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O OLHAR VIGIADO - Tchello d'Barros

O OLHAR VIGIADO

Tchello d’Barros

 

 

 

 

São apenas quatro os personagens protagonistas desta crônica. E talvez uma vizinha também. De um deles, voyeur involuntário e narrador destas linhas, nada diremos, apenas que presenciou o ocorrido dia desses, numa rua qualquer, no lusco-fusco do crepúsculo de uma tarde de outono.

 

Era um casal na faixa dos quarenta anos, mais ou menos, creio que recém chegaram do trabalho, estavam na calçada em frente ao muro da própria casa, relaxando e apenas vendo o movimento de fim de tarde na rua. Era gente voltando do trabalho, pais que recém pegaram as crianças na creche, um ir e vir nas padarias da região, vendedores ambulantes voltando de mais um dia suado de vendas e andanças. Ele estava sentado numa cadeira, sem camisa, tomava um copo de alguma bebida e ela ao seu lado em pé, uma mão na cadeira e um pé na parede, assim, apenas deixando a vida correr e vendo o povo passar.

 

Tudo ia muito bem, o poente tingia de violeta algumas nuvens mais distantes e até uns bem-te-vis pousados nos fios do poste anunciavam o fim do dia. Mas eis que uma quadra mais distante vinha uma moçoila, plácida e tranqüila, carregando uma cotidiana sacolinha qualquer, caminhava distraída ou aparentemente alheia aos olhares gulosos de todos que passavam por ela. Sim, tudo continuaria muito bem, não fosse a aparição dessa moça anônima, que apenas caminhava, como se estivesse apenas ela na calçada. Do alto de seus possíveis dezoito anos, lá vinha ela, trajando simplesmente um par de sandálias, uma bermuda jeans básica, uma blusinha de mangas e no cabelo uma tiara, como quem apenas tivesse ido até a padaria da esquina. Nada tinha de exibida, mas sua graça natural ao andar chamava atenção de todos. Não era nenhuma diva de cinema, no entanto seu rosto, que não necessitava de maquilagem, e seu corpo proporcional, davam um equilíbrio visual à figura que se aproximava, com suas pernas bem torneadas e uma cinturinha que acentuava os contornos daquela silhueta. O fato é que todos que a encontravam olhavam para seu rosto e depois que passavam giravam a cabeça para conferir os glúteos, as nádegas, ou no popular, o bumbum, ou a bunda mesmo, como de fato dizemos. Fato mesmo é que todo mundo gosta de observar a passagem de um belo exemplar da tal preferência nacional e na ocasião em questão, até as outras mulheres olhavam.

 

Tudo ia realmente bem, até mesmo quando um ciclista mais desavisado, ao girar o pescoço para contemplar nossa Vênus Calipígia suburbana, descuida-se e quase bate no carrinho de frutas de um vendedor ambulante que vinha em sentido contrário, também acompanhando aquela bela da tarde. Quase houve um acidente, mas tudo não passou do quase e cada um seguiu seu rumo. No entanto a mocinha acaba de entrar na quadra onde estava o casal recostado no muro, em seu tranquilo happy hour, antes dos jornais e novelas. O voyeur desocupado, que à tudo prestava atenção do outro lado da rua, discretamente, quis saber se a moça da bunda bonita, quando passasse pelo casal, teria seu dérriere observado pelo homem, que estava vigiado, digo, acompanhado pela companheira. Tudo continuava bem enquanto a musa se aproximava, ainda de frente e naturalmente que ambos olharam para ela, eles olhavam para todos que iam e vinham. No caso da moça bonita, olharam um pouco mais, é claro. A questão era se após a sua passagem, ele viraria o pescoço ou não, simples assim.

 

Então quando a mocinha se aproximou deles, a mulher tratou de olhar para a cara do marido, pra ver se ele teria a cara de pau de, ao lado dela, virar o pescoço e olhar para o lado B da moça. É claro que ele, macaco velho, de soslaio percebeu a vigilância ciumenta, e tratou de, em vez de virar o pescoço, disfarçadamente pegar o seu copo, ajeitar a cadeira, essas coisas, enquanto a moça se distanciava, tudo sob o olhar atento daquela senhora, que conhece bem o marido que tem.

 

Então, estávamos nisso: a moça andante e distraída, a senhora atenta e vigilante, o homem vigiado olhando para o copo, e o observador já meio desapontado com tudo. Mas eis que uma vizinha da casa, pelo muro lateral, chama a mulher, quando a moça já estava uns vinte passos distante, Então a mulher desligou um pouco a vigília para atender a vizinha. Ato seguinte, o homem virou finalmente o pescoço e ainda pode contemplar o quanto aquela bermudinha jeans estava colada ao recheio que lhe preenchia. Mas a vizinha percebeu, e a mulher percebeu a vizinha percebendo, e num segundo, fula da vida, lá estava ela junto à cadeira do homem, dando-lhe um beliscão e já começando um bate-boca. A moça desapareceu na esquina, e não foi possível ver mais nada pois um caminhão de bebidas estacionou por ali impedindo o observador de saber o desfecho do quiproquó do casal. E talvez nem interesse saber, pois provavelmente a mulher conseguiu convencer o homem de que ele deveria para o resto da vida olhar apenas para a bunda dela, ou algo assim. Esperemos que sejam felizes.

 

Naquele início de noite, os bem-te-vis pararam de cantar e as nuvens mais distantes agora já estavam numa cor arroxeada. Detrás da esquina onde a moça desapareceu, surge dali a pouco a lua, como que para nos dizer que também quer espionar nossas afeições cotidianas.

 

 

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