O Vírus da Sétima Arte

Falar sobre eventos isolados é uma prática que nunca me apeteceu. A propósito, a mera propagação infundada de dados, estatísticas e cálculos soa como uma redundância gigantesca na conectividade contemporânea. Mas alguns eventos devem ser colocados em pauta. Afinal, o comportamento humano observável é baseado em fenômenos cotidianos, sejam eles triviais ou de suma relevância. A reflexão em torno desses eventos é o que torna a experiência individual muito mais que uma realidade estática e replicante. Um desses fenômenos é a pandemia de coronavirus que vem impactando o mundo no início de 2020. Feitas as devidas colocações, talvez seja possível aderir a uma abordagem que extrapole os limiares dos fatos. Para tanto, ao invés de replicar os dados de mortalidade ou métodos de prevenção (já compartilhados à exaustão), gostaria de falar um pouco sobre cinema.
De vez em quando, a vida imita a arte. É exatamente o que está acontecendo nesse primeiro semestre de 2020. O mundo caminha a passos largos rumo a uma distopia digna de meses consecutivos em cartaz. Talvez não chegue ao nível de 'Jogos Vorazes' (2012-2015) ou 'Mad Max' (1979-2015), mas não deixa de ser preocupante. Claro, não se trata de um reality arquitetado por Jair Bolsonaro para que a população se mate pelas ruas com versões mais descoladas de armas do século XVIII. Também não se enquadra como uma corrida mortal pelo deserto com veículos adaptados para um apocalipse zumbi. Na verdade, estamos em uma pegada mais 'Contágio' (2011). O lado mais sádico do meu ser sempre teve a curiosidade de saber como a contemporaneidade se portaria frente a uma pandemia de grandes proporções. Estamos obtendo essa resposta.
Quais as estratégias de uma das gerações mais individualistas da história humana? Quais lições essa crise é capaz de proporcionar, cobrando em troca o preço de inúmeras vidas? A primeira delas, por mais difícil que seja admitir, é o quão danoso é o estilo de vida humano para a integridade do terceiro astro do Sistema Solar. Bastaram algumas semanas para confirmar aquilo que os ecologistas previam - claro, sob as circunstâncias da extinção humana. A vida marinha em Veneza nunca esteve tão exuberante. Os índices de emissão de gás carbônico se mostraram os
mais baixos das últimas décadas. Em meio ao caótico cenário social, a Terra repousa em relativa calmaria enquanto homens e mulheres procuram desesperadamente por alguma estratégia de reestruturação do velho estilo de vida confortável para si e tóxico para o ambiente ao redor.
Naturalmente, uma ruptura tão brusca nos paradigmas cotidianos provocaria a espécie de surto persecutório que tem rondado as dependências da sociedade. Como se houvesse uma teoria do caos, semelhante àquela retratada em 'Efeito Borboleta' (2004), mas que cruzasse um paralelo entre fatos infundados, verdades incompletas e o problema enfrentado. Logo, surgem os primeiros dedos apontados para aqueles que seriam os responsáveis por tamanha calamidade. Não demora muito para aparecerem as primeiras receitas caseiras malucas que prometem milagres. São visíveis os malefícios de encontrar-se saturado de informações relevantes e, ao mesmo tempo, totalmente distante das inúmeras outras questões humanas. Mas o desserviço possui um potencial destrutivo de magnitude ainda maior. Realmente, o mal-caratismo é aquele bater de asas de uma borboleta que, mesmo imperceptível, gera impactos avassaladores do outro lado do globo.
Seria difícil afirmar com precisão que rumos iremos tomar. Principalmente quando se olha daqui, de dentro da trama. Mas não seremos mais os mesmos ao deixarmos o set das filmagens. Os pontos aqui citados são apenas alguns trechos do enredo desse documentário distópico. Ainda há muitas cenas para serem analisadas antes de subirem os créditos. Nunca é fácil passar ileso por todo o tempo de duração, mas a oportunidade de alterar o roteiro a partir das próprias ações é uma das grandes vantagens em ser um personagem.