevera. A luz perene vinda da janela daquele ambiente e o seu estado de prostração contribuíram para que ela conseguisse pela primeira vez na vida concentrar-se em uma leitura. Dizia assim a carta:

 

“Ana Paula. Quando você nasceu, com aqueles olhinhos brilhantes, senti-me como que tivesse renascido. Olhando para o seu rosto miudinho, senti no coração que Deus estava me dando uma oportunidade de ser feliz, já que o teu pai me maltratava muito e me abandonou. Você era para mim a minha razão de viver. Pois somente a tua existência me motivava a prosseguir a vida. Não fosse você, certamente eu não mais teria razões de existência. Deixei os estudos por você, para cuidar de você. Trabalhei em casa de família e ainda trabalho, como você bem sabe, muitas vezes sendo humilhada, somente para que não te faltasse nada. Você foi crescendo, crescendo... Fiz de tudo para não te magoar. Fiz os teus gostos, tuas vontades. Muitas vezes deixei de vestir somente para comprar aquilo que você precisava. Sacrifiquei o resto de minha vida, longe do teu pai, longe de outros homens somente para ter tempo de me dedicar exclusivamente a você. Mas o trabalho intenso não me permitia isso. E acho que foi nisso que errei. Você não me entendeu. Nunca me entendeu. Pensando em te fazer o bem, acho que te fiz o mal em não te criar fazendo por merecer as coisas que te dava. Quero que saibas, minha filha, que independente de tudo, eu te amo muito. Sempre que você precisar de mim, estejas onde estiveres e fazendo o que estiveres fazendo, eu sempre estarei contigo. Tem sido difícil para mim aproximar-me de você ultimamente. Você não vive mais em casa, vem aqui uma vez ou outra. Você não reconhece mais a tua mãe, pois estou velha e acabada, sem forças. Mas isso não importa, o que importa é que no dia que você reconhecer que sou tua mãe, e que apenas desejo o teu bem, estarei aqui de braços abertos para você. Espero que isso aconteça. É o que tenho pedido a Deus durante muito tempo. Mas Deus tem desígnios estranhos de se entender. Ele deve saber o que faz...

Não esqueça: você mora em meu coração. E já te perdoei as agruras que me tens feito passar. Na hora que quiseres voltar, estarei aqui te esperando. Sempre”.

 

Tua mãe

 

 

Lágrimas quentes e salgadas deslizavam suavemente pelo rosto de Paula. Naquele momento, entendeu que os amigos podem até ser bons, mas nada e nem ninguém poderia substituir o calor de uma mãe. Onde estavam os amigos? Que adiantou viver sempre em função deles? Na hora em que mais precisava, lá estavam eles, distantes. E nunca fez mal a eles, como fez tantas vezes à pobre mãe. Naquele instante, mergulhada em reflexões profundas, Paula sentiu um calor diferente. Não era um calor de morte, era calor de vida. Recuperaria a amizade com a mãe, diria a ela coisas íntimas, pediria a ela conselhos, a ouviria sobre assuntos de mulher, não mais a trataria de forma brutal. Sim, faria isso. Procuraria estudar, arrumar um emprego, ajudar a pobre mãe a cuidar da casa. Será que ainda teria essa chance? Será que escaparia daquela doença estranha que os médicos não quiseram dizer o que era? Paula estava suando frio, tendo alucinações, gemia, chamava pela mãe insistentemente... Depois de uma injeção, dormiu.

No outro dia, logo pela manhã, ainda dormindo, sentiu alguém lhe acariciando ternamente o rosto. Acordou.

— Mãe! Mãe! É você? Eu estava... mãe, eu estava...

— Fique calma, não faça esforço. — Falou-lhe carinhosamente. — Não te deixarei aqui sozinha. Nunca mais te deixarei sozinha, minha filha.

— Mãe, me perdoe, eu...queria dizer que...

— Não diga nada, eu sei, Paulinha, eu sei... Fique calma, vou ficar aqui com você, tá bom?.

Ana Paula permaneceu vários dias no hospital. Uma doença adquirida no mundo a debilitou bastante, mas, depois de 18 dias de internação, voltou para casa.

Sua vida mudou deste então. Não era mais aquela Paula rebelde de outrora. Começou a estudar de novo, arrumou um emprego em uma loja de perfumes caros, começou a ajudar a mãe. Em pouco tempo, sua aparência também mudou. Seus cabelos brilhavam, sua pele estava corada e bonita, seu sorriso voltou. Paula tinha voltado do fundo do poço que, infelizmente, muitas meninas se jogam por não ouvirem o conselho das mães e dos pais. Paula reviveu. Nem todos que entram pelo caminho da desobediência têm essa chance, a chance de recomeçar. Hoje, passados cinco anos, Paula é casada, bem casada, tem dois filhos lindos. O marido não é o melhor homem do mundo, mas em nada se parece com o pai de Paula. Nunca ousou nem levantar a voz para ela.

Era feliz.

 

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Erisvaldo Vieira ESCRITO POR Erisvaldo Vieira Escritor
Palmeira dos Índios - AL

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