Flagrantes adiposo
Morar em cidade pequena propicia a criação e manutenção dos laços de amizades, o sentir-se aconchegado com as trocas permanentes de calor humano, o ter-se como indivíduo e não como mero número ocupante de um lugar no espaço. Embora a atribulada vida moderna, que faz com que cada um reduza-se ao seu nicho, ao seu quadrado, com mais relacionamentos virtuais do que presenciais, seja por e-mail ou pelas redes sociais, o mero sair de casa, quase invariavelmente, resulta em encontros que se convertem numa saudável oportunidade de ressurreição de fatos pitorescos e agradáveis dos tempos compartidos na infância, adolescência.
Naquele feriado patriótico, optara por almoçar fora, com o marido e os filhos, num restaurante há pouco inaugurado na parte alta da cidade. A filha, recém-habilitada, munida da coragem que lhe é peculiar, quis conduzir seu novo veículo ao local, desatenta, porém, ao estresse do pai, a despeito das advertências, maternalmente protetoras, de que aquilo poderia reverter-se numa experiência traumática. “Cole mais no seu canto”, “olhe o carro do seu lado”, “entre mais devagaaaaarrr”, “paaarrrrreee, não viu o sinal?”... A pressão psicológica foi acintosa no sentir da novel motorista, que não disfarçou o choro raivoso, logo minimizado com o encontro, na porta do restaurante, com a sempre lembrada professora do maternalzinho – aquela talentosa contadora de histórias, mas que não lhe conseguira incutir o hábito da leitura (rsrsr) -, que gracejou com as próprias experiências desastrosas e as de sua filha adolescente, que, ali presente, apressou-se em recomendar jamais dirigir com o pai ao lado.
Mais alguns passos, outro encontro. Tratava-se de uma amiga de colégio, que almoçava na companhia da filha e do marido, por sinal, seu professor de faculdade – coisas mesmo de cidade pequena. Depois de cumprimentar o mestre com “satisfação em revê-lo, professor”, ouve a companheira de classe lembrar-lhe de retomar as velhas reuniões da turma... “Essa aqui é minha filha caçula...”. “E essa é a minha, a mais nova motorista da família...”. As respectivas caçulas já conversavam entre si acerca dos reveses no trânsito...
Antes de servir-se no balcão do “self-service”, avista outra professora de faculdade, de quem seu filho também foi aluno. Após as primeiras garfadas, enquanto na companhia do marido e das filhas, chega-lhe uma estimada prima com o mesmo prazenteiro sorriso estampado na face, revelando a alegria do reencontro. Beijos e abraços apertados aplacadores da saudade. A prima, mantenedora de uma silhueta esguia e elegante, em franco descompasso com a sua, já desconfortável no manequim 42, rendida à avalanche das células adiposas oportunistas, fê-la lembrar de seu “curto-circuito neuronial”, conforme atribui ao fato de ter-se rendido ao sedentarismo, ao excesso de trabalho e aos hábitos hedonistas em relação às guloseimas e aos aperitivos dos finais de semana. Com seus botões: “que minha outra amiga de colégio – aquela que elegeu como sua endocrinologista – não me veja!”. Preciso retornar às consultar médicas, com vistas ao acompanhamento dos hormônios da tireoide, mas suas admoestações far-me-ão sentir fracassada”.
O esposo queria pedir sobremesa. Por seu turno, opinou em comprar chocolate no supermercado onde o restaurante se encontra instalado, ali, bem ao alcance das mãos, com gôndolas fartamente ocupadas pelas mais variadas e tentadoras guloseimas. Prescindira da cestinha para equilibrar com os braços tudo aquilo que lhe crescia os olhos, acumulando com os produtos escolhidos pelo marido e pela filha. Quando as mãos já estavam bem “gordas” com tantas delícias, quem ela avista?! Pasma e sem ter como abrir buraco no chão, força foi render-se ao gracejo do inusitado. Era ela, nada menos do que sua amiga e endocrinologista!!! “Eu não estou vendo nadinha” – assevera a amiga médica. Risos de um lado e do outro até o esvair do fôlego. Aliás, as observações se voltaram para o marido, que há mais tempo dela fugia; para a filha, até se firmar nela. “Façamos o seguinte: eu preciso mesmo retornar ao seu consultório, mas na condição de você não me fazer subir na sua balança delatora, combinado?”...
(Publicada, em O Jornal, edição de 25/09/2012, com alguns cortes em função do limite de caracteres)
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