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MEMORABILIAS VIVARTO-CHALITISTAS: ou, tirando “ciscos” dos olhos de Pedro Lucena (2ª parte – versão inacabada)

• Atualizado

 

                                                                                                                                 Ricardo Maia

 

 

Na Pinacoteca Universitária da UFAL, hoje situada no Espaço Salomão de Barros Lima (Pç. Visconde de Sinimbu, 206, Centro de Maceió), o jovem alagoano Pedro Lucena (1977-    ) vem expondo, desde a noite de 22/11/2012, um conjunto de trabalhos em arte visual que é constituído por dezoito obras. Todas estas produzidas com nanquim, aquarela, acrílica e lápis de cor sobre papel – ao longo do biênio 2011-2012. As dimensões das mesmas variam entre 21cm X 14cm e 1,80m X 45cm. As pinturas das paredes das duas salas expositivas da mostra são enormes obras à parte. Belas obras que remetem às ilustrações de livro de historinhas infantis.

A exposição estará aberta ao público até o dia 25 de Janeiro de 2013. Às segundas-feiras, quartas e sextas, das 08h30 às 12h30 / 14h às 18h; às terças e quintas-feiras, das 08h30 às 12h30 / 14h às 20h.

Nesta segunda parte do nosso ensaio, daremos continuidade a nossa análise da belíssima mostra de Lucena, na Pinacoteca, focando, desta vez, os títulos das obras nela expostas tendo em vista produzir inferências sobre os mesmos nas suas relações com o contexto histórico da arte. Esta análise e seus subseqüentes comentários, é importante salientar aqui, nós os produzimos com base nas teorias de Jacques Derrida (1930-2004): um dos significativos representantes das chamadas “idéias contemporâneas” ou “pós-modernas”.

Ora: na atual mostra de Pedro Lucena não só as obras expostas, mas também os títulos destas, marcam o lugar de uma elaboração teórico-especulativa que, no processo de interação simbólica com seu público mais esclarecido ou no vir a ser da recepção mais intectualizada destas, sempre ultrapassa o querer-dizer do artista expositor. O que acaba por revelar, em suas criações, aqueles marcadores de uma atenção textual concentradíssima que, da parte desse mesmo público, está sempre para acontecer. Aliás, como condição sine quo non para se levar o seu trabalho interpretativo tão longe quanto possível. Portanto, aqui, o nosso objetivo principal é ler, no sentido da semiologia geral e nos títulos das obras de Pedro Lucena, o que Derrida (2001, p. 68-69) assinala como sendo “[...] o texto histórico recalcado-reprimido pelo discurso logocêntrico (idealista, metafísico, religioso) considerado como discurso de uma ideologia dominante sob suas diferentes formas históricas.” No caso de Lucena, as formas históricas do vivartismo e do chalitismo de ver, viver e constituir as regras da arte em Alagoas. E tudo isto para comunicar sobre o pressuposto de que os “Ciscos” dos quais nos fala, metaforicamente, o referido artista alagoano em sua atual exposição, são, na realidade psíquica de sua obra, MEMORABILIAS VIVARTO-CHALITISTAS... Ou seja, um duplo e indizível reconhecimento do legado produzido pelos vivartisas e chalitistas, nos idos de 1980. Legado esse deixado à sisbordo da geração criativa de Lucena na Alagoas artística.

Tais MEMORABILIAS, podemos pressupor derridianamente, constituiriam no “texto histórico” referido – sobretudo onde este se refleteria ou estaria referenciado na obra de Pedro Lucena – pontos de intersecção ou de cruzamentos históricos, regiões ou camadas de sentido, lugares de questionamentos e/ou espaços de convergências estratégicas VIVARTO-CHALITISTAS onde Lucena parece desejar (no duplo sentido filosófico e psicanalítico) interrogá-los. Mas interrogá-los, justamente, nas especificidades de suas “marcas” históricas para “re-marcá-los” para si e para a sua geração na Maceió artística de hoje. E ele parece fazê-lo, como condição sine quo non, para articular estas “re-marcas” com outros campos “históricos” (entre aspas mesmo, segundo Derrida [2001, p. 67]) do texto geral. Texto esse, que é também, para o grande mestre da desconstrução (2001, p. 67), “[...] aquilo que inscreve e desborda ‘praticamente’ os limites de um tal discurso.” Pois, de acordo ainda com nosso grande mestre:

Há um tal texto geral em todo lugar em que (isto é, em todo lugar) esse discurso e sua ordem (essência, sentido, verdade, querer-dizer, consciência, idealidade etc.) são desbordados, isto é, em que sua insistente demanda é colocada em posição de marca em uma cadeia que ela tem, estruturalmente, a ilusão de querer e acreditar comandar. Esse texto geral, obviamente, não se limita, como se poderá (poderia) apressadamente compreender, aos escritos sobre uma página. Sua escrita não tem, de resto, nenhum outro limite exterior que não seja o de uma certa re-marca. A escrita sobre página, e portanto, a ‘literatura’, é um tipo determinado dessa re-marca.” (DERRIDA, 2001, p. 67).

Aqui é interessante notar ainda que o que Derrida (2001, p. 51) chama de “texto em geral” seria “[...] um texto que não se limita ao reduto do livro ou da biblioteca e não se deixa comandar por um referente no sentido clássico, por uma coisa ou por um significado transcendental que regraria todo o seu movimento.” E, então, assinalando os chamados “efeitos de referência” aos diversos aspectos da “realidade”, isto é, “a história, a luta de classes, as relações de produção etc”, Derrida (2001, p. 99) diz:

O que se produz na agitação atual é uma re-avaliação da relação entre o texto geral e aquilo que acreditávamos ser, sob a forma da realidade (histórica, política, econômica, sexual, etc.), o simples lado de fora referível da linguagem ou da escrita, estivesse esse lado de fora quer em simples posição de causa quer em simples posição de acidente. Os efeitos, na aparência simplesmente “regionais” daquela agitação têm, pois, ao mesmo tempo, uma abertura não-regional, destruindo seus próprios limites e tendendo a se articular, de acordo com modos novos, sem presunção de domínio, com a cena geral.

Posto também isso, nos dois conjuntos de comentários que seguem esta introdução, analisamos os títulos das obras de Lucena. Ou seja, as maneiras pelas quais os quadros deste artista foram intitulados e a que seus títulos, em termos de pós-modernismo poético, aludiriam de modo implícito e/ou parodístico. Tal análise revelou, sem dúvida e inclusive, na produção do referido artista, aquela espécie de “trabalho silencioso dos itálicos e das aspas” (Derrida, 2001, p. 56). Um trabalho subjetivo que, além de demandar “[...] um itinerário de leitura imenso e minucioso” que sempre leva muito tempo e nos obriga a jogar “[...] com a semelhança fortuita, com o parentesco de puro simulacro entre o seme e o sêmen.” Muito embora já avisados, por Derrida (2001, p. 52), da total ausência de “comunicação de sentido” entre os dois. Mas também de que, “[...] nessa derrapagem e nessa colisão de pura exterioridade, o acidente produz certamente uma espécie de miragem semântica: o desvio do querer-dizer, seu efeito-reflexo na escrita, põe a coisa em movimento.” (DERRIDA, 2001, p. 52)

Vejamos, portanto, a seguir, os comentários analíticos aos títulos das obras:

1º CONJUNTO/Primeira sala da Pinacoteca:

1. “O Casulo” ↔ “O canto que vem do vento”. O primeiro título, no imaginário psicossocial da mostra de Pedro Lucena, é a melhor configuração do que se pode descrever, derridianamente, como sendo o “interior calafetado do [universo] ‘simbólico’” da atual exposição do artista. Ou, ainda, como um daqueles “[...] grupos fechados e dogmáticos que se transformam” podendo alguns até se tornar “inadequados e outros tomarem seu lugar” (MOSCOVICI, 1989, p. 61). Em última análise, um espaço sócio-metafórico radicalmente diferenciado – pois, naturalogicamente diferido – do da cultura da violência machista, ‘incrustada’ em Alagoas, contra mulheres e homossexuais.

Mas só podemos interpretá-lo, assim, se pusermos a cena figurativa do quadro que ele denomina em relação com a cena contida em outra obra da exposição, intitulado “O canto que vem do vento”, onde vemos duas “figuras [femininas] singulares” (GUERRA, 2001), em delicada interação homoafetiva, que, como duas “borboletas majestosas” (Danaus plexippus), usam golas elisabetanas como sinal de nobreza em suas indumentárias antiquaristas.

O anacronismo indumentário das golas elisabetanas nestas butterflies in free, pressupõe, sem sobra de dúvida, na referida obra de Lucena, uma dupla referência: uma (apologética) à nobre liberdade lésbico-feminista, muito embora esta ainda esteja historicamente trancafiada numa espécie de “Casulo” para o controle e guetização do corpo desejante da mulher; principalmente da mulher homossexual; e, outra (crítica), à mentalidade medieval que ainda subjaz profundamente investida em uma sociedade brutalizada e patriarcalista que hoje apenas se traveste de modernidade. Ou pior, de “pós-modernidade”... O que torna particularmente questionável, neste sentido, a colocação do cineasta Renê Guerra (2012) no curioso texto de parede da mostra, onde ele diz: “O projeto do progresso faliu. Agora, só resta entendermos que o reconhecimento das nossas identidades está no que foi jogado fora.”

Pressupomos que por essas “nossas identidades” devemos entender aqui, também, aquelas outridades emergentes ou ressurgentes na história da “nossa” cultura ocidental. Outridades essas que, por exemplo, o próprio Renê Guerra em seus dois primeiros filmes de sucesso soube muito bem reconhecer. Aliás, numa atitude criativamente compartilhada por Pedro Lucena em Maceió quando este ilustrou, com seu traço já pecularíssimo, o livro Cantata Sáfica: cenas da vida lésbica (Poligraf, 2011. 92p.), do poeta alagoano Marcos de Farias Costa.

Quanto à representação paganizada da figura feminina vinculada a lagartos vivos passeando, surrealísticamente, por entre grossas madeixas – que nos fazem lembrar as cabeleiras rastafári – também se pode dizer o mesmo citando as telas da Série “Lagartixemburgo” (1983) de pinturas, também surrealistas, de Getúlio Motta. Aliás, uma interessante reprodução de um dos quadros desta referida séria, pode ser vista no catálogo que comemora o 30º aniversário da Pinacoteca Universitária da Ufal.

Por isso mesmo vale notar que Lucena só reconhece (e, portanto, credita com exclusividade) “um” único e só “encontro” – e mesmo assim “imaginário” – “entre as obras dos artesãos da Ilha do Ferro e a poesia do poeta matogrossense Manoel de Barros” (cf. a filpeta da atual mostra do artista expositor aqui comentada), esquecendo-se, em consequência, de seus outros encontros com vivartistas e chalitistas e, também, com poetas alagoanos. Ou, pelo menos, com as obras destes. O que explica o caráter “imaginário” desse encontro tão supostamente restrito e excludente. Pois nele, de fato, “[...] só resta entendermos que o reconhecimento das nossas identidades [artístico-locais] está no que foi jogado fora”, por Pedro Lucena, daquela “consciência [histórica, por ex.,] de vivarte” (cf. MAIA; VIEIRA, 1984-85, fls. ?).

Ora: na história da arte visual em Alagoas, as obras que associam livremente o corpo da mulher à árvore e/ou à madeira, não são nenhuma novidade. Em meados dos anos 1980, por exemplo, o vivartista/cruzadista Paulo Caldas já pintava uma belíssima série de quadros surrealistas, em óleo sobre tela, intitulada “Signos Marginais” (1985-86), onde o corpo da mulher aparecia configurado como fálicas torres de madeira idênticas àquelas dos castelos medievais.

Nesse sentido surreal-medievalista, Pedro Lucena parodia uma das obras-primas do final da Idade Média: a Pietà (1499), de Michelangelo (1475-1564). Pois no quadro intitulado “De onde eu vim”, vemos uma mulher compadecida que ampara maternalmente, em seu colo, uma árvore desfolhada. Aliás, totalmente desfolhada, derrubada e morta. Pela referência indireta ao Cristo assassinado do referido escultor renascentista – aliás, não só: também ao “Cristo de colheres de pau”, de Getúlio Motta – tudo indica que o mencionado quadro tenha uma relação altamente dialógica com um outro produzido com visível intenção de denuncia. Mas denúncia cristã-mistificadora do anti-ecologismo na atualidade. Pois, em outro quadro, a figura de uma velha senhora (a mãe-natureza?) com corpo de madeira e vestida de “Pierô”, parece estar pronta para deixar o “Paraíso” (perdido) de Pierre Chalita, e ir, à contragosto e definitivamente, para o “Baile” – que é, também, deste grande mestre da pintura em Alagoas. E a velha senhora (Alagoas?) o faz, observando melancolicamente sete misteriosas árvores. Todas estas em pleno outono, se encontrando ‘incrustadas’ em seus próprios braços como espécies de chagas protuberantes do Cristo.

Ora, como se sabe, a profunda homologia entre o campo artístico e o religioso que se constata na Idade Média e que, em Alagoas, também se verifica na maioria das obras do “chalitismo”, especialmente no polêmico “Cristo Nu” de Pierre Chalita (1930-2010), encontra-se ainda hoje, inclusive, na exposição de Pedro Lucena. Daí porque suas “imagens ingênuas e quase infantis” conseguem nos “[...] colocar em contato com o sagrado e com o mistério. Como se uma criança brincasse de celebrar uma missa no meio da noite.” (GUERRA, 2012).

2. “Nada Além das Velhas Árvores” ↔ “Sobre Árvores e Brotos”. Se relacionados, de modo dialético e redutor, através do binômio “brotos”/“velhas árvores”, estes dois títulos remetem, obviamente, a questão geracionista. Uma questão que, para Pedro Lucena, parece ser tão essencial quanto era para os vivartistas mais radicais e juventudistas da Maceió artística dos anos 1980. O primeiro título, inclusive, remeteria à lamentosa constatação, feita à época pelos vivartistas, do “marasmo infame” (VIEIRA apud MAIA; VIEIRA, 1984, fls. 2) no campo artístico alagoano. Um campo onde, na referida época, dominavam e predominavam “[...] os matusaléns [sic] da pintura alagoana, que vivem em pleno mundo da lua figuracionista, insulados da modernidade (palavra lavrada por Baudeleire), para quem os parâmetros de arte exauriram-se no fulgurante século XIX. É uma pena.” (COSTA, 1987, p. 4).

3. “Incrustrado”.

4. “Assim eu pude ver além”. No contexto da nossa interpretação, este título, sem sombra de dúvida, remete à questão do poder (simbólico) de visão e di-visão (BOURDIEU, 1990). Um poder que foi obtido e exercido, nos anos 1980, pelo movimento vivartista, sobre o campo histórico das artes visuais em Alagoas. Sem dúvida, um dos efeitos positivos do vivartismo quando este legou às gerações seguintes de artistas plásticos locais uma visão histórica de longo alcance do campo artístico alagoano. Muito embora uma visão que só seria incorporada, de modo inconsciente, como “ciscos” (simbolicamente sintomáticos) nos olhos desta mesma geração, perturbando sua visão anistórica da arte em Alagoas; mas, por outro lado, saciando “Não somente a sede de pensar em grupo, a fome de todos os frutos-ARTE” (VIEIRA citada por MAIA; VIEIRA, 1984, fls. 2).

5. “Sobre Árvores e Brotos”.

6. “Ela”. Este título remete à escolha do gênero e sexo que mais era interessante, tanto aos chalitistas quanto aos vivartistas, para se representar visualmente a figura humana nos anos 1980 da Maceió artística. Daí o mulherio predominante na cena imaginária da obra de Lucena. Aliás, um insólito mulherio medieval, elegante, quase sempre deprimido e exclusivamente branco.

Entretanto, contrariando essa branquitude humano-feminina, é dominante a negritude dos insetos representados por Lucena. No quadro intitulado “De Profundis”, por exemplo, borboleta, mariposas e libélulas pretas infestam os cabelos ao vento e o rosto branco, pálido e melancólico de uma cabeça (decapitada?) de mulher que nos faz lembrar a aristocrata Maria Antonieta (1755-1793) depois da guilhotina.

Já num outro quadro, outra cabeça (decapitada?) de mulher, também de pele nívea e muito afilada, com cabelos ao vento, ostenta, em sua longa cabeleira, cinco lagartos passeando por suas grossas madeixas. Três dos quais, é interessante notar, são negros. Aliás, as grossas melenas que servem de passarelas para estes reptilianos, assim como também para os insetos na outra cabeça de mulher, remetem, inequivocamente, à “Medusa” (1596/1597) de Caravaggio (1571-1610).

Nesse sentido, vale notar, inclusive, que negras são também as duas serpentes e a população de oitenta pássaros (anus ou urubus?) que co-habitam, pacificamente, os longos galhos de uma grande árvore florida e não-preta. A mesma população sombria e emplumada volta a aparecer, na segunda sala da exposição, em um dos vinte pequenos formatos produzidos em preto-e-branco. Desta vez, ocupando uma árvore completamente desfolhada e encharcada por uma grande inundação.

Mas como que fugindo a esse predomínio da negritude “natural”, no quadro intitulado “O canto que vem do vento”, quatro pássaros coloridos (um verde esmeralda, dois azuis royales e um laranja com asas vermelhas) encontram-se pousados nos galhos de duas árvores escuras como carvão. Todas duas, aliás, com folhas douradas que estampam inteiramente as suas cascas. Esses quatro pássaros, pelo colorido vivo de suas plumagens, parecem cantar exultados “O canto que vem do vento”... E isso, talvez, por contemplarem logo abaixo deles a interação afetuosa entre duas figuras humanas femininas numa espécie de “casulo” situado entre as duas árvores já descritas.

Esta possível historieta, construída as partir das narrativas imagéticas de Pedro Lucena, que é também um excelente ilustrador de livros para crianças e adultos, é uma espécie de crônica, em quadrinhos ou story-bord, de um dia-a-dia tipicamente provinciano. E se falamos aqui em “story-bord”, usando um jargão cinematográfico por excelência, certamente não é por acaso; pois na obra de Lucena, com toda certeza, há também algumas referências a filmes hollywoodianos inesquecíveis que merecem ser assinaladas. Uma dessas referências, sem dúvida, é ao filme Guerra dos Mundos (EUA, 2001). Mais especificamente na versão deste clássico refilmado, por Steven Spielberg, em que seres alienígenas invadem brutalmente o planeta Terra para ocupá-lo destruindo a humanidade em seu próprio habitat natural e social.

Daí porque é justamente o cineasta Renê Guerra (2012) quem nos fala, no texto de parede da mostra de Lucena, da questão do “estrangeiro extraterrestre”: uma questão importantíssima e de fato presente nos quadros do artista expositor. Mas sempre como metáfora de um etnocentrismo, estúpido e invasivo, que não respeita outros “mundos” culturais que sejam diferentes e divergentes do seu... Ao colocar essa questão, Renê oferece ‘panos pras as mangas’ aos leitores das imagens de Lucena que, sendo também cinéfilos aficionados em filmes de “extraterreste”, sejam capazes, inclusive, de perceber as referências sutis nos quadros do artista a certas obras da sétima arte.

Nesse caso, então, podemos pressupor aqui uma relação entre o quadro acima descrito e um outro intitulado “O casulo”; pois, neste, como se Lucena quisesse revelar a mesma cena em uma versão invertida – isto é, social e desencantada – vemos, no lugar das árvores, duas interioranas bisbilhoteiras, excitadas pelo desejo de saber, tentando descobrir o que se passa no interior hermeticamente fechado de um surreal “casulo” gigante. No primeiro plano desta cena figuracionista, rizomas vermelhos e aéreos, que mais se parecem com artérias sanguíneas, crescem e se expandem insidiosamente. Os mesmos que, por sua vez, parecem indicar, como no filme Guerra dos Mundos, de Spielberg, a sua origem “extraterrestre” a despertar a curiosidade humana desavisada que, logo depois, se vê ameaçada.

Nessa última situação, como explica Renê Guerra (2012), o “Eu” se depara com “a estranheza” de um encontro que o obriga mergulhar na sua própria “estranheza infantil, sem proporção e sem sexo.” Compreende-se, então, como Pedro Lucena traduz vivartisticamente – mas incorporando o ponto de vista da "maioria" chalitista ou monoculturalista – o que uma "minoria ativa" traz em sua própria linguagem diferente e divergente (MOSCOVICI, 1989, p. 61). Aliás, uma linguagem que se alastra cada vez mais, e insidiosamente, em um mundo que se vê e quer sempre ser visto como sendo o único habitado num universo cultural infinito de múltiplos mundos psicossociais.

No entanto, as referências implícitas a filmes holywoodeanos de terror e ficção-científica não param com o Guerra dos Mundos. Outro filme do mesmo gênero que parece, também, ter influenciado a criatividade de Pedro Lucena parece ter sido Invasores de Corpos (EUA, 1978). Nesta obra-prima de Philip Kaufman, um mundo botânico “extraterrestre” que invade insidiosamente o organismo de mulheres e homens para subverter a condição humana, transformando-a em pura natureza, está nitidamente presente. Por exemplo: em um dos vinte quadros em pequenos formatos, da série “remoendo” (2012), vemos um rapaz com um punhal, na mão, cortando o próprio braço. Da incisão cirúrgica desesperada, uma raiz aérea sai, surrealísticamente, como se fossem um enorme verme ou serpente vegetal enlaçando tal moço.

Esse recurso de Pedro Lucena à imaginação cinematográfica, para criar tal obra pequenina, decerto veicula uma crítica à alienação dos que vegetam num eterno presente. Uma crítica que na certa reafirma o que disse, certa vez, Maria Amélia Vieira (VIEIRA apud MAIA; VIEIRA, 1984-85, fls. ?) no Grupo Vivarte: “É preciso sangrar para nos reconhecer”... Nem que tenhamos que fazer o mesmo que o rapaz do quadrinho de Lucena: usar um “[...] instrumento cortante para ataque ou defesa contra o inimigo” (VIEIRA, 1984-85, fls. ?) dentro de si próprio. Que inimigo? O esquecimento que naturaliza a história...

7. “Dos que rastejam e dos que cantam”. Neste título, as duas categorias identitárias antagônicas – “vivartistas” e “chalitistas” – da Alagoas artística nos idos de 1980 parecem estar radicalmente subsumidas, de modo valorativo e implícito, pela metáfora naturista de Pedro Lucena. Portanto, o espectador já informado de que os vivartistas se viam como “pássaros”, não sentirá dificuldade em identificar quem são os que “cantam” (“O canto que vem do vento”?) nem quem são os que “rastejam” por, na certa, representarem o poder político vigente no referido contexto epocal.

É também interessante notar aqui que o “vento” cantante, na cena imaginária de Lucena, deve ser o mesmo que “carrega” os “sonhos” do artista expositor. Sonhos este que, sempre ‘remoídos’ pela criatividade de Lucena, projetam-se na cena figurativa de suas obras como pesadelos. Pesadelos, como podemos pressuponho, de uma geração cheia de charme cult, por conta do “pós-tudo” na Alagoas artística. Uma geração que, por isso mesmo, não se quer explicada nem compreendida na perspectiva filosófica das oposições binárias (chalitistas/vivartistas, por exemplo) – mas que a habitam desorganizando-a e opondo-lhe resistência subpolítica. E tudo isso, na tentativa de constituir uma terceira via supostamente neutralizadora de participação histórica no campo da arte em Alagoas. “Fazer justiça a essa necessidade”, nos esclarece Derrida (2001, p. 48) falando sobre literatura,

significa reconhecer que, em uma oposição filosófica clássica, nós não estamos lidando com uma coexistência pacífica de um face a face, mas com uma hierarquia violenta. Um dos dois termos comanda (axiologicamente, logicamente etc.), ocupa o lugar mais alto. Desconstruir essa oposição significa, primeiramente, em um momento dado, inverter a hierarquia. Descuidar-se dessa fase de inversão significa esquecer a estrutura conflitiva e subordinante – sem manter qualquer controle sobre a oposição. Significa, pois, passar muito rapidamente – sem manter qualquer controle sobre a oposição anterior – a uma neutralização que, praticamente, deixaria intacto o campo anterior, privando-se de todos os meios de intervir efetivamente. Sabe-se quais têm sido, sempre, os efeitos práticos (em particular, políticos) de passagens que saltam imediatamente para além das oposições, bem como das contestações feitas sob a forma simples do “nem isto/nem aquilo”. Quando digo que essa fase é necessária, a palavra “fase” não é, talvez, a mais rigorosa. Não se trata aqui de uma fase cronológica, de um momento dado ou de uma página que pudesse um dia ser passada para podermos ir simplesmente cuidar de outra coisa. A necessidade dessa fase é estrutural; ela é, pois, a necessidade de uma análise interminável: a hierarquia da oposição dual sempre se reconstitui. Diferentemente de certos autores dos quis se sabe que estão mortos em vida, o momento da inversão não é jamais um tempo morto.

Posto isso, podemos pressupor, que: para Lucena, este “tempo morto” é o dos vivartistas. E estes,  são representados ironicamente, por ele, como pássaros negros “mortos em vida” no paraíso aquático das Alagoas. No nosso argumento crítico derridianamente fundamentado, a obra que na exposição ilustraria bastante bem esse pressuposto, seria especialmente um dos vinte quadros em pequeno formato (21cm X 14cm), da série “Remoendo” (2012). Na cena figurativa deste, que também parece um cena onírica registrada pelo artista numa espécie de story-bord freudiano, vemos um jovem rapaz que, ocupando solitariamente um barco (salva-vidas?), está a observar, perplexo, três pássaros negros boiando “mortos” à sisbordo.

Num outro quadro desta mesma série onírica de pequenos formatos, um deles até me fez lembrar de mim mesmo, no Grupo Vivarte, lendo para a “passarada” vivartista o Noitário de uma revolta; isto é: o manuscrito ainda inédito do vivartismo, que inclusive, na época, fora subtitulado de “O Livro Negro da Arte Aqui” em Maceió-AL.

Mas esse miniquadro não foi o único a me fazer recordar dos “personagens singulares” (GUERRA, 2012) da história da arte em Alagoas, nos idos de 1980. Dois outros ainda, me fizeram lembrar como se sentia, naquela época, a juventude criativa de ambos os sexos. Nestes dois outros, vemos de modo surrealista uma moça (Maria Amélia Vieira?) e um rapaz (Dalton Costa?) aprisionados, isoladamente, como se fossem “gênios da lâmpada”. Cada um ocupando a sua respectiva garrafa (de náufrago no “Paraíso das Águas”?) com expressão atônita e entristecida. Essas imagens me induziram, inclusive, a recordar a absurda situação da “[...] dispersada e solitária avant-garde (vanguarda) caeté” (MAIA, 1987, p. s/n, grifo do autor), na Maceió artística da década de 80 do século passado. Uma galera criativa, mas desarticulada, que Paulo Caldas e eu convocamos e re-agrupamos, após a dissolução do Grupo Vivarte, numa série de três mostras “alternativas” ironicamente denominadas de “Cruzadas Plásticas”: a primeira jornada destas foi realizada pela “nova e a novíssima pintura alagoana” (1987); a segunda, “Pela importância do papel” (1987); e, a terceira, pelos “Abstratos-caetés” (1988).

8. “O canto que vem do vento”.

9. “De Profundis”. Admirador da refinada experiência estética burguesa do final do século XIX europeu, como já demonstrou em sua primeira exposição (“Ars Liberati”, em 2008) – na atual mostra, um dos quadros de Pedro Lucena, intitulado “De Profundis”, faz o espectador aficionado em literatura lembrar-se, instantaneamente, da obra homônima do escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900). É de Wilde esta célebre frase: “Nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham as estrelas...” Frase na certa inspiradora da luminosa tessitura sideral (cf. título do quadro “Tecendo as Estrelas” [2011]) do talentoso artista que é Lucena a percorrer o liberal e delicado “caminho das borboletas”; para neste, então, realizar comedidas trocas simbólicas com seu público-espectador: “Um pouco de mim, um pouco de ti” (LUCENA, 2011). Daí o clima confessional que se percebe em “Ciscos”.

10. “O Caminho das Borboletas”.

11. “De onde eu vim”. Neste título, a questão das origens, sejam estas do universo natural ou social, talvez se imponha para Pedro Lucena – um artista fascinado pelo liberalismo, como ele próprio já indicou no paleotítulo de sua primeira exposição – não apenas como genealogia naturalística; mas, inclusive e sobretudo, como darwinismo social “Incrustrado” em nossa sociedade de classes. Uma sociedade, aliás, que é também cruel e racializada – como de fato parecem indicar as duas grandes árvores pintadas de preto por Lucena, nas paredes da Pinacoteca. Uma alusão metafórica, na certa, à carbonização criminosa de seres humanos vivos e de vegetais.

Ora: confirmando o que acabamos de colocar, o cineasta Renê Guerra (2012), no texto de parede da exposição, diz: “[...] a alteridade já foi realizada na árvore.” E, tentando nos convencer da compatibilidade da obra de Lucena com o “motivo da différance” (Derrida, 2001, p. 88), acrescenta:

A construção simbólica aqui [na exposição] se volta para a natureza presente tanto no ambiente quanto na própria matéria que constitui os corpos. Afinal, o que nos une é aquilo de que somos feitos, mas há algo também que nos diferencia. Ou seja, segundo Pedro Lucena, a nossa materialidade é, antes de tudo, feita de restos, galhos, folhas, musgos, pó. (GUERRA, 2012)


2º CONJUNTO/Segunda sala da Pinacoteca:

12. “Um pouco de mim, um pouco de ti”.

13. “Tecendo as estrelas”.

14. “A carregar meus sonhos”.

15. “Sobre ciscos”.

16. “Remoendo”.

 


REFERÊNCIAS

CALDAS, Paulo. Filipeta da exposição “Signos Marginais” de arte visual. Maceió: Sergasa, 1996.

COSTA, Marcos de Farias. A pintura alagoana em questão. Gazeta de Alagoas. Maceió, 26 jul. 1987. Caderno B, ano LIII, n. 125, p. 4.

COSTA, Marcos de Farias. Cantata sáfica: cenas da vida lésbica. 1ª ed. Maceió: Poligraf, 2011.

DERRIDA, Jacques. Posições. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

GUERRA, Renê. “A obra de Pedro Lucena sempre foi...”. Texto de parede da exposição “Ciscos” de arte visual. Maceió: Pinacoteca Universitária, 2012.

KAUFMAN, Philip. Invasores de corpos.

LUCENA, Pedro. Filipeta da exposição “Ciscos” de arte visual. Maceió: Pinacoteca Universitária da UFAL, 2012.

MAIA, Ricardo; VIEIRA, Maria Amélia. Noitário de uma revolta. Maceió. 1984-1985. 67 f. Digitado. Trata-se do manuscrito, ainda inédito, do Grupo Vivarte.

MOSCOVICI, Serge. A sociedade: entrevistas do Le Monde. São Paulo: Ática, 1989.

MOSTRA ALTERNATIVA “CRUZADA PLÁSTICA” – 1ª jornada: “A nova e a novíssima pintura alagoana”. Catálogo de exposição em arte visual.  Maceió: Galeria Miguel Torres da Fundação Teatro Deodoro (FUNTED). Sergasa, 1987.

MOSTRA ALTERNATIVA CRUZADA PLÁSTICA – 2ª jornada: “Pela importância do papel”. Catálogo de exposição em arte visual. Maceió: Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL), 1988. 10 p.

MOSTRA ALTERNATIVA CRUZADA PLÁSTICA – 3ª jornada: “Abstratos-caetés”.Catálogo de exposição em arte visual. Maceió: Galeria Arte & Design. s/ed., 1988.

PINACOTECA UNIVERSITÁRIA NA ARTE DO SÉCULO XXI. Catálogo comemorativo do 30º aniversário da Pinacoteca da UFAL. Maceió: Pinacoteca Universitária, 2012.

SPIELBERG, Steven. Guerra dos mundos.

 

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Ricardo Maia ESCRITO POR Ricardo Maia Escritor
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