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Quem pediu silêncio?

00h:00min (início da madrugada)

Na ponta dos pés, chega em casa Machado. Sua mulher está deitada (não dormindo), ela está deitada. O marido, consciente do ato que cometeu, tenta não emitir nenhum ruído, ou barulho, até a chave é colocada com o máximo de cuidado.

Com calma ele consegue adentrar no recinto, cambaleante, mas consegue. Com um casamento de vinte anos e a mesma morada há quinze, não fica difícil se locomover por ela, até mesmo com todas as luzes apagadas.

— Droga de mulher! Toda vez que chego em casa tarde tenho que entrar feito um ladrão. Na minha própria casa! Essa peste um dia me paga. Um dia ela prova o que tenho guardado em baixo da cama, ah! se prova!

E assim segue Machado, escorando-se nas paredes, xingando baixinho e tirando as roupas.

00h:30min (banheiro)

Sentado no vaso sanitário, Machado reflete sobre sua vida enquanto defeca. Algum problema com esse termo, leitor pudorento? Quem nunca filosofou enquanto realiza suas necessidades fisiológicas? Não me venha com nariz empinado. Deixe-me voltar à narrativa.

— Meu Deus! O que fiz da minha vida! Casei-me aos dezoito; Arrumei um emprego miserável (maqueiro de hospital) no qual estou até hoje; Tenho os mesmos amigos; saio com as mesmas pessoas todos os finais de semana; Nunca sobra dinheiro para levar uma gostosa a um motel decente; Não tive filhos (ao menos isso). E estou aqui: nesse vaso frio, aos trinta e oito anos e sem nenhuma expectativa de melhorias. E tem mais, se vacilar ainda levei gaia dessa vadia. Agora me responda Senhor: o que devo fazer? Será que isso é justo? É claro que é. Afinal eu sou o único culpado pelas minhas conquistas ou frustrações. Não é assim que se aprende na escola: “se você estudar vai se dar bem na vida”. Puta que pariu!! E o que foi que fiz durante os anos de faculdade, se não me dedicar? Responda!?

— Machado!? É você quem está aí!?

— Não sua louca! É uma alma. É claro que sou eu.

— Nossa! Como você chegou educado. Parece uma pluma.

— Preste atenção Mensalina, acho bom você não me irritar. Não estou bem hoje.

— O problema é seu. Não tenho absolutamente nada com isso. A culpa da sua vida ter se transformado nessa merda, igual a que você tá despejando aí, não é minha. Culpe seus amigos, seus professores, quem quiser, menos a mim.

Mensalina voltou para o quarto e deitou-se aliviada por descarregar sua raiva, após ter sido demitida do trabalho na manhã desse dia 7 de Julho de 2007. Machado terminou o que estava fazendo, tomou um banho, deu descarga e, mais uma vez, com todo o cuidado para não acordar os vizinhos, saiu nas pontas dos pés.

01h:07min (quarto)

O tal objeto o qual Machado prometera que sua esposa provaria um dia, nessa noite, ou melhor nessa madrugada seria utilizado. Ele entrou no quarto, onde sua mulher já roncava, foi até a cama do casal, abaixou-se e com o maior cuidado puxou de lá um machado. E sem o menor remorso começou a golpear sua companheira que apenas mostrou reação ao primeiro golpe, nos demais ela já estava morta.

Mas a vontade guardada por ele, durante todos aqueles anos, era tanta que continuou a golpear, como se quisesse transformá-la em um monte de gravetos, todos pequenininhos. E golpeou, golpeou, golpeou, até que pessoas invadiram sua casa, tomando-lhe das mãos a arma ensanguentada.

Machado não esboçou nenhuma reação. Parecia bastante consciente do que fizera. E, durante o depoimento ao delegado Assis, contou com todas as minúcias o fato ocorrido. E disse mais: — Veja bem seu delegado. Eu chego em casa cansado; tenho que entrar como um ladrão; não posso usar o banheiro à vontade; sou obrigado a conviver com aquela mulher a anos e anos... tenha santa paciência! Eu só queria um pouco de sossego e silêncio ao chegar em minha casa, e não ser recebido com ironias e desaforos. Ela teve o que mereceu.

Dez anos depois....

00h:30min (banheiro)

— Machado!? É você quem está aí!?

— Ai! Meu Deus! Lá se vão mais dez anos da minha vida....

 

 

Penélope SS

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AdrianoRockSilva ESCRITO POR AdrianoRockSilva Autor
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